São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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QUESTÃO INDÍGENA

Só em 2005, cinco crianças caiuás morreram de desnutrição em área onde vivem 11 mil índios

Violência e álcool degradam aldeias

HUDSON CORRÊA
DA AGÊNCIA FOLHA, EM DOURADOS (MS)

A vida da índia caiuá Luzinete Vera Barbosa, 35, na aldeia Bororó, reflete bem os problemas que atingem a reserva de Dourados (a 218 km de Campo Grande), onde cinco crianças indígenas morreram este ano por causa da desnutrição. Três dessas mortes aconteceram na semana passada.
Quatro filhos de Luzinete morreram de doenças relacionadas à desnutrição desde 1992. O último deles, que tinha paralisia cerebral, morreu na quinta-feira passada.
A índia mora em um barraco com pouco mais de um metro de altura (dois de comprimento), coberto por lona preta, cujas paredes são formadas por pedaços de madeira, de telhas e outros remendos. Ela espera há um ano a Prefeitura de Dourados concluir a obra de uma casa que está só no alicerce, ao lado do barraco.
Marta, 31, a irmã, foi assassinada na aldeia em novembro passado pelo ex-marido, também índio, e deixou três crianças para Luzinete cuidar. Uma delas, um menino desnutrido de um ano e meio, está internada no hospital.
"Ele [o ex-marido] matou com várias facadas no rosto, nos braços, na barriga e ainda [hoje] faz ameaças. Anda de noite por aí", diz Cristina, 70, mãe de Luzinete.
O caiuá Emerson Vera Gonçalves, 46, marido de Luzinete, machucou a perna (ele não soube precisar que tipo de ferimento) e não pode mais trabalhar no corte de cana-de-açúcar, que emprega grande parte dos índios.
Para sobreviver, depende de cestas básicas do governo estadual. Mãe aos 15 anos, já teve oito filhos. No ano passado, fez cirurgia de ligadura de trompas para não engravidar mais.
"Na aldeia, tem muitas mães adolescentes. Não sabem cuidar de família. A criança não sabe falar, dizer que está com sede, e a mãe não sabe ver isso. Fica com vergonha até de ir pegar leite", diz o líder indígena caiuá Ambrózio Ricarte, 48.
Nas aldeias de Dourados, a reportagem encontrou duas mães adolescentes com crianças desnutridas. Uma delas, a guarani Neuza Duarte, 19, perdeu a filha de um ano e três meses por causa da desnutrição na semana passada.
"Aqui tem um pouco de cada problema. Adolescentes bebendo e fumando droga. Muita violência. Estamos tão perto da cidade. Vamos dizer que pegamos o costume do branco", afirma o capitão (líder máximo) da aldeia Bororó, o índio guarani Luciano Arévolo, 50.
Em junho do ano passado, quando dois índios da etnia caiuá de 16 e 15 anos foram mortos e decapitados por um índio que estava bêbado, a Funai (Fundação Nacional do Índio) anunciou com a Polícia Federal o fechamento das vias de acesso às aldeias para impedir a entrada de bebidas, pessoas não-índias e de drogas.
Oito meses depois, a área indígena está aberta de novo, afirma Arévolo. A operação da Funai não impediu que o ex-marido de Marta, a irmã de Luzinete, assassinasse a mulher em novembro.
A reserva indígena de Dourados é formada pelas aldeias Bororó e Jaguapiru. Nessas áreas onde vivem 11 mil índios, incluindo os da etnia terena, caberiam apenas 200 famílias, se fosse um assentamento nos moldes do programa de reforma agrária.
Egon Heck, coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), entidade ligada à Igreja Católica, diz que a falta do tekoha (terra considerada território sagrado) para os índios explica a miséria nas aldeias.
Dados da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) de 2004 apontam que em Dourados existem 232 crianças desnutridas e 357 abaixo do peso considerado normal. Isso dá 12% dos índios menores de cinco anos. "A cesta básica é pouca [são 2.900 distribuídas por mês a quase 50 mil índios]. Se tivesse terra, não faltaria a lavoura", afirma Arévolo.
"Tempos atrás existia caça. Hoje até água está difícil. A criança não pode nem tomar banho e chega a desnutrição", diz Ricarte. Pelas aldeias, crianças andam descalças e com roupas sujas.
O médico Franklin Amorim Sayão, 59, diretor do hospital da Missão Evangélica Caiuá, voltado aos índios, cita como outro problema, além da desnutrição, o alcoolismo que estimula a violência. "Temos medo de sair à noite por aí", lembra Luzinete. Sayão atende há 17 anos em Dourados.
Mesmo sem dados estatísticos, o médico afirma convicto que ao menos 20% da população indígena do sul do Estado é alcoólatra: "Mães dão álcool para os bebês pararem de chorar na aldeia".
Em meio há tantos problemas, estão os casos de suicídio. Foram 234 nos últimos cinco anos, segundo a Funasa, entre os índios das etnias guarani e caiuá, os mesmos de Dourados.


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