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São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

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Médico se adapta às tradições e leva pajé nas consultas

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO NEGRO

O cirurgião gaúcho Oscar Espellet Soares, 38, é uma figura mitológica para os índios. Em quatro anos na mata, aprendeu a respeitar os complexos desejos e tradições de seus pacientes, os 21 mil índios que vivem no Médio e Alto Rio Negro.
Por onde caminha e por onde navega, Oscar sempre carrega sua enorme mochila com instrumentos cirúrgicos e medicamentos essenciais.
Quarta-feira. O "doutor Oscar" está voltando de 20 dias na selva. Sua base, um dos pólos da parceria com a Funasa (Fundação Nacional de Saúde), é Iuaureté, comunidade indígena na divisa com a Colômbia.
Sua missão agora é chegar a Santo Atanásio, uma das mais inóspitas aldeias dos hupdas, doentes e desnutridos.
A previsão é de um dia de viagem. Três horas descendo o rio Uaupés, quatro horas em igarapés e outras três horas caminhando em trilhas.
Seria assim se o barco do "doutor Oscar" não fosse reconhecido nas margens dos rios e se, pelo rádio, as comunidades não pedissem o auxílio do "doutor".
No dia seguinte, Oscar visita cada uma das famílias, examinando crianças com vermes, medindo a pressão dos velhos e apalpando a barriga das "buchudas", as muitas grávidas de 13, 15, 17 anos.
Com olhos de antropólogo autodidata, ele aprendeu a convidar o benzedor ou o pajé para visitar os doentes com ele.
"Na presença deles, o paciente tem mais confiança e toma a medicação", conta.
O grupo parte na manhã de sábado para fazer uma cirurgia na aldeia Fazendinha, às margens do Uaupés.
Como não chovera nos dias anteriores, os igarapés baixaram muito e os troncos emergiram num emaranhado difícil de ser atravessado.
Sentado na proa, Oscar indica os caminhos mais plausíveis ao barqueiro, mas o barco com frequência entala em troncos e árvores atravessados no rio.
A viagem, que tomaria três horas, levou seis, e o "doutor" caiu três vezes na água.
Com quatro horas de atraso, às 15h, o grupo atraca na Fazendinha. Lá está Venceslau Fonseca, 58, corajoso, cego e esperançoso.
O "campo cirúrgico" é montado dentro da maloca. Venceslau deita-se no banco, o médico se senta na cabeceira, e cada palavra vai sendo traduzida pelo técnico em enfermagem Plínio José Ferraz, da etnia uanano, que fala a língua tukano.
Venceslau sofre de tracoma, uma doença que o Brasil já diz ter erradicado, mas que brota nas regiões de maior miséria. As vítimas sentem as pálpebras raspando as córneas, num processo doloroso que dura anos e acaba cegando.
Essa é a 77ª cirurgia de tracoma que Oscar está fazendo em "campo aberto", seguindo recomendações da Organização Mundial da Saúde. Se tentasse levar o paciente a um hospital, ele se recusaria.
Venceslau poderá voltar a caçar. Para sobreviver, seu grupo hupda leva duas horas de barco para emprestar uma espingarda dos tukanos da outra margem. Se naquela noite caçar algo, terão o que comer. Se não, passarão fome.
Segunda-feira. O médico está a caminho de São Gabriel da Cachoeira, 14 horas de voadeira rio abaixo, onde está a sede da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).
A equipe dorme em Taracuá, onde surgem, no meio da mata, as torres imponentes da igreja e dois majestosos prédios que formavam o complexo salesiano do Uaupés. Nas décadas de 40 e 50, essa grande estrutura abrigou 600 crianças e adolescentes indígenas em regime de internato.
São 18h, e os sinos das torres soam pelo vasto rio. Alguns padres e freiras rezam na grande nave, até que os índios vão chegando, interessados na grande TV que mostrará a novela das oito.



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