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ENTREVISTA DA 2ª
MARIA VICTORIA BENEVIDES
Governo não está ameaçado pelas elites porque elas estão representadas na administração federal
Para socióloga, tese de golpismo é "erro tático" dos governistas
FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Integrante da Comissão de Ética
Pública da Presidência da República e uma das fundadoras do
PT, a cientista política e socióloga
Maria Victoria Benevides, 62, vê
"erro tático" na reação dos governistas à crise política, baseada em
larga escala na denúncia a supostas pretensões golpistas das elites.
"Há exagero em usar a palavra
golpismo. Este governo não está
tão ameaçado assim, nem pela esquerda, nem pela direita, que está
muito satisfeita com a política
econômica", afirma Benevides,
professora da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo, em entrevista à Folha.
A retórica antigolpista do PT e
de governistas, em sua visão, é
uma tentativa de atrair os movimentos sociais para a órbita do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que acabou acontecendo em
dois eventos na semana passada,
em Luziânia (GO) e Brasília.
Para Benevides, mobilizar entidades como CUT e MST para defender Lula das elites mostra falta
de coerência. "Tem que dar nome
a essas elites. Porque fazer isso,
mas continuar com alguns ministros que são os mais ardorosos
defensores dessas elites, fica meio
esquisito", afirma.
A professora é representante de
um grupo hoje restrito, o dos intelectuais que se mantêm atuantes
dentro do PT. Ela foi da comissão
que elaborou o programa de governo de Lula em 2002, sob a
coordenação do hoje ministro da
Fazenda, Antonio Palocci Filho,
mas hoje não esconde a frustração com a política econômica.
Também ocupou o cargo de
"ouvidora" da campanha -espécie de ombudsman- e diz que já
naquela época identificava preocupações quanto aos rumos que o
partido seguia sobre a política
econômica e a de alianças.
Nem tudo é crítica. Benevides
elogia várias das ações do governo
de combate à corrupção, como o
trabalho da Polícia Federal, do
Ministério da Justiça e da Controladoria Geral da União.
Mas ela se mostra preocupada
com a imagem que as atuais acusações deixarão sobre seu partido.
O erro foi o PT achar que a sua
bandeira ética era tão forte que
nada poderia ameaçá-la.
Para Benevides, a governabilidade a qualquer custo, baseada na
aliança com legendas de centro e
direita, está cobrando um preço
ético alto demais para o partido, o
que pode se agravar com a reforma ministerial. "A reforma pode
aumentar a tão desejada governabilidade, mas tem que se pensar, e
isso também é uma questão ética,
que preço se está pagando por essa governabilidade", disse. Ela falou à Folha na sexta-feira.
Folha - O PT e o governo vêm denunciando uma tentativa da oposição de desestabilizar as instituições. Alguns insinuam golpismo,
ou golpismo branco. A sra. concorda com isso?
Maria Victoria
Benevides - Não
concordo com
golpismo, branco
ou de outra cor.
Há exagero em
usar essa palavra.
Este governo não
está tão ameaçado assim, nem pela esquerda, nem
pela direita. A esquerda -e aí eu
situo o MST, a
Central de Movimentos Populares
etc.- não vai
querer dar golpe
nenhum nesse
governo porque
sabe perfeitamente que é ruim com
ele, pior sem ele.
A prova é a sutileza com a qual o MST e outros
movimentos de esquerda estão se
manifestando com relação à crise
atual. E, do outro lado, a direita
está usando a questão da corrupção na disputa partidária e eleitoral, não por um compromisso
moral. Ao mesmo tempo, eles estão muito satisfeitos com a política econômica. Enquanto ela se
mantiver, a direita não vai querer
dar golpe nenhum.
O que há não é golpismo, mas
um jogo político pesado, que se
explicita quando altas lideranças
do tucanato dizem que têm que
sangrar o Lula, mas não desestabilizar o governo. Eles não têm interesse, acham que têm chance de
ganhar as eleições, mas não querem a fama de golpistas.
Folha - Quando fala em golpismo
o governo federal não acaba jogando lenha na fogueira da crise? E colocando em dúvida a força das instituições?
Benevides - O tema vem à tona
devido ao acúmulo de crises e de
notícias de corrupção, que teve na
nossa história um antecedente notório
que foi o mar de lama
no governo Getúlio
Vargas. O governo
tem de fazer o que o
presidente Lula fez
recentemente. Enfatizar o papel do Ministério da Justiça, da
Controladoria Geral
da União, da Polícia
Federal. O presidente
tem toda a razão
quando diz que essas
três instituições nunca trabalharam tanto.
O discurso tem que
ser esse. Eu avalio a
reação do governo
como um erro de comunicação, no sentido de que certamente
houve muitas reuniões para decidir qual seria a melhor resposta e ganhou essa. Eu
acho que é um erro de tática. Essa
linguagem de golpe teve um endereço muito claro, que é mobilizar as bases tradicionais do partido, e está conseguindo. Mas o governo tem de estar muito atento
para o que diz a Carta ao Povo
Brasileiro, que essas entidades divulgaram e que eu também apóio.
Ali exigem a mudança na política
econômica, o combate ferrenho
às denúncias de corrupção e uma
reforma política que amplie a participação popular do ponto de vista constitucional, mudando o regulamento de plebiscitos para que
o povo possa participar melhor.
Folha - O presidente Lula está
adotando uma estratégia de cercar-se de movimentos sociais para
defender o presidente das elites. O
que a sra. acha desse expediente?
Benevides - Tem que dar nome a
essas elites. Porque fazer isso, mas
continuar com alguns ministros
que são os mais ardorosos defensores dessas elites, fica meio esquisito. Que elites são essas que
estão contra o Lula? São os exportadores, os latifundiários? Mas
eles estão representados no ministro Roberto Rodrigues [da
Agricultura]. O grande capital, o
grande capital comercial? Estão
representados em várias pessoas
do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social. Então eu não
gosto dessa coisa. O que tem que
ficar claro é em que medida realmente está se enfrentando o poder econômico dos que sempre
mandaram no Brasil.
Folha - E a sra. acha que está?
Benevides - Eu acho que não.
Por isso não faz sentido dizer que
o governo está sendo massacrado
pelas elites. O que o governo tem
feito que está incomodando as elites?
Folha - A política de alianças está
na origem dessa crise, a disputa entre os aliados. O PT errou nesse processo?
Benevides - Todo governo tem
que fazer alianças políticas. Isso é
óbvio, porque num sistema partidário eleitoral como o nosso, no
presidencialismo que nós temos,
essas alianças são inevitáveis. Mas
há alianças e alianças. O PT fazer
aliança com [o vice-presidente]
José de Alencar, do PL, é uma coisa, agora fazer aliança com o PTB
de Roberto Jefferson [deputado
federal], com o PP de [Paulo] Maluf [ex-prefeito de São Paulo] e de
[Jair] Bolsonaro [deputado federal pelo PP-RJ], aí é complicado.
Folha - Mas então como se faz?
Uma aliança mais restrita? Como se
constrói maioria?
Benevides - Eu acho que em primeiro lugar tem que se modificar
esse sistema. Por que sempre escolher a governabilidade em detrimento da representatividade?
Por que não se enfrentou realmente a reforma política no sentido de proibir essa lambança partidária? Todo mundo fala em fidelidade partidária contanto que seja
para os outros. Mas nem uma reforma política adianta enquanto
não se enfrentar realmente o sistema de poder no Brasil e, principalmente, ver o que se pode apresentar como um projeto.
Folha - A sra. então não acha que
a reforma política resolve esses
problemas de uma vez por todas,
como tem sido colocado?
Benevides - Não. Ela é importante, mas não é uma panacéia.
Folha - Onde é insuficiente?
Benevides - Ela não adiantará
nada se não houver um projeto
político de desenvolvimento sustentável que conte com o apoio do
povo. E isso atualmente não acontece. Não temos esse projeto. Esse
projeto não combina com a atual
política macroeconômica.
Folha - O ex-ministro José Dirceu
disse na mais recente reunião do
Diretório Nacional do PT que não
fazia autocrítica da política de
alianças porque não há outro caminho. A sra. concorda?
Benevides - Há um outro caminho. Há alternativas, e isso eu ouvi muito durante toda a campanha. E ouvi que havia alternativa
ao modelo econômico, e fiquei esperando isso. Aliás, estou esperando isso até agora. Com relação
à política de alianças, a gente escutava que havia a banda séria do
PMDB, sei lá, Pedro Simon [senador gaúcho] e outros, que existe
gente séria no PDT, no PPS, existe
gente ótima em outros partidos
como o PSDB, que poderiam dar
uma contribuição muito melhor
que o PP, o PTB. Não é enfatizar
um moralismo, é deixar claro que
o compromisso é com a governabilidade em nome de um projeto
de nação, e não de um projeto de
poder só. Poder para fazer o quê?
Folha - A sra. foi ouvidora da campanha do Lula, que foi quando se
desenhou esse modelo de aliança...
Benevides - Isso tudo foi disputado, tinha muita
gente que era contra.
Folha - Mas já havia dois movimentos: de caminhar para o centro, centro-direita, ao mesmo
tempo em que se escanteava a esquerda partidária.
Benevides - Naquela época eu
acreditava bastante
que o fato importantíssimo de se
colocar um partido
com o histórico do
PT e uma personalidade como o Lula
na Presidência da
República já teria
um tal impacto de
autoridade moral
que a perspectiva me parecia promissora.
Folha - Isso se cumpriu?
Benevides - Em alguns campos,
sim. Eu tenho os maiores elogios
para a política de combate à corrupção, com Márcio Thomaz
Bastos [ministro da Justiça], Waldir Pires [ministro-chefe da Controladoria Geral da União], uma
parte importante da Polícia Federal, com vários parlamentares que
estão atuando nisso. Tenho o
maior respeito pela política externa. E a idéia de unificar os projetos sociais em torno do Bolsa Família foi uma boa idéia, mas é
muito, muito insuficiente. É muito pouco diante do que se esperava de um governo de esquerda e
principalmente muito pouco em
função de que fica na dependência de uma mudança na política
macroeconômica.
Folha - Como fica o governo daqui para a frente, com uma reforma
ministerial em que o PT terá seu espaço reduzido? O governo caminhará para a direita?
Benevides - Não sei como vai ficar, mas não se pode dizer que seja um governo de esquerda, isso
não se pode. Não é um governo de
esquerda. Seria um governo de
centro-esquerda que aspira a ser
um governo social-democrata. A
reforma ministerial pode aumentar a tão desejada governabilidade, porque governabilidade é importante. Mas tem que se pensar,
e isso também é uma questão ética, que preço se está pagando por
essa governabilidade. Porque o
preço pode ser tão alto que acaba
se tendo governabilidade para
continuar aprovando a política
econômica contra a qual muitos
de nós estamos lutando.
Folha - O PT sempre teve uma forte bandeira ética, que inclusive
rendeu dividendos eleitorais para
o partido. A sra. acha que essa
identificação está ameaçada?
Benevides - Eu acho que está
ameaçada e esse é um grande problema que está nos deixando
muito aflitos. Nosso empenho
agora é recuperar
essa bandeira e
principalmente enfrentar o sensacionalismo da imprensa, que nunca fez
nada disso em relação ao governo Fernando Henrique,
que o protegeu e o
blindou.
Folha - Mas é só culpa da imprensa ou o
PT tem uma certa
culpa nisso?
Benevides - Claro.
O que aconteceu
com o PT é achar
que a sua bandeira
era tão forte que nada poderia ameaçá-la. Não que pudesse
fazer qualquer coisa, mas é aquilo: "O
PT é do bem, então se tem alguém
que se mistura, o lado do bem do
PT tende a predominar, até pela
sua força moral". Mas não há força moral que enquadre Roberto
Jefferson, não há força moral que
enquadre aqueles que mudam de
partido porque se vendem. E isso
acho que o PT não tinha claro. O
PT achava que a sua força moral, a
sua história, seriam suficientes
para enfrentar essas mazelas do
nosso sistema político, que são seculares. Mas não são suficientes.
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