São Paulo, sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

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Após 145 anos, santo volta à terra de Jango

Escultura de são Francisco de Borja, que paraguaios teriam roubado na guerra em 1865, será devolvida pela família de Jango ao RS em 2010

Imagem foi um presente do ditador Stroessner para o ex-presidente na década de 70, e deve retornar a São Borja em 1º de maio de 2010


MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

A ex-primeira-dama Maria Thereza Goulart conta que se lembra bem de quando, no Palácio de los López, sede do governo em Assunção, o ditador paraguaio Alfredo Stroessner presenteou o presidente brasileiro deposto João Goulart com uma imagem de são Francisco de Borja.
Alvorecia a década de 1970. Stroessner foi eloquente com o casal, diz a mais bela mulher de um chefe do Executivo que o Brasil conheceu: o santo de 1,40 metro de altura, padroeiro da cidade natal dos Goulart, fora levado pelos paraguaios nos saques que varreram São Borja (RS) em junho de 1865.
Principiava ali o ataque em solo gaúcho das tropas do caudilho do Paraguai, Francisco Solano López, no conflito em que a aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai o esmagaria. Aqui, passou à história como Guerra do Paraguai (1864-70).
Com os Goulart no exterior desde o golpe de 1964, a escultura oca em madeira foi endereçada por Stroessner ao sítio do Capim Melado, propriedade da família na zona oeste do Rio.
Jango decidiu que devolveria o santo para a igreja de São Borja, assinala a viúva. Ele sonhava regressar ao Brasil, mas se tornou, em feito da ditadura, o único ex-mandatário nacional a morrer no exílio -em 1976, na Argentina. Assim como Goulart não retornou à sua terra, o santo perambulou por destinos distantes de São Borja, a 595 km de Porto Alegre.
O ex-presidente vendera o Capim Melado. Promoveu-se no sítio rapina de objetos da antiga primeira-dama, ela denuncia. Ignora-se se o são Francisco de Borja ficou ou sumiu.

Pacote anônimo
Conforme Maria Thereza, em 1982 certo remetente anônimo enviou um pacote gigantesco ao seu apartamento, em Copacabana. O santo reaparecia.
Como ela se mudou para uma habitação pequena na capital rio-grandense, mandou a escultura para a casa do filho, João Vicente, no bairro local de Vila Conceição. De volta ao Rio, carregou o santo consigo.
Até transferi-lo para espaço maior, na zona sul carioca: a residência da filha, Denize, onde hoje a estátua repousa.
A peregrinação do santo findará no ano que vem, quando a família Goulart o deixará em São Borja, após restauro. A data prevista é 1º de maio, cara ao trabalhista Jango, com festa.
Se os fatos se passaram como Maria Thereza ouviu de Stroessner (1912-2006), são Borja reencontrará a imagem do padroeiro 145 anos depois de 50 carretas atravessarem o rio Uruguai para a Argentina, fornidas com o butim de guerra.
Em um romance do realismo fantástico, o mistério do santo poderia ser alinhavado a partir de uma coincidência: nomeado superior geral da Companhia de Jesus em 1565, Francisco de Borja e Aragão teve a imagem afanada três séculos adiante, em 1865. Em 2010, celebram-se os 500 anos do seu nascimento.

Invasão
No século 17, São Borja constituiu o primeiro dos sete povos das missões jesuíticas. O município granjearia fama como terra de presidentes. Dois vieram de lá -além de Goulart (de 1961 a 64), Getúlio Vargas (1930 a 45; 51 a 54).
O pai de Getúlio combateu como cabo na resistência à investida paraguaia na então província do Rio Grande do Sul.
O estopim da guerra que provocou centenas de milhares de mortos foi as desavenças regionais acerca da disputa pelo poder no Uruguai.
Logo depois do meio-dia de 12 de junho de 1865, 10 mil militares iniciaram a incursão em São Borja -menos de 1.500 formaram na defesa. Em dezembro haviam entrado em Mato Grosso. Em narrativa de 1867, o cônego João Pedro Gay anotou que os saques foram até dia 22.
Os registros da guerra são limitados, em especial pela aberração de o Brasil manter em sigilo arquivos sobre o confronto em que foi dizimada parcela expressiva da população vizinha.

O sumiço do santo
Não se conhece papel fixando o saque do santo. O que há são relatos sem detalhes. "[Os paraguaios] reuniram tudo o que havia de precioso, inclusive os objetos pertencentes à igreja", rememorou em 1935 o oficial do Exército Osorio Tuyuty de Oliveira Freitas em "A Invasão de São Borja".
O vigário Pedro Gay contou que mais de meia centena de soldados arrombaram a igreja matriz: "Algumas imagens pequenas desapareceram". Uma nota que o major Sousa Docca acrescentou à obra do padre na primeira metade do século 20 estimula outra hipótese.
Ele disse que permanecia na igreja uma escultura de José Brasanelli, artista italiano que viveu nas missões na virada do século 17 para o 18. Escreveu o militar: Brasanelli "esculpiu em um toro de cedro das matas do Uruguai a magnífica e preciosa imagem de são Francisco de Borja que por longos anos várias gerações de são-borjenses veneraram no altar-mor".
Se era a mesma criação em posse dos Goulart, um tesouro com mais de 300 anos, não se sabe como acabou no Paraguai.
Um dos mais qualificados historiadores brasileiros da Guerra do Paraguai, autor de "Maldita Guerra" (2002), o professor da UNB Francisco Doratioto diz ser "provável que a história [o saque do santo em 1865] seja mesmo verdadeira".
"A estátua é muito parecida com a iconografia clássica de são Francisco de Borja", analisa o professor da Unisinos Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, que por 23 anos esteve na cúria dos jesuítas em Roma.
O santo compunha o acervo do palácio de Assunção, diz Maria Thereza. Stroessner o teria prometido em visita a Jango quando o gaúcho governava.
A conversa que consagrou a doação destinava-se a tratar do passaporte paraguaio com que Goulart viajava, já que lhe privaram de um brasileiro. Sua administração dera cobertura ao ditador. E era hábito de Stroessner mimosear amigos com obras sacras.

"Somos todos peregrinos"
A primeira-dama lamenta as vezes em que tentou entregar o santo, mas religiosos e políticos fizeram pouco. "Um dia alguém vai se interessar", pressentia.
Quem se interessou foi o neto Christopher Goulart, filho de João Vicente. Advogado em Porto Alegre, foi quem mais se empenhou pela restituição.
Christopher levará à terra do avô o padroeiro cuja imagem deu tantas voltas. O retorno -ou chegada- evoca o santo. Francisco de Borja escreveu: "Todos nós somos peregrinos".


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