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Médico se adapta às tradições e leva pajé nas consultas
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO NEGRO
O cirurgião gaúcho Oscar Espellet Soares, 38, é uma figura mitológica para os índios. Em quatro
anos na mata, aprendeu a respeitar os complexos desejos e tradições de seus pacientes, os 21 mil
índios que vivem no Médio e Alto
Rio Negro.
Por onde caminha e por onde
navega, Oscar sempre carrega sua
enorme mochila com instrumentos cirúrgicos e medicamentos essenciais.
Quarta-feira. O "doutor Oscar"
está voltando de 20 dias na selva.
Sua base, um dos pólos da parceria com a Funasa (Fundação Nacional de Saúde), é Iuaureté, comunidade indígena na divisa com
a Colômbia.
Sua missão agora é chegar a
Santo Atanásio, uma das mais
inóspitas aldeias dos hupdas,
doentes e desnutridos.
A previsão é de um dia de viagem. Três horas descendo o rio
Uaupés, quatro horas em igarapés
e outras três horas caminhando
em trilhas.
Seria assim se o barco do "doutor Oscar" não fosse reconhecido
nas margens dos rios e se, pelo rádio, as comunidades não pedissem o auxílio do "doutor".
No dia seguinte, Oscar visita cada uma das famílias, examinando
crianças com vermes, medindo a
pressão dos velhos e apalpando a
barriga das "buchudas", as muitas grávidas de 13, 15, 17 anos.
Com olhos de antropólogo autodidata, ele aprendeu a convidar
o benzedor ou o pajé para visitar
os doentes com ele.
"Na presença deles, o paciente
tem mais confiança e toma a medicação", conta.
O grupo parte na manhã de sábado para fazer uma cirurgia na
aldeia Fazendinha, às margens do
Uaupés.
Como não chovera nos dias anteriores, os igarapés baixaram
muito e os troncos emergiram
num emaranhado difícil de ser
atravessado.
Sentado na proa, Oscar indica
os caminhos mais plausíveis ao
barqueiro, mas o barco com frequência entala em troncos e árvores atravessados no rio.
A viagem, que tomaria três horas, levou seis, e o "doutor" caiu
três vezes na água.
Com quatro horas de atraso, às
15h, o grupo atraca na Fazendinha. Lá está Venceslau Fonseca,
58, corajoso, cego e esperançoso.
O "campo cirúrgico" é montado
dentro da maloca. Venceslau deita-se no banco, o médico se senta
na cabeceira, e cada palavra vai
sendo traduzida pelo técnico em
enfermagem Plínio José Ferraz,
da etnia uanano, que fala a língua
tukano.
Venceslau sofre de tracoma,
uma doença que o Brasil já diz ter
erradicado, mas que brota nas regiões de maior miséria. As vítimas
sentem as pálpebras raspando as
córneas, num processo doloroso
que dura anos e acaba cegando.
Essa é a 77ª cirurgia de tracoma
que Oscar está fazendo em "campo aberto", seguindo recomendações da Organização Mundial da
Saúde. Se tentasse levar o paciente
a um hospital, ele se recusaria.
Venceslau poderá voltar a caçar.
Para sobreviver, seu grupo hupda
leva duas horas de barco para emprestar uma espingarda dos tukanos da outra margem. Se naquela
noite caçar algo, terão o que comer. Se não, passarão fome.
Segunda-feira. O médico está a
caminho de São Gabriel da Cachoeira, 14 horas de voadeira rio
abaixo, onde está a sede da Foirn
(Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro).
A equipe dorme em Taracuá,
onde surgem, no meio da mata, as
torres imponentes da igreja e dois
majestosos prédios que formavam o complexo salesiano do
Uaupés. Nas décadas de 40 e 50,
essa grande estrutura abrigou 600
crianças e adolescentes indígenas
em regime de internato.
São 18h, e os sinos das torres
soam pelo vasto rio. Alguns padres e freiras rezam na grande nave, até que os índios vão chegando, interessados na grande TV
que mostrará a novela das oito.
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