São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

MARIA VICTORIA BENEVIDES

Governo não está ameaçado pelas elites porque elas estão representadas na administração federal

Para socióloga, tese de golpismo é "erro tático" dos governistas

FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Integrante da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e uma das fundadoras do PT, a cientista política e socióloga Maria Victoria Benevides, 62, vê "erro tático" na reação dos governistas à crise política, baseada em larga escala na denúncia a supostas pretensões golpistas das elites.
"Há exagero em usar a palavra golpismo. Este governo não está tão ameaçado assim, nem pela esquerda, nem pela direita, que está muito satisfeita com a política econômica", afirma Benevides, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em entrevista à Folha.
A retórica antigolpista do PT e de governistas, em sua visão, é uma tentativa de atrair os movimentos sociais para a órbita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que acabou acontecendo em dois eventos na semana passada, em Luziânia (GO) e Brasília.
Para Benevides, mobilizar entidades como CUT e MST para defender Lula das elites mostra falta de coerência. "Tem que dar nome a essas elites. Porque fazer isso, mas continuar com alguns ministros que são os mais ardorosos defensores dessas elites, fica meio esquisito", afirma.
A professora é representante de um grupo hoje restrito, o dos intelectuais que se mantêm atuantes dentro do PT. Ela foi da comissão que elaborou o programa de governo de Lula em 2002, sob a coordenação do hoje ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, mas hoje não esconde a frustração com a política econômica.
Também ocupou o cargo de "ouvidora" da campanha -espécie de ombudsman- e diz que já naquela época identificava preocupações quanto aos rumos que o partido seguia sobre a política econômica e a de alianças.
Nem tudo é crítica. Benevides elogia várias das ações do governo de combate à corrupção, como o trabalho da Polícia Federal, do Ministério da Justiça e da Controladoria Geral da União.
Mas ela se mostra preocupada com a imagem que as atuais acusações deixarão sobre seu partido. O erro foi o PT achar que a sua bandeira ética era tão forte que nada poderia ameaçá-la.
Para Benevides, a governabilidade a qualquer custo, baseada na aliança com legendas de centro e direita, está cobrando um preço ético alto demais para o partido, o que pode se agravar com a reforma ministerial. "A reforma pode aumentar a tão desejada governabilidade, mas tem que se pensar, e isso também é uma questão ética, que preço se está pagando por essa governabilidade", disse. Ela falou à Folha na sexta-feira.
 

Folha - O PT e o governo vêm denunciando uma tentativa da oposição de desestabilizar as instituições. Alguns insinuam golpismo, ou golpismo branco. A sra. concorda com isso?
Maria Victoria Benevides -
Não concordo com golpismo, branco ou de outra cor. Há exagero em usar essa palavra. Este governo não está tão ameaçado assim, nem pela esquerda, nem pela direita. A esquerda -e aí eu situo o MST, a Central de Movimentos Populares etc.- não vai querer dar golpe nenhum nesse governo porque sabe perfeitamente que é ruim com ele, pior sem ele.
A prova é a sutileza com a qual o MST e outros movimentos de esquerda estão se manifestando com relação à crise atual. E, do outro lado, a direita está usando a questão da corrupção na disputa partidária e eleitoral, não por um compromisso moral. Ao mesmo tempo, eles estão muito satisfeitos com a política econômica. Enquanto ela se mantiver, a direita não vai querer dar golpe nenhum.
O que há não é golpismo, mas um jogo político pesado, que se explicita quando altas lideranças do tucanato dizem que têm que sangrar o Lula, mas não desestabilizar o governo. Eles não têm interesse, acham que têm chance de ganhar as eleições, mas não querem a fama de golpistas.

Folha - Quando fala em golpismo o governo federal não acaba jogando lenha na fogueira da crise? E colocando em dúvida a força das instituições?
Benevides -
O tema vem à tona devido ao acúmulo de crises e de notícias de corrupção, que teve na nossa história um antecedente notório que foi o mar de lama no governo Getúlio Vargas. O governo tem de fazer o que o presidente Lula fez recentemente. Enfatizar o papel do Ministério da Justiça, da Controladoria Geral da União, da Polícia Federal. O presidente tem toda a razão quando diz que essas três instituições nunca trabalharam tanto. O discurso tem que ser esse. Eu avalio a reação do governo como um erro de comunicação, no sentido de que certamente houve muitas reuniões para decidir qual seria a melhor resposta e ganhou essa. Eu acho que é um erro de tática. Essa linguagem de golpe teve um endereço muito claro, que é mobilizar as bases tradicionais do partido, e está conseguindo. Mas o governo tem de estar muito atento para o que diz a Carta ao Povo Brasileiro, que essas entidades divulgaram e que eu também apóio. Ali exigem a mudança na política econômica, o combate ferrenho às denúncias de corrupção e uma reforma política que amplie a participação popular do ponto de vista constitucional, mudando o regulamento de plebiscitos para que o povo possa participar melhor.

Folha - O presidente Lula está adotando uma estratégia de cercar-se de movimentos sociais para defender o presidente das elites. O que a sra. acha desse expediente?
Benevides -
Tem que dar nome a essas elites. Porque fazer isso, mas continuar com alguns ministros que são os mais ardorosos defensores dessas elites, fica meio esquisito. Que elites são essas que estão contra o Lula? São os exportadores, os latifundiários? Mas eles estão representados no ministro Roberto Rodrigues [da Agricultura]. O grande capital, o grande capital comercial? Estão representados em várias pessoas do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Então eu não gosto dessa coisa. O que tem que ficar claro é em que medida realmente está se enfrentando o poder econômico dos que sempre mandaram no Brasil.

Folha - E a sra. acha que está?
Benevides -
Eu acho que não. Por isso não faz sentido dizer que o governo está sendo massacrado pelas elites. O que o governo tem feito que está incomodando as elites?

Folha - A política de alianças está na origem dessa crise, a disputa entre os aliados. O PT errou nesse processo?
Benevides -
Todo governo tem que fazer alianças políticas. Isso é óbvio, porque num sistema partidário eleitoral como o nosso, no presidencialismo que nós temos, essas alianças são inevitáveis. Mas há alianças e alianças. O PT fazer aliança com [o vice-presidente] José de Alencar, do PL, é uma coisa, agora fazer aliança com o PTB de Roberto Jefferson [deputado federal], com o PP de [Paulo] Maluf [ex-prefeito de São Paulo] e de [Jair] Bolsonaro [deputado federal pelo PP-RJ], aí é complicado.

Folha - Mas então como se faz? Uma aliança mais restrita? Como se constrói maioria?
Benevides -
Eu acho que em primeiro lugar tem que se modificar esse sistema. Por que sempre escolher a governabilidade em detrimento da representatividade? Por que não se enfrentou realmente a reforma política no sentido de proibir essa lambança partidária? Todo mundo fala em fidelidade partidária contanto que seja para os outros. Mas nem uma reforma política adianta enquanto não se enfrentar realmente o sistema de poder no Brasil e, principalmente, ver o que se pode apresentar como um projeto.

Folha - A sra. então não acha que a reforma política resolve esses problemas de uma vez por todas, como tem sido colocado?
Benevides -
Não. Ela é importante, mas não é uma panacéia.

Folha - Onde é insuficiente?
Benevides -
Ela não adiantará nada se não houver um projeto político de desenvolvimento sustentável que conte com o apoio do povo. E isso atualmente não acontece. Não temos esse projeto. Esse projeto não combina com a atual política macroeconômica.

Folha - O ex-ministro José Dirceu disse na mais recente reunião do Diretório Nacional do PT que não fazia autocrítica da política de alianças porque não há outro caminho. A sra. concorda?
Benevides -
Há um outro caminho. Há alternativas, e isso eu ouvi muito durante toda a campanha. E ouvi que havia alternativa ao modelo econômico, e fiquei esperando isso. Aliás, estou esperando isso até agora. Com relação à política de alianças, a gente escutava que havia a banda séria do PMDB, sei lá, Pedro Simon [senador gaúcho] e outros, que existe gente séria no PDT, no PPS, existe gente ótima em outros partidos como o PSDB, que poderiam dar uma contribuição muito melhor que o PP, o PTB. Não é enfatizar um moralismo, é deixar claro que o compromisso é com a governabilidade em nome de um projeto de nação, e não de um projeto de poder só. Poder para fazer o quê?

Folha - A sra. foi ouvidora da campanha do Lula, que foi quando se desenhou esse modelo de aliança...
Benevides -
Isso tudo foi disputado, tinha muita gente que era contra.

Folha - Mas já havia dois movimentos: de caminhar para o centro, centro-direita, ao mesmo tempo em que se escanteava a esquerda partidária.
Benevides -
Naquela época eu acreditava bastante que o fato importantíssimo de se colocar um partido com o histórico do PT e uma personalidade como o Lula na Presidência da República já teria um tal impacto de autoridade moral que a perspectiva me parecia promissora.

Folha - Isso se cumpriu?
Benevides -
Em alguns campos, sim. Eu tenho os maiores elogios para a política de combate à corrupção, com Márcio Thomaz Bastos [ministro da Justiça], Waldir Pires [ministro-chefe da Controladoria Geral da União], uma parte importante da Polícia Federal, com vários parlamentares que estão atuando nisso. Tenho o maior respeito pela política externa. E a idéia de unificar os projetos sociais em torno do Bolsa Família foi uma boa idéia, mas é muito, muito insuficiente. É muito pouco diante do que se esperava de um governo de esquerda e principalmente muito pouco em função de que fica na dependência de uma mudança na política macroeconômica.

Folha - Como fica o governo daqui para a frente, com uma reforma ministerial em que o PT terá seu espaço reduzido? O governo caminhará para a direita?
Benevides -
Não sei como vai ficar, mas não se pode dizer que seja um governo de esquerda, isso não se pode. Não é um governo de esquerda. Seria um governo de centro-esquerda que aspira a ser um governo social-democrata. A reforma ministerial pode aumentar a tão desejada governabilidade, porque governabilidade é importante. Mas tem que se pensar, e isso também é uma questão ética, que preço se está pagando por essa governabilidade. Porque o preço pode ser tão alto que acaba se tendo governabilidade para continuar aprovando a política econômica contra a qual muitos de nós estamos lutando.

Folha - O PT sempre teve uma forte bandeira ética, que inclusive rendeu dividendos eleitorais para o partido. A sra. acha que essa identificação está ameaçada?
Benevides -
Eu acho que está ameaçada e esse é um grande problema que está nos deixando muito aflitos. Nosso empenho agora é recuperar essa bandeira e principalmente enfrentar o sensacionalismo da imprensa, que nunca fez nada disso em relação ao governo Fernando Henrique, que o protegeu e o blindou.

Folha - Mas é só culpa da imprensa ou o PT tem uma certa culpa nisso?
Benevides -
Claro. O que aconteceu com o PT é achar que a sua bandeira era tão forte que nada poderia ameaçá-la. Não que pudesse fazer qualquer coisa, mas é aquilo: "O PT é do bem, então se tem alguém que se mistura, o lado do bem do PT tende a predominar, até pela sua força moral". Mas não há força moral que enquadre Roberto Jefferson, não há força moral que enquadre aqueles que mudam de partido porque se vendem. E isso acho que o PT não tinha claro. O PT achava que a sua força moral, a sua história, seriam suficientes para enfrentar essas mazelas do nosso sistema político, que são seculares. Mas não são suficientes.

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