São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

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CELSO PINTO

A desvalorização sem teto definido

Até onde pode chegar o câmbio? A resposta a esta questão é uma das chaves para tentar entender qual será a estratégia do Banco Central para conduzir o país até as eleições presidenciais de outubro.
Numa regime de câmbio flutuante, a resposta deveria ser óbvia: o real será desvalorizado até o ponto que o mercado quiser. Na prática, abaixo do Equador existe o que alguns economistas batizaram de "medo de flutuar". A razão principal é que existe uma dívida enorme em dólares nas empresas e no governo, e uma desvalorização descontrolada pode ter um efeito devastador.
O presidente do BC, Armínio Fraga, não cansa de repetir que não defenderá nenhum nível de câmbio, mas insiste que não tem nenhum preconceito contra intervenções no mercado em momentos de exageros injustificados. No passado, interveio em diferentes momentos, com sucesso. O que fará agora?
É crucial tentar entender a situação das empresas com grandes dívidas em dólares. O aumento do prêmio de risco nos papéis do governo (refletido no Embi, ou risco Brasil, na casa dos 1.700 pontos) eleva enormemente o custo de qualquer captação privada, encurta os prazos e reduz a oferta. Nessa ordem, diz um banqueiro.
O mercado não se fechou completamente. A Odebrecht, por exemplo, está completando um operação superior a US$ 200 milhões, com apoio (mas não aval) do IFC, ligado ao Banco Mundial. Outras grandes empresas têm conseguido alguma coisa, normalmente com operações estruturadas. O BC calcula que a taxa de renovação de captações externas, daqui para a frente, ficará em torno de 65% do que está vencendo.
Duas questões devem ser consideradas. Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando o agravamento da crise externa levou o dólar a R$ 2,83, desta vez a surpresa foi menor. Muitas empresas já tinham hedge, proteção contra desvalorização. Grandes bancos não estão sentindo pressão por hedge nesta rodada de forte desvalorização. Quem quer dólar, em geral, são as tesourarias dos bancos, especialmente estrangeiros. Esses bancos, por princípio, sempre têm seu patrimônio líquido protegido contra desvalorização.
Além disso, todas as empresas sabiam, desde 2001, que haveria turbulência em meados deste ano em razão da eleição. Várias empresas, inclusive a Petrobras, anteciparam a rolagem dos vencimentos para fugir da confusão.
Quem não se preparou pode ter problemas para tomar dinheiro lá fora e até no mercado interno. Qual o risco de haver grandes calotes? Pequeno, dizem os presidentes de dois grandes bancos. Ambos acham que os bancos credores não teriam grande problema em reescalonar dívidas.
Até porque o centro do problema é datado: a definição após as eleições de outubro pode levar a uma reversão do nervosismo. Não faz sentido deixar um grande devedor quebrar agora. O executivo de um grande grupo industrial, com pesada dívida externa, tem a mesma percepção. De resto, num regime de câmbio flutuante, os dólares, por definição, estão disponíveis no mercado, a um preço. Se a empresa não paga, o problema é dela com seu credor, não do governo. Já tem sido assim, em alguns casos de inadimplência.
Neste segundo semestre vencem US$ 10,6 bilhões em amortizações e US$ 5,3 bilhões em juros em empréstimos e financiamentos de médio e longo prazos do setor privado. Não é pouco, mas não assusta. O efeito sobre os balanços das empresas será devastador, mas sempre existe a possibilidade de o governo permitir às empresas diferir os prejuízos, como já fez no passado.
Deixar o câmbio flutuar tem a vantagem de construir uma solução. Além de melhorar a balança comercial, uma sobredesvalorização pode inibir novas saídas, pelo medo de uma reversão, ou estimular novas entradas, pelas oportunidades nos preços. O lado ruim é que pode passar a impressão às pessoas de que o BC perdeu o controle e de que tudo pode piorar ainda mais.
O BC tem armas já mostradas para intervir e outras guardadas. Faz sentido: se usar um canhão agora, pode ficar sem munição mais à frente. Por enquanto, está tentando suavizar a desvalorização, não revertê-la bruscamente. Além de ter US$ 13,5 bilhões para gastar, o BC pode enxugar ainda mais a liquidez e reduzir a alavancagem em dólares permitida aos bancos (o que, de uma penada, poderia injetar alguns bilhões de dólares no mercado).
O mercado sabe disso. Tem bancos e fundos, especialmente de hedge, especulando em títulos da dívida, dólares e ações. Mas não há uma aposta única, como no tempo do câmbio fixo. Especula-se, realiza-se o ganho, remonta-se posições. Isso impede melhoras duradouras mas também refreia o ritmo da corrida contra o Brasil.
Difícil é o BC dosar esse jogo de gato e rato com o mercado sem permitir pânico entre investidores médios. A corrida por dólares existe, mas a proporção é ainda pequena. As saídas por CC-5, bom termômetro dessa corrida, foram de US$ 616 milhões em maio e US$ 545 milhões até agora neste mês. Esse volume se compara a uma média de US$ 509 milhões/mês em 2001, ou seja, é um sinal amarelo, não vermelho.

A culpa do FMI
Todos concordam que parte da culpa pela atual confusão foi a forte venda, pelo BC, de títulos públicos (LFTs) de longo prazo, a partir de fevereiro, "casadas" com a venda de "swaps" (proteção contra desvalorização no mercado futuro). O excesso de LFTs longas provocou deságio do título, o que levou o BC a antecipar a regra de marcação a mercado dos fundos. Houve prejuízos para os cotistas, fortes resgates e desconfiança em relação à dívida interna.
O que poucos sabem é que o BC foi obrigado a vender LFTs "casadas" com "swaps" por exigência do FMI. Foi a única forma do Fundo aceitar que o BC operasse no mercado futuro de derivativos. Só em maio o BC conseguiu convencer o FMI, a duras penas, a vender apenas o "swap", descasado da LFT, mas aí já era tarde demais e a ciranda da confusão já havia sido acionada.

E-mail:
CelPinto@uol.com.br



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