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São Francisco se transforma no rio da discórdia com obras
Projeto de transpor as águas coloca em lados opostos ribeirinhos e sertanejos
PAULO REBÊLO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O chão é árido a ponto de rachar. Os galhos quebram com
facilidade de tão secos. Açudes
e palmas de cactos que servem
como alimento de animais -e
até de seres humanos- também secam. Se vivo estivesse,
Graciliano Ramos certamente
diria que as vidas nunca deixaram de ser secas. Ele só não saberia explicar como pode haver
tanta água a poucos quilômetros de um cenário tão ríspido.
Às margens do rio São Francisco, o agricultor Valdemar
Bezerra Luna criou filhos e netos nessa região longe de grandes cidades e carente de infra-estrutura. Afinal, dos 84 anos
54 foram à beira do rio no sertão pernambucano. Depois de
tanto tempo, ele garante que
sua própria existência tornou-se uma extensão do rio, com benesses desde a água para consumo até a manutenção de uma
pequena roça com a qual alimenta a família. A vida de seu
Valdemar não é muito diferente da de milhares de famílias às
margens do gigantesco rio com
2.863 km de extensão, cuja nascente fica na Serra da Canastra
(MG). As turvas águas da bacia
hidrográfica do São Francisco
percorrem 504 municípios,
com população ribeirinha que
ultrapassa os 13 milhões.
Seu Valdemar anda curioso
com as conversas dos amigos
sobre o tal projeto do governo
de levar "um pouco d'água" para outros Estados do Nordeste.
Alheio à polêmica, ele duvida
de que o rio será prejudicado
como tanto falam. "Estamos
nos alimentando do rio e até
hoje não nos faltou, acho que se
tirar um pouquinho e levar para quem também precisa não
vai fazer mal", pondera. Nostálgico, lembra os bons tempos de
um vigoroso Velho Chico, bem
diferente da condição precária
de hoje, sem peixes e com água
impossível de beber sem o uso
controlado de remédios, como
o hipoclorito de sódio, por conta da poluição.
Pelas letras oficiais, o projeto
de transpor as águas do rio São
Francisco para abastecer partes do semi-árido nordestino
coloca em lados opostos governo, comunidade científica, ambientalistas, movimentos sociais e religiosos. O ponto comum que une os sertanejos -a
esperança da água- tornou-se
alicerce de uma discórdia entre
irmãos. Negros, índios, brancos, ricos, pobres, agricultores,
famílias inteiras. Acostumados
à crueldade imposta pelas secas
desde tempos imemoriais, agora falam em crueldade nos Estados vizinhos e dos técnicos do
governo que não querem explicar o que vai acontecer com o
rio. Conhecido como rio da integração nacional, hoje o São
Francisco torna-se o rio da discórdia ao colocar em pé de
guerra paraibanos, pernambucanos, baianos, sergipanos, cearenses e mineiros.
Não obstante a poluição, a vida às margens do São Francisco
não é tão ríspida quanto em outras locações sertanejas, como
ocorre com o casal de agricultores Ailton e Silvia Tavares, em
Monteiro (PB). No centro de
uma região seca e rochosa, à
primeira vista os Tavares são
privilegiados, pois moram a
poucos metros de um açude.
Mas a água é tão poluída e barrenta que até os animais rejeitam. E na região do Cariri paraibano, a dificuldade de conseguir o hipoclorito de sódio é notória, já que o produto é distribuído pelo Ministério da Saúde
-de acordo com a população
local, está constantemente em
falta. As pessoas estão sempre
doentes com ameba, principalmente crianças.
A esperança da população rural de Monteiro atende por um
nome: transposição. O agricultor Vlamir Bezerra Japyassu,
40, resume a espera ao repetir
que "não quer dinheiro, quer
apenas água". Para plantar,
produzir, comer e vender. Sem
água, garante, tudo morre. Eles
também. Silvia Tavares tem
uma fé quase cega de que, com a
transposição, os piores problemas acabam. "Quem tem em
abundância não sabe o que é
beber um copo de líquido barrento para sobreviver."
Em matéria de sobrevivência
pelo rio, poucos têm mais autoridade do que os índios trucás
nos arredores de Cabrobó, de
volta a Pernambuco, onde a
primeira etapa da gigantesca
obra da transposição tem início. Saindo do Recife, são seis
horas de estrada até este pequeno município de 28 mil habitantes. Os trucás são os maiores produtores de arroz em
Pernambuco e também abastecem várias cidades da região
com feijão e cebola. A tarde já
começa a cair e, para chegar ao
início das obras da transposição, é preciso percorrer mais
40 minutos entre rodovia e estrada de terra. A porteira de
acesso ao primeiro canal do eixo Norte, previsto para ligar
Pernambuco ao Ceará, está fechada. A entrada é proibida. E,
para desespero da população
que espera receber água da
transposição, as obras estão paradas novamente.
Com auxílio dos índios, é preciso ir de canoa a um caminho
alternativo, por onde o Exército não irá ver nossa chegada ao
local onde estão as primeiras
escavações. Os trucás reafirmam que ali naquela terra não
vão deixar o governo construir
nada, pois a terra é deles. Não
cansam de repetir que, pela
Constituição, não é permitido
construir nada em território
indígena sem a permissão dos
índios. Segundo o cacique Neguinho, líder do movimento
trucá de oposição às obras, não
houve nem sequer diálogo para
atender às reivindicações da
tribo. Em conjunto com a tribo
dos tumbalalás, do outro lado
do rio, já na Bahia, as lideranças
indígenas argumentam que o
São Francisco está morrendo e
o governo nunca se prontificou
a revitalizar a bacia, prejudicando toda a população ribeirinha. E agora, com a transposição, ambas as tribos acreditam
ser a oportunidade de ouro para levantar a bandeira histórica
da demarcação de terras. "Já
nos enganaram uma vez quando construíram a barragem de
Sobradinho, todo mundo tinha
peixe em abundância e, agora,
quem consegue pescar é um
sortudo. Não há mais nada. Não
vão nos enganar novamente",
afirma Neguinho.
Enquanto isso, na região que
espera a chegada das águas do
São Francisco pela transposição, as obras são aguardadas
como salvadoras de tempos secos e água escassa. No Cariri
paraibano, a população não
quer nem ouvir falar o nome
dos trucás. Teoricamente, a
área poderá ser uma das principais beneficiadas.
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