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Após 145 anos, santo volta à terra de Jango
Escultura de são Francisco de Borja, que paraguaios teriam roubado na guerra em 1865, será devolvida pela família de Jango ao RS em 2010
Imagem foi um presente do ditador Stroessner para o ex-presidente na década de 70, e deve retornar a São Borja em 1º de maio de 2010
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE
A ex-primeira-dama Maria
Thereza Goulart conta que se
lembra bem de quando, no Palácio de los López, sede do governo em Assunção, o ditador
paraguaio Alfredo Stroessner
presenteou o presidente brasileiro deposto João Goulart com
uma imagem de são Francisco
de Borja.
Alvorecia a década de 1970.
Stroessner foi eloquente com o
casal, diz a mais bela mulher de
um chefe do Executivo que o
Brasil conheceu: o santo de 1,40
metro de altura, padroeiro da
cidade natal dos Goulart, fora
levado pelos paraguaios nos saques que varreram São Borja
(RS) em junho de 1865.
Principiava ali o ataque em
solo gaúcho das tropas do caudilho do Paraguai, Francisco
Solano López, no conflito em
que a aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai o esmagaria.
Aqui, passou à história como
Guerra do Paraguai (1864-70).
Com os Goulart no exterior
desde o golpe de 1964, a escultura oca em madeira foi endereçada por Stroessner ao sítio
do Capim Melado, propriedade
da família na zona oeste do Rio.
Jango decidiu que devolveria
o santo para a igreja de São Borja, assinala a viúva. Ele sonhava
regressar ao Brasil, mas se tornou, em feito da ditadura, o
único ex-mandatário nacional
a morrer no exílio -em 1976,
na Argentina. Assim como
Goulart não retornou à sua terra, o santo perambulou por
destinos distantes de São Borja,
a 595 km de Porto Alegre.
O ex-presidente vendera o
Capim Melado. Promoveu-se
no sítio rapina de objetos da antiga primeira-dama, ela denuncia. Ignora-se se o são Francisco de Borja ficou ou sumiu.
Pacote anônimo
Conforme Maria Thereza, em
1982 certo remetente anônimo
enviou um pacote gigantesco ao
seu apartamento, em Copacabana. O santo reaparecia.
Como ela se mudou para uma
habitação pequena na capital
rio-grandense, mandou a escultura para a casa do filho, João
Vicente, no bairro local de Vila
Conceição. De volta ao Rio, carregou o santo consigo.
Até transferi-lo para espaço
maior, na zona sul carioca: a residência da filha, Denize, onde
hoje a estátua repousa.
A peregrinação do santo findará no ano que vem, quando a
família Goulart o deixará em
São Borja, após restauro. A data
prevista é 1º de maio, cara ao
trabalhista Jango, com festa.
Se os fatos se passaram como
Maria Thereza ouviu de
Stroessner (1912-2006), são
Borja reencontrará a imagem
do padroeiro 145 anos depois de
50 carretas atravessarem o rio
Uruguai para a Argentina, fornidas com o butim de guerra.
Em um romance do realismo
fantástico, o mistério do santo
poderia ser alinhavado a partir
de uma coincidência: nomeado
superior geral da Companhia
de Jesus em 1565, Francisco de
Borja e Aragão teve a imagem
afanada três séculos adiante,
em 1865. Em 2010, celebram-se
os 500 anos do seu nascimento.
Invasão
No século 17, São Borja constituiu o primeiro dos sete povos
das missões jesuíticas. O município granjearia fama como terra de presidentes. Dois vieram
de lá -além de Goulart (de 1961
a 64), Getúlio Vargas (1930 a
45; 51 a 54).
O pai de Getúlio combateu
como cabo na resistência à investida paraguaia na então província do Rio Grande do Sul.
O estopim da guerra que provocou centenas de milhares de
mortos foi as desavenças regionais acerca da disputa pelo poder no Uruguai.
Logo depois do meio-dia de
12 de junho de 1865, 10 mil militares iniciaram a incursão em
São Borja -menos de 1.500 formaram na defesa. Em dezembro haviam entrado em Mato
Grosso. Em narrativa de 1867, o
cônego João Pedro Gay anotou
que os saques foram até dia 22.
Os registros da guerra são limitados, em especial pela aberração de o Brasil manter em sigilo arquivos sobre o confronto
em que foi dizimada parcela expressiva da população vizinha.
O sumiço do santo
Não se conhece papel fixando o saque do santo. O que há
são relatos sem detalhes. "[Os
paraguaios] reuniram tudo o
que havia de precioso, inclusive
os objetos pertencentes à igreja", rememorou em 1935 o oficial do Exército Osorio Tuyuty
de Oliveira Freitas em "A Invasão de São Borja".
O vigário Pedro Gay contou
que mais de meia centena de
soldados arrombaram a igreja
matriz: "Algumas imagens pequenas desapareceram". Uma
nota que o major Sousa Docca
acrescentou à obra do padre na
primeira metade do século 20
estimula outra hipótese.
Ele disse que permanecia na
igreja uma escultura de José
Brasanelli, artista italiano que
viveu nas missões na virada do
século 17 para o 18. Escreveu o
militar: Brasanelli "esculpiu
em um toro de cedro das matas
do Uruguai a magnífica e preciosa imagem de são Francisco
de Borja que por longos anos
várias gerações de são-borjenses veneraram no altar-mor".
Se era a mesma criação em
posse dos Goulart, um tesouro
com mais de 300 anos, não se
sabe como acabou no Paraguai.
Um dos mais qualificados
historiadores brasileiros da
Guerra do Paraguai, autor de
"Maldita Guerra" (2002), o
professor da UNB Francisco
Doratioto diz ser "provável que
a história [o saque do santo em
1865] seja mesmo verdadeira".
"A estátua é muito parecida
com a iconografia clássica de
são Francisco de Borja", analisa
o professor da Unisinos Luiz
Fernando Medeiros Rodrigues,
que por 23 anos esteve na cúria
dos jesuítas em Roma.
O santo compunha o acervo
do palácio de Assunção, diz Maria Thereza. Stroessner o teria
prometido em visita a Jango
quando o gaúcho governava.
A conversa que consagrou a
doação destinava-se a tratar do
passaporte paraguaio com que
Goulart viajava, já que lhe privaram de um brasileiro. Sua administração dera cobertura ao
ditador. E era hábito de
Stroessner mimosear amigos
com obras sacras.
"Somos todos peregrinos"
A primeira-dama lamenta as
vezes em que tentou entregar o
santo, mas religiosos e políticos
fizeram pouco. "Um dia alguém
vai se interessar", pressentia.
Quem se interessou foi o neto Christopher Goulart, filho de
João Vicente. Advogado em
Porto Alegre, foi quem mais se
empenhou pela restituição.
Christopher levará à terra do
avô o padroeiro cuja imagem
deu tantas voltas. O retorno
-ou chegada- evoca o santo.
Francisco de Borja escreveu:
"Todos nós somos peregrinos".
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