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Entrevista Ruy Fausto
Para filósofo, conjunto da intelectualidade faz crítica pouco sofisticada ao governo Lula
Posições de intelectuais brasileiros me assustam
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Para Ruy Fausto, professor emérito de filosofia da
USP, o conjunto das posições políticas da intelectualidade brasileira -e seus fundamentos teóricos- não
passa de um "sistema de erros". "As posições políticas
dos intelectuais brasileiros em geral me assustam",
diz o autor do recém-lançado livro de ensaios "A Esquerda Difícil" (Perspectiva). Fausto critica desde os que segundo ele pertencem à "extrema esquerda niilista intelectual" até os que, saindo da esquerda, se aproximaram recentemente do PSDB.
Niilistas de esquerda (a
exemplo, segundo o autor, do
filósofo Paulo Arantes) e tucanos terminam, para Ruy Fausto, fazendo uma crítica pouco
sofisticada ao governo de Luiz
Inácio Lula da Silva e ao momento que vive o Brasil.
No meio do caminho, encontra e ataca intelectuais petistas
que tentaram negar a existência do mensalão -o caso mais
estridente desse tipo de atitude, não nomeado por ele, é o da
filósofa Marilena Chaui.
"Lamentavelmente, parte da
intelectualidade do PT tomou a
defesa do partido, e portanto
dos corruptos, e pôs a culpa na
imprensa pelo escândalo, como
se ela tivesse montado o essencial", afirma. "A tendência a
transformar tudo em complô
da mídia é propriamente lamentável, e mostra a total desorientação de parte da intelectualidade petista."
A seguir, trechos da entrevista, realizada por escrito.
FOLHA - Em seu livro, o sr. condena
certa crítica ao governo Lula que
identifica com uma "extrema esquerda intelectual niilista". Ataca
também a "crítica política compacta
de um mundo globalizado, em que
não se vê nenhuma possibilidade de
saída". O que marca essa crítica?
RUY FAUSTO - As posições políticas dos intelectuais brasileiros
em geral me assustam. Isso parece muito pretensioso, mas o
conjunto me parece um sistema de erros. Esquematicamente, os intelectuais tendem a assumir três posições diferentes, e a meu ver, as três equivocadas. Há por um lado os radicais,
por outro os petistas, em terceiro lugar os que abandonaram a
perspectiva de esquerda, e aderem a partidos como o PSDB.
O que chamei de niilismo é
uma das duas variantes do primeiro grupo, que inclui igualmente uma variante revolucionária tradicional.
O que visei falando em niilismo? A tendência
a falar num fechamento global
da situação, e numa suposta
impossibilidade em tomar
qualquer atitude politicamente
acertada e produtiva.
FOLHA - Há riscos nesse tipo de crítica? O que se perde aí?
FAUSTO - Claro que a situação é
difícil, e é preciso esforço para
definir que iniciativas poderiam representar um bom programa à esquerda no Brasil. Ela
só é problemática no sentido de
que, para se reorientar, é preciso se desvencilhar de um certo
número de preconceitos.
Quanto à posição de Paulo
Arantes, é muito marcada pelo
marxismo, com a novidade,
muito relativa, de que há um
pessimismo em relação às possibilidades da revolução. Isso é
muito pouca coisa como "aggiornamento" teórico.
O autor continua pensando
no interior de um esquema maniqueísta, em que há o capitalismo onipotente, e as forças
que tentam se opor a ele, sem
sucesso. Esse tipo de esquema,
na realidade hiperclássico, o leva a erros enormes, como um
que assinalo em um dos meus
textos: o Gulag (como também
Auschwitz) é considerado como fenômeno capitalista!
Como digo no meu livro, no
esquema dualista (em certo
sentido, mesmo, monista) do
autor, tudo aquilo que cai na rede da contemporaneidade (se
não for socialista, e o autor não
é tão ingênuo a ponto de pensar
que o Gulag tem algo a ver com
socialismo) há de ser peixe capitalista. Que se trate de um
"tertius", nem capitalismo nem
socialismo (o que é evidente
para 90% da esquerda européia, já há bastante tempo), isso
não lhe passa pela cabeça.
FOLHA - No livro, o sr. indica ter
ainda confiança na capacidade de o
PT representar um projeto de esquerda democrática no país. Num
comentário, entre colchetes, afirma
em seguida que essa crença se perdeu. Como foi?
FAUSTO - É. Quando escrevi o
artigo, creio que foi em 2004,
ainda tinha esperança no PT,
depois perdi. Diria que foi impossível continuar a acreditar
no PT, desde que se revelaram
os primeiros escândalos ligados ao chamado mensalão. O
assunto corrupção é sério demais para ser considerado de
um modo ligeiro, para quem
acredita em democracia. Lamentavelmente, parte da intelectualidade do PT tomou a defesa do partido, e portanto dos corruptos, e pôs a culpa na imprensa pelo escândalo, como se
ela tivesse montado o essencial.
A tendência a transformar
tudo em complô da mídia -que
está longe de ser inocente,
principalmente na sua atitude
para com o governo Lula, mas,
no caso do mensalão, fora as
diatribes sinistras contra intelectuais do PT proferidas por
certa revista, ela acertou muito
mais do que errou- é propriamente lamentável, e mostra a
total desorientação de parte da
intelectualidade petista.
Não se defendem princípios,
defende-se um partido. Como
se os partidos não apodrecessem, e como se eles fossem
mais importantes do que um
projeto socialista democrático
sério. Essa atitude mistificou
parte da opinião universitária,
que "não acredita" no mensalão, como se se tratasse de um
problema de crença ou de fé (se
o mensalão era quinzenal, ou
semestral, isso interessa pouco,
o essencial é que houve corrupção, e grande). Com isso não
quero dizer que nada preste no
PT, nem que ele não tenha mais
interesse. Há certo número de
pessoas honestas e com convicções ali. Só que são minoritárias. Veremos se ainda podem
desempenhar algum papel.
FOLHA - O sr. também cita as críticas da imprensa e de "partidários do
governo antigo", e afirma que a situação do país, e do governo Lula,
exigiria uma "finura crítica" maior.
FAUSTO - O terceiro engano (o
primeiro é o radicalismo, o segundo o petismo acrítico) é a
adesão aos partidos de centro e
de centro-direita. Não estou dizendo que FHC e cia. sejam
monstros, com os quais todo
diálogo seja impossível. O diálogo é sempre possível, e dentro
do PSDB há tendências desenvolvimentistas, como há gente
pessoalmente honesta etc.
Mas isso não é suficiente,
longe daí, para justificar um
deslizamento de pessoas que
foram de esquerda (ver o PPS, e
alguns intelectuais) em direção
ao PSDB. Aderir ao PSDB, ou
"adotar" a política dos tucanos
é renunciar a uma posição de
esquerda. O que significa: é
abandonar a idéia de que é preciso antes de tudo combater a
desigualdade monstruosa que
existe no país, e a de que toda
política deve visar em primeiro
lugar a luta contra essa desigualdade, e o estabelecimento
de uma situação em que os pobres não sejam mais hiperexplorados ou marginalizados.
FOLHA - Ao recusar a "extrema-esquerda niilista", petistas e tucanos,
o sr. se situa onde?
FAUSTO - A reorientação política em si mesma não é difícil, senão no sentido de que é preciso
vencer preconceitos arraigados. No plano prático, claro, tudo é muito difícil. O mais importante por ora é travar uma luta pela hegemonia das idéias
de um socialismo crítico e democrático. Isso é o que dá para
fazer por enquanto. É limitado,
mas é muito importante.
Creio que precisaríamos de
uma revista, mas uma revista
com gente que tenha posições
bastante convergentes, e que se
disponha a trabalhar no sentido de uma crítica intransigente
ao petismo acrítico, ao revolucionarismo -inclusive o niilista- e às pseudo-sociais-democracias nacionais, que na realidade não têm nada de social-democratas. Uma revista política e teórica que fosse nessa direção representaria um passo
importante, no sentido da preparação de uma reorganização
política. Pelo menos denunciaríamos os sofismas e as jogadas
de uns e outros. A partir daí, e
entrando em contato com o que
existe de melhor em vários grupos ou partidos (há gente politicamente sã, mesmo se minoritária, um pouco por todo lado, inclusive fora de grupos ou partidos) veríamos o que seria possível fazer a médio prazo.
FOLHA - O sr. fala em desafios para
a esquerda, que seja capaz de repor
projetos de futuro e de pensar criticamente a herança marxista. O que
no marxismo ainda pode ser usado?
FAUSTO - Defendo que é preciso "atravessar" Marx e o marxismo. Há neles um lado que é
suficientemente vivo, e há um
lado definitivamente morto.
Esquematicamente, acho que o
corpus marxiano funciona bastante bem, ainda, como crítica
(digo, em termos gerais, mas
essenciais) do capitalismo. Mas
funciona muito mal como política, e em grande parte, como
filosofia da história.
Principalmente, ele não serve para decifrar e criticar os totalitarismos. Por isso mesmo,
ele serviu e serve como ideologia para estes últimos, mesmo
se sob formas modificadas. A
tragédia da esquerda atual é
que pouca gente pensa assim.
Grosso modo, na Europa domina a idéia de um Marx inteiramente morto, no terceiro mundo o de um Marx senão inteiramente pelo menos essencialmente vivo. As duas teses são
erradas, e suas conseqüências são simetricamente catastróficas. Acho lamentável que intelectuais de bom nível continuem enchendo a cabeça da juventude com contos da carochinha sangrentos como o da
"ditadura do proletariado", fazendo abstração de tudo o que
aconteceu no século 20.
No outro extremo, há, na Europa sobretudo, uma tendência
de recusar Marx de forma absoluta, em todos os seus aspectos.
Uma espécie de alergia a Marx.
O resultado não é menos desastroso. A esquerda se perde no
terceiro e no primeiro mundo,
mas por razões opostas.
FOLHA - Como seria esse projeto
futuro de socialismo que respeita a
democracia e abre mão, em grande
medida, da violência?
FAUSTO - Não é fácil propor
programas. Mas é possível pensar em algumas idéias. Além da
preservação e ampliação dos
direitos democráticos no plano
civil e político, e de uma atitude
absolutamente intransigente
em relação à corrupção, caberia
tomar medidas de redistribuição de renda. Nesse plano, uma
modificação das regras de cobrança do imposto de renda se
impõe. Associada a medidas
econômicas que facilitem o desenvolvimento, ela poderia liberar fundos que permitissem
verdadeiras reformas no plano
da educação e da saúde.
Sem uma política radical de
redistribuição de renda, as necessárias reformas da previdência e da educação se transformam em mini-reformas de
eficácia muito limitada.
Há por outro lado, os projetos de economia solidária, as
cooperativas essencialmente,
que têm dado resultados positivos em outros países.
A longo prazo, o objetivo seria uma sociedade em que há
mercadoria e mercado, mas em
que o capital é de uma forma ou
de outra controlado, e neutralizado nos seus efeitos.
FOLHA - É realista falar ainda em
projeto socialista?
FAUSTO - A situação é difícil.
Mas em primeiro lugar é preciso pensar com lucidez e clareza,
o que significa, se dispor a repensar a tradição socialista sem
preconceitos. Claro que isso
não nos tira da situação atual.
Mas é condição necessária. A
idéia de que não há mais classe
que suporte projetos de mudança é tradicional demais.
Também a idéia de que há integração de todos ao sistema
teria que ser posta à prova. Enquanto se falar da derrota do
socialismo a propósito da derrocada do socialismo de caserna, enquanto se continuar a ter
ilusões com o castrismo, o chavismo etc etc, é inútil se queixar
de que não se vêem saídas. Resolvam primeiro essas confusões, abram-se para um discurso lúcido radical-democrático,
e depois veremos o que fazer.
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