São Paulo, domingo, 26 de abril de 1998

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LANTERNA NA POPA
Um liberal explícito

ROBERTO CAMPOS

"O mestre disse: "Aos 15 anos, orientei meu coração para aprender; aos 30, plantei meus pés firmemente no chão; aos 40, não sofria mais perplexidades; aos 50, sabia quais eram os preceitos do céu; aos 60, eu os ouvia com ouvidos dóceis; aos 70, podia seguir as indicações do meu próprio coração porque o que desejava não excedia as fronteiras da justiça'." Confúcio, nas "Analectas", 2, 4

Apesar do hiato entre nossas gerações, duas coisas me aproximavam do Luís Eduardo Magalhães, que as Parcas colheram na primavera da vida: o fato de pertencermos ao "clube dos cinco" e de ser ele um "liberal explícito". Explico-me. Ao fim da Assembléia Constituinte de 1988, quando explodiam aplausos à "Constituição dos Miseráveis", sob o impacto da eloquência de Ulysses Guimarães -indiferente como sempre à economia e cativo quase sempre da utopia-, eu me isolara melancolicamente para redigir um voto de protesto. Senti que o texto constitucional era anacrônico, escrito pelo retrovisor, prolixo em direitos e ascético em deveres. Era a culminância de uma década de erros. E talvez outra década fosse perdida para corrigi-los. Só consegui imobilizar quatro outros congressistas para partilharem dessa visão pessimista, consubstanciada numa "declaração de voto", em que nos referíamos aos "dispositivos retrógrados que significarão considerável recuo na caminhada do país para o desenvolvimento e a justiça social". E acusávamos o texto (que Paulo Mercadante, depois, apelidaria de "avanço do retrocesso") de "preconceitos ideológicos deixando prevalecer interesses pretensamente populares e na verdade demagógicos".
Luís Eduardo, o mais jovem signatário dessa "declaração de voto", comportou-se como vinho maduro e de boa cepa. Curiosamente, foi o único dos cinco que, anos depois, como presidente da Câmara dos Deputados e líder do governo, desempenharia papel realmente crucial no encaminhamento das reformas constitucionais. Aliás, o que chamamos de "reformas" não são avanços institucionais inovadores e sim mero desfazimento da "contra-reforma", que foi a Constituinte de 1988. Gastamos a década dos 80 fazendo erros e gastaremos a dos 90 para desfazê-los.
Meu segundo motivo de aproximação com Luís Eduardo foi ser ele um dos poucos políticos que se proclamava um "liberal explícito". Admitir o "liberalismo explícito", num país de cultura dirigista, é coisa tão esquisita como praticar sexo explícito em público. Não dá cadeia, mas gera patrulhamento ideológico. A etiqueta de "socialista" ou "centro-esquerda" dá um ar de respeitabilidade a qualquer patife ou imbecil, animais abundantes na praça...
Luís Eduardo respeitava o capitalismo como a mais eficaz forma de organização econômica para gerar riquezas, coisa indispensável para que os socialistas possam depois desperdiçá-las. Aceitava meu argumento de que o socialismo soviético fracassara precisamente porque a Rússia não tinha sido suficientemente capitalista para financiar o futuro esbanjamento dos burocratas do partido. Luís Eduardo admitia até que o chamassem de "direita", nome que tem a vantagem de se assimilar à retidão, enquanto que a raiz latina da esquerda é "sinistra", coisa redolente a desastre. Luís Eduardo divertia-se com minha afirmação de que o único insulto pessoal que eu realmente não toleraria era o ápodo de "socialista". No meu dicionário, "socialista" é o cara que alardeia intenções e dispensa resultados, adora ser generoso com o dinheiro alheio e prega igualdade social mas se considera mais igual que os outros...
Havia entre nós uma terceira e acidental afinidade. Na Constituinte, Luís Eduardo e eu tiramos nota zero do Diap, organismo de ação parlamentar da CUT. Como ambos fomos reeleitos em 1990 (sendo Luís Eduardo o deputado mais votado na Bahia), enquanto a maioria dos agraciados com nota 10 sofreram rejeição popular, conclui-se que o veto da CUT equivale a um diploma de sensatez.
Luís Eduardo me perguntou uma vez por que, com tantos anos de vida pública, nunca pleiteei posições de liderança no Congresso. Respondi-lhe que das três qualidades do líder, eu só tinha a primeira. "E quais são essas qualidades?" "Ora bolas, retruquei, suficiência intelectual (sem brilho agressivo); tino político agudo para farejar humores; e paciência "sacal' para ouvir queixumes e pentear vaidades."
Luís Eduardo tinha todas essas qualidades, acrescidas de uma quarta: a administração do sorriso. Nossos politólogos ainda não analisaram devidamente a tecnologia do sorriso. Getúlio Vargas, frio e até cruel, usava-o para ocultamento de seu viés ditatorial. Juscelino encantava pelo seu sorriso de cúmplice, sempre prestes a transformá-lo em contagiosa gargalhada. FCH é o terceiro dos grandes administradores do sorriso e tem com ele desarmado várias armadilhas dos "neoburros".
A nação muito deve a Luís Eduardo pela sua contribuição modernizante como presidente da Câmara, e depois líder do governo, na fase mais crucial de nossas reformas constitucionais. Fez uma admirável gestão como presidente da Câmara, paciente para ouvir argumentos repetitivos da oposição em sua faina obstrucionista; severo na interpretação do regimento; estrategista hábil para perceber momentos de avanços e de recuo; bem-humorado, para antever insultos e amaciá-los com um sorriso; firme nas idéias liberais, mas consciente das limitações impostas pelo nosso avatar dirigista; articulador eficiente, conhecedor dos limites decentes da barganha, em que a negociação de posições não chega à prostituição dos propósitos; e, "last but not least", fidedigno cumpridor dos acordos de bastidores. Conseguiu ter admiradores até mesmo no PT, partido hirsuto que nas discussões da reforma constitucional está em permanente briga com a lógica. É que se recusou a assinar a Constituição de 1988, tida como reacionária, e agora quer preservá-la a ferro e fogo, o que me faz lembrar a história do sujeito forçado a casar com mulher feia, pela qual depois se apaixonou ao descobrir-lhe insuspeitadas virtuosidades na cama.
Conheci Luís Eduardo em visita ao gabinete de seu pai, Antonio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações do presidente Sarney. Sempre que o visitava, lembrava-me da presciência do presidente Castello Branco, que nos recomendara a mim e ao professor Octávio Bulhões (respectivamente ministros do Planejamento e da Fazenda) que, apesar de nossa penúria orçamentária, procurássemos auxiliar dois jovens promissores -José Sarney e Antonio Carlos Magalhães-, pretendentes um à governança do Maranhão e o outro à prefeitança de Salvador. "Esses rapazes vão longe", profetizava Castello.
Em conversas informais com o jovem deputado, tive uma agradável surpresa. Não se tinha contaminado com os mitos que incendiavam a juventude da época. Apoiava-me no combate à política de informática. Não tinha ilusões sobre os monopólios estatais, que trabalham mais para os funcionários do que para o Tesouro. Tinha uma visão realista do problema cambial. Assustara-se com a oratória externa, que arruinaria nosso crédito, robustecendo a cultura do calote. Favorecia a austeridade orçamentária. E não tinha simpatias pelo paternalismo trabalhista, que acaba destruindo empregos sob o pretexto de preservá-los. Era um caso de maturidade precoce, baseado mais em intuição ousada do que em erudição suada.
A morte o colheu no terceiro estágio do calendário confuciano, "quando não tinha mais perplexidades". Seu destino político estava formatado. Candidato quase imbatível à governança da Bahia, adicionaria à sua biografia uma experiência faltante: a de executivo público. E teria um bom professor em domicílio -o ex-governador Antonio Carlos, certamente um executivo brilhante, bom manobreiro político, sem deboche orçamentário. Com um único defeito, a meu ver: ama demasiado o poder para ser um liberal.
O passo seguinte -menos fácil, porém igualmente plausível- seria a candidatura à Presidência da República em 2002. A tarefa das reformas internas estaria avançada e sua capacidade de articulação teria de projetar-se ao cenário internacional, com a formação da Alca. Com continuidade administrativa e integração à economia de mercado, o Brasil poderia então deixar de ser apenas "um país com um grande futuro no seu passado".
Oitentão que sou, tendo sobrevivido às seis fases do calendário confuciano, cada nova manhã chega como uma conquista e uma surpresa. Para Luís Eduardo, aos 43 anos, cada nova manhã era um direito e uma promessa. Entretanto, as manhãs lhe foram roubadas. E a promessa não se cumprirá. A vida é injusta.

Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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