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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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POLÍTICA EXTERNA

Espanhol, que virá ao Brasil na terça, diz que seu país "fez o que tinha que fazer" na guerra do Iraque

Lula não administrará sonhos, diz Aznar

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MADRI

O presidente do governo espanhol, José María Aznar, chega na terça-feira ao Brasil com uma visão profundamente pragmática do que será o governo Luiz Inácio Lula da Silva:
"Quando alguém chega à Presidência, seja na Espanha, seja no Brasil, seja em qualquer país, tem que administrar a realidade. Não administrará sonhos. Pode criá-los. Não administrará utopias. Pode pensá-las".
Aznar acha que essa é a orientação de Lula, com o qual o governante espanhol se reunirá na quarta-feira, para levar adiante a idéia de "relações estratégicas" entre Brasil e Espanha, definidas na visita que o mandatário brasileiro fez a Madri em julho.
Não tão estratégicas, no entanto, para que Aznar anuncie, desde já, apoio à pretensão brasileira de ocupar um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Nem para defender a eliminação ou ao menos a redução do protecionismo agrícola europeu, reivindicação permanente do Brasil e do Mercosul.
Cauteloso, Aznar naturalmente resvala para a evasiva quando se trata de analisar situações como a da Argentina, país em que o governo está em rota de colisão com as empresas espanholas, ou a da Bolívia, que acaba de mudar de presidente pelo grito das ruas.
Mesmo assim, o presidente do governo espanhol (mais habitualmente tratado, no Brasil, como primeiro-ministro) deixa claro que seu entusiasmo por Lula é bem diferente do que o que sente pela Argentina e do que o seu temor de que haja retrocesso democrático na Bolívia.
Aznar é dono de um ato raro, quase inédito no mundo político: aposentou-se da política apesar de muito jovem (50 anos), de estar apenas no seu segundo mandato (o parlamentarismo permite infinitas reeleições) e de as pesquisas indicarem que ganharia facilmente um terceiro mandato nas eleições gerais já marcadas para março.
"Lideranças excessivamente prolongadas podem resultar, ao final, perturbadoras. Às vezes, é mais fácil chegar que sair, mas como há que sair, é preciso procurar sair bem", disse à Folha, em entrevista no Palácio de la Moncloa, a sede do governo, depois da reunião habitual do gabinete das sextas-feiras e antes de almoçar com Colin Powell, o secretário norte-americano de Estado.
Veja trechos da entrevista:

Folha - O senhor estará quarta-feira em Brasília certamente para dar andamento às "relações estratégicas" com o Brasil. O que isso significa concretamente, se o próprio presidente Lula já definiu como "extraordinárias" as relações Brasil-Espanha?
José María Aznar -
As relações Espanha-Brasil neste momento são de fato de forte confiança política. A Espanha é o segundo maior investidor do mundo no Brasil e, portanto, as relações se desenvolvem em um âmbito de profunda inter-relacionamento econômico. Nosso comércio é crescente, e desejamos fortalecê-lo em todos os aspectos.
Dar conteúdo estratégico ao relacionamento significa o compromisso de trabalhar conjuntamente não só do ponto de vista bilateral, mas também do ponto de vista geral. Trabalhar conjuntamente nas Nações Unidas, nas relações da União Européia com o Brasil e especialmente com o Mercosul. Trabalhar conjuntamente no âmbito da comunidade sul-americana e estreitar ainda mais nossos contatos políticos e nossa relação econômica e comercial.

Folha - Trabalhar conjuntamente significa que a Espanha apoiaria a candidatura do Brasil a um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas?
Aznar -
Significa que temos que falar disso, evidentemente, e que nós consideramos que a aspiração do Brasil é absolutamente lógica. Estamos iniciando um processo de reforma da ONU. Falei anteontem [quarta-feira] com o secretário-geral Kofi Annan sobre esse processo, que vai começar em novembro e durar um tempo.
É preciso ser consciente da necessidade de reformar a organização. Não somente o Conselho de Segurança, não somente a Assembléia Geral, mas também as agências que a ONU tem.
Em consequência, é preciso ver como fica desenhada a organização com vistas ao futuro. Não vai ser uma tarefa fácil e, portanto, não é uma questão apenas de apoios. É preciso ver se se aumentam os membros permanentes do Conselho de Segurança, o que acontece com o direito de veto, como se refletem os pesos geográficos. São questões enormemente delicadas. O que é preciso é abordá-las conjuntamente.

Folha - Trabalhar conjuntamente significa que a Espanha defenderia uma redução do protecionismo agrícola europeu, como pedem o Brasil e o Mercosul?
Aznar -
Sou partidário declarado do livre comércio. Creio que favorece especialmente os países menos desenvolvidos. Então, não creio que tenha sido bom o que aconteceu em Cancún, na reunião da OMC [Organização Mundial do Comércio]. Não foi bom especialmente para os países em vias de desenvolvimento.
Por quê? Porque as possibilidades que havia para aumentar o livre comércio não foram aproveitadas. Não foi um bom resultado, mas pode-se recuperar isso. As últimas reuniões entre União Européia e Mercosul estão avançando em terreno positivo.
Em consequência, há obrigações para as duas partes. É preciso estabelecer marcos muito claros para investimentos, comércio, para a segurança jurídica, para a segurança institucional nos países. Há que cumprir regras de bom governo e de transparência, de confiança. E, ao mesmo tempo, evidentemente, há que favorecer tudo o que diz respeito ao livre comércio, não só em mercadorias, mas também em serviços.

Folha - Os pontos que o sr. menciona foram, na essência, os que causaram o confronto em Cancún e levaram a reunião ao fracasso...
Aznar -
Por isso é que é preciso preparar bem e com antecipação essas coisas. Por isso, a relação estratégica significa falar de confiança em todas essas questões porque provavelmente, antes de Cancún, não se falou o suficiente de muitas delas.

Folha - Mas sobre o protecionismo agrícola europeu já se falou bastante e, no entanto...
Aznar -
Mas veja que a reforma da Política Agrícola Comum [da União Européia] abriu importantes possibilidades. Temos que aproveitar essas possibilidades. Haverá quem pense que não é suficiente. Mas sobre o que é possível -e nisso consiste a política-, há que aproveitar.

Folha - As relações entre empresas e o governo espanhol e o Brasil parecem viver momento bem diferente das relações entre a Argentina e a Espanha, empresas e governo, bem mais conflituosas. É isso mesmo?
Aznar -
As relações Brasil-Argentina são muito importantes, e a Espanha é o principal investidor tanto no Brasil como na Argentina. É evidente que a Argentina teve uma crise brutal da qual felizmente vai saindo.
A Espanha contribuiu de uma maneira muito intensa para os acordos entre a Argentina e o Fundo Monetário Internacional. A Espanha fez concessões muito importantes para que a Argentina pudesse sair da crise.
O que nós desejamos é um marco político e econômico de estabilidade na Argentina, para que as empresas espanholas e outras empresas possam tomar as decisões de investimento que lhes pareçam oportunas.
O mesmo, evidentemente, se aplica ao Brasil. Sempre há dificuldades, mas há grande confiança espanhola no futuro do Brasil. Marcos estáveis são importantes para garantir segurança porque todos os países necessitam gerar confiança e necessitam investimentos externos. Os países que conseguem mais desenvolvimento são os países que são capazes de gerar essa maior confiança.

Folha - Lula o surpreendeu ao gerar marcos estáveis?
Aznar -
Quando alguém chega à Presidência, seja na Espanha, seja no Brasil, seja em qualquer país, tem que administrar a realidade. Não administrará sonhos. Pode criá-los. Não administrará utopias. Pode pensá-las.
Mas, sobretudo, tem que melhorar a realidade. Essa é a nossa obrigação. Ao final do mandato, a prova por que tem que passar um homem de governo é a seguinte: encontrei um país em tais e tais condições. Deixo um país nestas e nestas condições. Se são melhores, a obrigação foi cumprida.
Vejo que a orientação do presidente Lula é essa, do ponto de vista da geração de confiança no Brasil e das reformas que o país possa necessitar.

Folha - O sr. manteve boas relações com o presidente Fernando Henrique Cardoso...
Aznar -
Ainda mantenho.

Folha - O presidente Fernando Henrique era mais muito próximo do Partido Socialista Operário Espanhol, seu adversário. Agora, o sr. mantém também boas relações com o presidente Lula que, no entanto, era um crítico duro do presidente Fernando Henrique. Sei que o sr. dirá que relações de Estado são diferentes de relações pessoais, mas não há nesses fatos uma aproximação ao centro dos diferentes governantes?
Aznar -
Todos os componentes dos preconceitos ideológicos, desde que caiu o Muro de Berlim, se diluíram. Não significa, como alguns pensam, o pensamento único. Quer dizer que os matizes, as diferentes orientações que possa haver, podem encontrar pontos de confluência. Há pontos de confluência muito importantes neste momento que são dificilmente contestáveis: eficácia da economia de mercado, da estabilidade econômica como motor do crescimento, estabilidade econômica como fator de confiança internacional, manter contas públicas saneadas.

Folha - Uma evidente divergência entre o sr. e o presidente Lula é a respeito do multilateralismo e do suposto ou real unilateralismo norte-americano. A Espanha foi um dos poucos países que apoiou firmemente a intervenção no Iraque. Depois de tanto se falar de armas de destruição em massa, que não foram encontradas, o sr. não se arrepende um pouco?
Aznar -
A Espanha fez o que tinha que fazer. E o fez por convicção, porque somos partidários da legalidade internacional e de que ela seja respeitada. Quando o Conselho de Segurança das Nações Unidas diz a um país que tem a última oportunidade de demonstrar que não possui armas de destruição em massa e esse país não o faz, devem ser tomadas as decisões que correspondam.
Isso não significa que as decisões sejam cômodas. Sempre digo que, primeiro, mantenho uma posição de respeito à legalidade internacional. Segundo, que todos estamos de acordo sobre quais são as três ameaças diretas à segurança do mundo: o terrorismo -a principal-, a proliferação de armas e Estados que não cumprem a lei.
Terceiro, do ponto de vista da segurança e da estabilidade no mundo, os Estados Unidos, com todos os seus problemas, são a única alternativa neste momento. Essa é a realidade.
Sou firme partidário da relação atlântica [entre Europa e Estados Unidos]. Mas sou também firme partidário de estender essa relação atlântica a toda a América, porque o mundo seria, com isso, mais estável e mais seguro.

Folha - Que tipo de apoio vai dar a Espanha ao programa Fome Zero do presidente Lula?
Aznar -
São coisas que podemos concretizar durante minha viagem ao Brasil. É um programa muito ambicioso, muito interessante, e espero e desejo que possamos concretizar o que estiver ao nosso alcance.
Levo propostas que, neste momento, estamos discutindo com o governo do Brasil. Como não depende só de mim, mas também do governo brasileiro, vamos ver como se materializa.

Folha - Com a desaceleração econômica em todo o mundo, as empresas espanholas estão mais temerosas de investir na América Latina, ainda uma zona de risco?
Aznar -
Não. Continuamos investindo. Dou-lhe um dado: de 1990 a 1995, a Espanha investiu na América Latina creio que US$ 5 bilhões. De 1996 a 2001, a Espanha investiu US$ 105 bilhões. O investimento acumulado da Espanha no Brasil supera neste momento os US$ 25 bilhões. É o segundo investidor, após os Estados Unidos.
O que acontece é que o investimento espanhol também se espalha por outros países. Já somos o quinto ou sexto maior investidor do mundo. Essa é a realidade, e nós continuamos confiando. O que me preocupa é que não ocorra na América Latina nenhum retrocesso democrático.

Folha - O sr. acha que o que ocorreu na Bolívia caracteriza algum tipo de retrocesso democrático?
Aznar -
Acredito sinceramente que, em todas as mudanças que se façam, devem ser respeitados os procedimentos e as regras. O que me preocupa agora é que a democracia boliviana não seja de modo algum danificada.

Folha - Por que retirar-se da política tão jovem, com popularidade alta e com grandes possibilidades de obter uma terceira vitória consecutiva?
Aznar -
É uma questão de convicção pessoal. Creio que os mandatos devem ter limites razoáveis e, se não existem legalmente, eu me decido por ele pessoalmente.
Creio que a força dos países é dada pela força das instituições e das organizações representativas. Lideranças excessivamente prolongadas podem resultar, ao final, perturbadoras. Creio que é o melhor que posso fazer por meu país e por meu partido. E o faço. Às vezes, é mais fácil chegar que sair, mas como há que sair, é preciso procurar sair bem.


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