São Paulo, domingo, 27 de novembro de 2005

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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ O DISCURSO

Inversão de papéis faz discursos de partidos divergentes coincidirem; para especialistas, o problema é a mudança de "princípios"

Situação e oposição revezam linguagem

CRISTINA FIBE
DA REDAÇÃO

Na última sexta-feira, o vice-presidente, José Alencar, reconheceu que "o discurso de campanha não assumiu o governo [Lula]". Antes dele, o ministro Antonio Palocci (Fazenda) chegou a fazer um mea-culpa, em depoimento no Senado no dia 16 deste mês, dizendo que o PT muitas vezes foi agressivo demais quando oposição.
"Alguns de vocês [senadores] talvez tenham sofrido com o estilo briguento do PT", disse o ministro. "Faz parte de uma construção democrática."
A inversão de papéis -com o PT na situação e uma oposição composta por adversários que já estiveram no governo- causou mudanças drásticas nos discursos de ambos e gerou enunciados que, muitas vezes, se afinam.
O quadro ao lado propõe mostrar esta coincidência de discursos que, segundo especialistas ouvidos pela Folha, é "compreensível", já que políticos não defendem posições individuais.
"Se está na oposição, um político fala coisas que jamais falaria na situação. É compreensível. As pessoas não falam individualmente, mas enquanto parte de um certo tipo de relação social e política", diz Eduardo Guimarães, professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Jogo de forças
"Se eu digo "o dia está claro", se é no cotidiano, é uma coisa. Se é um político, ele não está mais falando sobre o dia, mas sobre o cenário político. A posição que ele ocupa é parte do sentido", afirma o lingüista. "Não estão em questão as crenças, é um jogo de relações de força. [O político] Fala como parte desse jogo."
Marcus Figueiredo, cientista político do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio), acrescenta que a mudança, em casos como a defesa ou não de comissões de investigação, não é uma exclusividade do Brasil.
No governo FHC, petistas acusavam governistas de abafar CPIs para evitar investigações de irregularidades que abalassem a gestão tucana. Na atual crise política, o PT assumiu postura contra a instalação das comissões.
"Em função da posição que ocupam, em todos os parlamentos do mundo, as oposições e os partidos minoritários têm nas CPIs o principal instrumento de ação política. Isso é da natureza da oposição, provocar, e de quem está na situação, evitar", explica o cientista político.

Valores
Mudar de posição é compreensível, "deixar os valores de lado é que é grave". Para Eduardo Guimarães, o caso do PT tem uma particularidade: o fato de o partido ter aberto mão de princípios que pregava.
"O que complica é que o PT inverte os valores. Era de oposição, mas tinha outros compromissos, como o de modificar o processo político brasileiro", diz o professor. "Não deixa de ser uma questão de linguagem, e aquilo sobre o que se fala é um valor."
Além de mudar o discurso, afirma, o partido "abdica do valor de mudar o processo político brasileiro, o que dá um efeito particular. Não só muda de posição, o que é normal, mas junto deixa de lado valores que tinha como fundamentais."
Figueiredo concorda: "O PT, realmente, com as posições que tem defendido, principalmente na área econômica, mudou de posição, não de linguagem".
"E a mudança de posição do PT é que é mais complicada. Algumas lideranças até já declararam reconhecer erros do passado de linguagens mais agressivas." O cientista político afirma que, como hoje, pode ser que os partidos atualmente na oposição também reconheçam erros mais tarde.


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