São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

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ALBERTO GRANADO

Para médico que vive em Cuba, mito do revolucionário permanece porque líder não traiu a causa

"Revolução virá dos jovens", afirma amigo de Che Guevara

Ciete Silvério/Folha Imagem
Alberto Granado, 82, ao lado de réplica de 1939 de moto usada por ele e seu amigo, Che Guevara, em viagem pela América Latina


SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

A revolução virá dos jovens. A opinião é de alguém escolado em revoluções. Alberto Granado, 82, era o dono da motocicleta que levou o jovem estudante de medicina Ernesto Guevara de la Serna (1928-1967) a uma viagem pela América Latina, em 1952.
Dirigindo "La Poderosa 2" (a 1 foi uma bicicleta), a dupla de amigos foi da Argentina a uma colônia de leprosos no Peru. No caminho, despertaria em Che de vez a consciência política e, depois, a revolucionária, que o tornaria um dos principais líderes dos movimentos sociais dos anos 60.
Em São Paulo para participar do lançamento do novo filme de Walter Salles, "Diários de Motocicleta", baseado em seu próprio livro, don Alberto falou à Folha sobre Fidel Castro, Hugo Chávez e Luiz Inácio Lula da Silva, defendeu os fuzilamentos cubanos e deu sua versão para a permanência do mito de Che Guevara:

Folha - Mais de 50 anos depois da viagem com Che e 45 anos depois da tomada de poder por Fidel, ainda existe clima para revoluções?
Alberto Granado -
Para uma revolução violenta, como foi a cubana, creio que não haja espaço hoje em dia. Tenha em conta que em 1952 acreditávamos no socialismo soviético, que depois o próprio Che criticaria. Mas pense em Lula, pense em Chávez, pense nos espanhóis tirando [o ex-premiê José María] Aznar em dois dias...
Sou um otimista eterno. E acredito nos jovens. Quem está atirando as pedras na Intifada neste momento? São os jovens, não são? Quem queimou bandeiras na Argentina em 2002? Foram jovens. É daí que virá a revolução.

Folha - O sr. tem Fidel, Hugo Chávez e Lula na mesma conta, não?
Granado -
Na verdade, respeitadas as diferenças entre os homens e as épocas, principalmente a de Fidel nos anos 60 e a de Lula e Chávez hoje em dia, eles têm os mesmos objetivos e vão conseguir implantá-los a longo prazo. Neste momento, o Lula não pode lutar contra os EUA, seria pouco inteligente, porque, se fizer isso, o FMI tira o crédito do país.

Folha - O fato é que a popularidade do presidente brasileiro cai...
Granado -
A expectativa em torno dele era irreal, muito grande. O homem não vai fazer em quatro anos o que não foi feito em 40...

Folha - A revolução que Che pensava para a América Latina não veio. Em sua opinião, por quê?
Granado -
Você diria há dez anos que um ex-metalúrgico chegaria à Presidência? Pensaria que um país como a Venezuela tiraria aquela casta de ladrões do poder, nacionalizaria o petróleo? Assim, eu considero que Che segue sendo um exemplo para todos.
Era preciso que todos os Ches da América Latina se unissem. Não divido mais o mundo em peronistas e antiperonistas, em lulistas e antilulistas, acredito em gente boa e gente ruim. Os primeiros são capazes de sacrificar um pouco de sua comodidade para melhorar as injustiças.

Folha - A que o sr. atribui a existência dos balseiros, que tentam fugir de Cuba para os EUA por mar?
Granado -
Os balseiros deixam Havana saindo do meio do Malecón, na vista de todo o mundo. Não saem escondidos. O que acontece é que são pessoas que querem ir para os EUA, mas estes não lhe dão o visto. Então, sabem que se chegarem lá de balsa obrigarão as autoridades a recebê-los.
Se o cubano quer visitar um país, basta juntar dinheiro e comprar a passagem, não há proibição. Há cubanos no Brasil, há cubanos visitando a Argentina.
E Fidel não faz nada para impedir que os balseiros saiam, porque são gente ruim, racista, machista, ladrões, consumistas... Eles acham que irão a um paraíso, mas na verdade acabam todos como arma política na mão dos ianques.

Folha - Quase 40 anos depois de sua morte, por que o mito de Che Guevara permanece?
Granado -
Che era um revolucionário fora do normal, cujo mito permanece pelo fato de ele nunca ter traído sua causa. Por exemplo, sua saída de Cuba, depois da revolução feita, para continuar a luta em outros países da América Latina. Ele poderia muito bem ter ficado e aceitado um alto cargo no governo de Fidel Castro.

Folha - Mas a saída não se deve a uma briga entre os dois?
Granado -
A vida demostrou que não foi assim. Os dois se admiravam. Quando há comícios em Cuba, todos gritam "Viva Fidel" e "Viva Che". Quando ele me convidou para ir morar em Cuba, fiquei desconfiado. Disse: "Escuta, e o teu "chefe", não vai acontecer com ele o que aconteceu com tantos depois, vai tomar o poder e se vender aos americanos?" Ele me respondeu: "Não, por esse homem vale a pena jogar".

Folha - O seu livro, no qual o filme de Walter Salles é baseado, passa uma imagem um pouco messiânica de Che Guevara. Ele não mentia, não corria atrás de mulheres, dava seu dinheiro aos pobres...
Granado -
Che era um homem, antes de tudo, mas não era um homem comum. Eu o conhecia desde os 14 anos e posso dizer que ele não era comum. Naquela idade, por exemplo, já sabia o que queria. E tinha a capacidade de transformar qualquer coisa negativa em positiva.
No dia em que o conheci, num treino de rúgbi na escola, ele vinha com um livro debaixo do braço e lia, lia, lia. Chego perto dele e digo: "Conte-me, Pelado (careca, em espanhol), o que está lendo?". E ele: "Estou lendo as "As Palmeiras Selvagens" (1939), de William Faulkner". Eu tinha 20 anos, me considerava mais ilustrado que ele. E provoco: "E você entende isso?". Ele: "E você sabe quem é Faulkner?". (risos)
Ele lia muito. Desde os dez anos, a família o obrigava a ficar horas num quarto fechado fazendo inalação, porque tinha asma. Com o tempo, Che passou para a biblioteca da casa e lia, lia.
Não é que ele era messiânico e não gostava das mulheres. É que as mulheres não ocupavam 110% do seu cérebro, como ocupavam do meu e dos outros rapazes. Ele tinha de ler, viajar, estudar, praticar esportes, muita coisa para fazer. E as mulheres também.

Folha - De certa forma, com sua viagem, pode-se dizer que o sr. foi o responsável pelo despertar da consciência política de Che, não?
Granado -
Não, não. Havia muitas condições para que ele se transformasse no futuro Che. Mas eu concordo que ajudei a dar as condições para que a viagem acontecesse. O próprio já tinha feito uma anterior à nossa, com a "Poderosa 1", que era sua bicicleta motorizada, e com ela conheceu toda a Argentina. E já começou a escrever então.
Aliás, nuca deixava de escrever. Vi seus diários dessa época. Havia escritos como "Já li "As 20 mil Léguas Submarinas", de Júlio Verne. Agora, me falta ler tais e tais livros."

Folha - O sr. iria encontrá-lo de novo só oito anos depois.
Granado -
Sim, e ele já tinha mudado. E eu também já tinha mudado. A mim, o que me interessava? Ter uma família, conhecer o mundo e fazer pesquisa em minha área médica.
Eu queria ser um pesquisador, não muito importante, mas dentro do possível. Já Che gostava de tudo e tudo fazia bem, ele era realmente um homem superior. Gostava de tecnologia, medicina, pesquisa.
Então, quando nos encontramos, ele já era um revolucionário. Em 1952, éramos franco-atiradores. Em 1960, não. Ele me convidou para visitar o país de maneira muito sóbria. E nunca pensou que eu aceitasse.
Havíamos nos separados em 26 de julho de 1952. Encontro-o em 24 de julho de 1960. Chego com minha mulher, Délia, e meus dois filhos. Vou a Sierra Maestra, escuto o discurso de Fidel no próprio dia 26 e me encanto com suas palavras. Aí, decido ficar lá de vez.
O encontro: chego ao Banco de Cuba, que já era presidido por Che, chamo o gerente e digo: "Meu nome é dr. Granado, quero falar com o Comandante". Ele me diz que o Comandante estava dando aula de matemática e nessas horas não recebe ninguém.
Eu digo: "Fale a ele que é Petizo (pequeno) Granado". Che aparece e diz, irônico: "Eu não sabia que era o eminente doutor Petizo Granado". Eu respondo: "Que bom que o invicto Comandante Guevara me reconheceu."
Apresento minha mulher e bem nessa hora cai o brinco dela no chão. Che pega, sente que é de prata e diz: "Lata? (gíria portenha para prata) Mas o dr. Granado está muito bem de vida, não?" Ou seja, oito anos depois, é como se tivéssemos nos encontrado no dia anterior. É algo que sempre me emociona porque demonstra quem ele de fato era, não?

Folha - Uma vez em Cuba, o sr. chegou a pegar em armas?
Granado -
Não, não, minhas discussões de mudar o mundo eram teóricas. Já o lema de Ernesto era: "Sem arma, sem revolução". Durante a viagem, quando estávamos em Machu Picchu, no Peru, e eu lhe falei sobre construirmos um novo império baseado no dos incas, ele me respondeu: "Novo império só com revolução".
Foi premonitório, não? Veja o que aconteceu com [Salvador] Allende no Chile [presidente socialista derrubado por um golpe de Estado em 1973], o que quer acontecer agora com Hugo Chávez na Venezuela, que corre a toda hora o risco de cair por um golpe das empresas de comunicação.

Folha - Um dos versos mais famosos de Che Guevara, que ainda hoje enfeita pôsteres em quartos de jovens pelo mundo todo, é "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". Ao longo desses anos todos, o sr. ficou mais duro?
Granado -
Conheci muita gente em Cuba que só tinha a parte dura, mas falta o que tinha Che, que era a ternura, que fazia dele um bom poeta. Sim, há que endurecer-se. Temos de fuzilar essa gente que acabamos de fuzilar em Cuba, porque não merecem viver. São pessoas que tiveram oportunidade, trabalho, e escolheram o mau caminho, matar gente inocente, sabotar o turismo.

Folha - Então, perdeu a ternura?
Granado -
Não, sou romântico...


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