São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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BRASIL PROFUNDO

Para autor de livro sobre tema, débito é visto por vítima como motivo justo para ser privada da liberdade

Dívida legitima trabalho escravo, diz padre

GUILHERME BAHIA
DA REDAÇÃO

A dívida é uma forma de legitimar para o empregado e para o fazendeiro a exploração do regime de trabalho análogo à escravidão, diz o padre Ricardo Rezende Figueira, que concluiu no ano passado seu doutorado sobre o tema na Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
Essa coerção moral, como ele define, se alia ao uso da violência para sustentar a exploração do trabalhador. Neste ano, o padre transformou a tese de doutorado no livro "Pisando fora da própria sombra - A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo", onde apresenta também as ligações entre escravidão e migração.
A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - Por que o sr. diz que o trabalho escravo nunca é baseado apenas na coerção física?
Ricardo Rezende Figueira -
No caso da escravidão brasileira atual, sempre se exerce alguma coerção para reter o escravo no trabalho, sem ser necessariamente uma coerção física. Há outros mecanismos mais sutis, como o moral: a vítima está devendo e quem deve tem que trabalhar até saldar o débito. Além disso, um mecanismo eficiente de manter a pessoa presa ao trabalho é reter seus documentos, não lhe pagar e mantê-la longe da sua própria casa, da rede de amigos e parentes. A distância dificulta a solidariedade. Contudo, em determinadas situações na Amazônia, o empreiteiro trata o trabalhador com uma violência tão grande que parece não lhe interessar o que este pensa. Aí, a coerção é também física.

Folha - A dívida é suficiente para que o escravizado aceite a sua situação como legítima?
Figueira -
O pretexto da dívida muitas vezes é suficiente. Porém, não deixa de haver crime porque a vítima não tem consciência dele.

Folha - Há casos em que os trabalhadores defendem seus recrutadores, que teoricamente são seus opressores, da fiscalização, não é?
Figueira -
É verdade. Algumas vezes perguntei a trabalhadores como havia sido o período passado na fazenda. Respondiam que tinha sido bom, sem problemas. Perguntava então: havia o sistema de dívida? Sim, havia. Se estivesse devendo, podia sair? Não, não podia sair de forma alguma. O mesmo se passou entre um jornalista francês do "Le Monde Diplomatique" [periódico francês] e um dos maiores fazendeiros do sul do Pará, o falecido Jairo Andrade. Ele negou utilizar mão-de-obra escravizada, mas, quando o jornalista lhe perguntou se alguém estiver devendo, ele pode sair da sua fazenda, ele respondeu que não.

Folha - Na fazenda, se o chefe toma uma decisão vista como ilegítima, sua autoridade é contestada?
Figueira -
É contestada segundo as possibilidades. O trabalhador pode, por exemplo, trabalhar menos, trabalhar mal, ou até fugir. Em alguns casos, até matar o gato ou o fazendeiro. O grande drama é o pretexto da dívida, que funciona mesmo. A pessoa não quer ser chamada de ladrão. Quem deve, tem que pagar. A coerção moral pode ter um efeito mais devastador. É como na escravidão legal. Não havia gente armada para tomar conta dos escravos. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, era muito comum as famílias, mesmo as famílias pobres, terem escravos de aluguel. O escravo saía para a rua, ia trabalhar e trazia o dinheiro para o patrão. Mas o patrão não tinha controle absoluto. Não tinha um homem armado atrás do escravo. Ele tinha uma liberdade de ir e vir, mas não deixava de ser escravo. E por que não deixava? Porque, de certa forma, achava que o patrão estava fazendo o que a lei permitia. O escravo ia se rebelar se o patrão ultrapassasse algo que ele achava inadmissível.

Folha - Quais são as condições para que haja trabalho escravo?
Figueira -
Você pega o exemplo concreto do sul do Pará, em que se implantam muitas empresas e empreendimentos agropecuários e há uma escassez de mão-de-obra. Ao mesmo tempo, há uma superabundância de mão-de-obra disponível, por exemplo, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no Piauí, no Maranhão, no Ceará, onde há uma população que não consegue trabalho. A conjugação desses dois fatores propicia a utilização de mão-de-obra escrava. E tem que haver no meio disso aquele que vai ser o traficante de gente. Isso em todas as escravidões. Você pega no passado o exemplo do Brasil. Havia uma escassez de mão-de-obra no país e, ao mesmo tempo, havia a possibilidade de seqüestro e de compra de pessoas na África. Esses dois fatores propiciavam a existência da escravidão. Sem eles, ela não era possível.

Folha - O trabalho escravo está ligado a migrações.
Figueira -
Sim, porque o escravo é sempre de fora, nunca é de casa, por uma razão que é a fragilidade. Se você está longe da sua casa, da sua rede de parentesco e amizade, você tem menos chance de ser protegido. A dívida, por exemplo, é mais complicada de ser utilizada com gente da região. Por duas razões: uma, que as pessoas não vão pedir dinheiro emprestado porque têm outras alternativas. A segunda é que, se houver dívida, os parentes, os vizinhos poderão retirar a pessoa do trabalho escravo, e esse pretexto iria desaparecer.

Folha - Aqui em São Paulo há denúncias de trabalho escravo, mesmo com um alto índice de desemprego. Isso não contraria sua tese?
Figueira -
São Paulo tem uma sociedade civil mais organizada, que cobra mais. E a presença do Estado também é mais forte. Isso dificulta a contratação de pessoas com salários muito baixos. Os sindicatos reagiriam, o Ministério Público reagiria. Para usar a mão-de-obra aí, há a possibilidade com estrangeiros. Essas pessoas vão se submeter porque são prisioneiras do sistema de endividamento e também da ameaça: "Se você fugir ou reclamar, a gente comunica e você vai ser expulso do país".

Folha - É comum associar trabalho escravo a formas de produção atrasadas. Mas, no seu livro, o sr. afirma que ele existe em fazendas onde se pratica agricultura empresarial com técnicas avançadas.
Figueira -
Trabalho escravo não é incompatível com a existência do capitalismo mais moderno. Empresas com alta tecnologia, se houver condições favoráveis, são capazes de usarem formas de trabalho do Brasil pré-republicano.

Folha - O trabalho escravo afeta quantas pessoas no Brasil?
Figueira -
Ninguém sabe. O que tem sido dito pela Comissão Pastoral da Terra, e às vezes pela OIT, é que na área rural existem em torno de 25 mil pessoas. Mas podem ser muito mais. São estimativas difíceis. E não incluídas aí as pessoas da região urbana.


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