São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA/FLÁVIA PIOVESAN

Lei de Anistia optou pelo esquecimento e pela paz sem justiça

Especialista em direitos humanos adverte que abertura de ação contra militar também traz riscos à esquerda

LILIAN CHRISTOFOLETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

A REAÇÃO dos militares, que ameaçam processar grupos de esquerda que lutaram contra a ditadura (1964-85), já era esperada, diz a professora de direito constitucional e de direitos humanos da PUC-SP Flávia Piovesan, 37, para quem a anistia deveria ser restrita às vítimas.
"Se houver ações contra militares, haverá a tentativa de resistência, daqueles que vão fazer o mesmo com o outro lado. Mas vale a pena aceitar e assumir a coragem desse risco", afirmou a professora.
Na semana passada, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, primeiro militar a responder na Justiça pela acusação de tortura durante o regime, disse que um grupo de civis estuda a possibilidade de também propor uma ação contra os militantes para que eles sejam declarados "terroristas".
"É preciso entender que as situações são diferentes. De um lado estão os delinqüentes, que representavam o Estado, de outro, as vítimas", disse Piovesan, que critica duramente a Lei de Anistia, editada em 1979 e que perdoou a todos que, de 1961 a 1979, cometeram "crimes políticos ou com eles conexos".
Os militares querem que os grupos de esquerda sejam julgados pelos atentados, mortes e seqüestros comandados por eles durante o regime.
"A anistia foi a lei do esquecimento. Não nasceu de um pacto nacional, mas da voz de um regime decadente." Apesar de a ação contra Ustra não prever pena, para Piovesan é o primeiro passo para que o Brasil reescreva o seu passado.
Procuradora do Estado e integrante do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Piovesan falou à Folha durante uma hora.  

FOLHA - Como a sra. avalia a decisão de um juiz de primeira instância que aceitou a abertura de uma ação contra um coronel acusado de tortura durante o regime militar?
FLÁVIA PIOVESAN
- Foi uma decisão paradigmática, que lançou luz a um passado sombrio, ao direito à verdade, à memória e à própria identidade do povo brasileiro. O filósofo Charles Taylor disse: "Para termos um sentido de quem somos, temos de dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde estamos indo". Um dos grandes desafios da consolidação democrática é justamente romper com o continuísmo autoritário. Para os europeus ocidentais há uma tríade indissociável: democracia, direitos humanos e Estado de Direito.

FOLHA - E para a América do Sul?
PIOVESAN
- O que se vê no Cone Sul é o contrário, uma desassociação. Temos democracias políticas em fase de consolidação, que ainda convivem com a barbárie. Um exemplo é o que ocorreu em São Paulo com os ataques do PCC, com 492 homicídios cometidos no prazo de uma semana. O que isso tem a ver com a questão? Eu entendo que um dos pontos essenciais para a consolidação democrática é olhar para o passado. Diferentemente da Argentina, do Chile, do Uruguai, da África do Sul, de países europeus do pós-guerra, o passado ainda está encoberto no Brasil.

FOLHA - A ação judicial movida contra o coronel é declaratória, não prevê indenização nem pena, mas apenas o reconhecimento oficial da acusação de tortura...
PIOVESAN
- Mas é o primeiro passo. Depois de 21 anos de ditadura, tivemos uma transição lenta e gradual para a democracia. Em 1979, veio a Lei de Anistia, que, na verdade, optou pelo esquecimento. Foi a paz sem a justiça. Depois, a lei de 1995, prevendo indenização aos familiares dos mortos e desaparecidos. A decisão de abertura da ação é o início de um processo. Diante da timidez do nosso passado, esse reconhecimento oficial é um passo fundamental, um avanço extraordinário. A partir desse caso discute-se hoje o direito à verdade, o acesso aos arquivos militares e a revisão da Lei da Anistia.

FOLHA - Que pode levar ao mesmo caminho da Argentina ou do Uruguai, que anularam suas anistias e passaram a punir seus militares?
PIOVESAN
- Cada país lida com as suas feridas da sua maneira. Uma das discussões mais quentes é: como, sem deixar traumas nem seqüelas, fazer a justiça de transição de um regime atroz para um democrático? O binômio é justiça e paz. E como lido com essas questões? O arranjo feito no Brasil foi a paz sem a justiça. Há outros países, no entanto, que buscaram aliar justiça e paz.

FOLHA - Um exemplo...
PIOVESAN
- A África do Sul, que criou comissões de reconciliação. A idéia não era punir, mas simplesmente descobrir a verdade. Eles ouviram os algozes que torturaram e mataram, mas não puniram. São opções. Para o Brasil, essa decisão judicial de São Paulo lança um horizonte muito promissor no sentido de que ao menos o direito à verdade seja assegurado e, quem sabe, isso seja uma porta para o direito à justiça.

FOLHA - A busca dessa verdade pode levar a uma condenação penal ou os crimes já prescreveram?
PIOVESAN
- Hoje a comunidade internacional debate a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade, como a tortura. Mas preciso dizer que isso não é unânime. Defendo a tese da imprescritibilidade e do direito à justiça, do dever do Estado de investigar, processar e punir. Caso contrário, há uma injustiça continuada que alimenta a impunidade. Isso é um dos fatores de a lei brasileira contra a tortura, que é de 1997, ter uma reduzida eficácia. Com o passado acobertado, não houve a mudança cultural fundamental para a democracia. Por isso, a tortura persiste.

FOLHA - Se a anistia foi para os dois lados, para os militares e para a esquerda armada, uma revisão também pode afetar a esquerda?
PIOVESAN
- Lidar com o passado autoritário é um dos temas mais delicados. Não me parece razoável interpretar a Lei de Anistia equiparando os dois lados. A lei concede o perdão a todos que, de 1961 a 1979, cometeram crimes políticos ou com eles conexos. Entendo que beneficia mais as vítimas, não os algozes.

FOLHA - Essa distinção, no entanto, não está prevista na lei.
PIOVESAN
- Entendo que a lei foi mais fruto de um regime ditatorial em decadência do que propriamente da vontade de uma maioria. A saída em prol da "paz e da conciliação nacional" foi aprovar a lei com dupla via, beneficiando algozes e vítimas. Foi algo unilateral. Não só acho que a idéia de anistia recíproca, que equipara torturadores e torturados, tenha de ser revista, como acho que a lei teve ainda a finalidade de proteger a imagem das Forças Armadas. Imagine o que seria da instituição com milhares de denúncias por abusos. A instituição estaria liquidada.

FOLHA - Os militares, irritados com a ação aberta contra Ustra, falam que é injusto a família de um militante ter mais direito à Justiça do que a de um militar.
PIOVESAN
- A questão é extremamente complexa e vai nos levar a vasculhar o passado. E temos de assumir a coragem desse risco sem deixar de levar em consideração a motivação de cada grupo. Há um diferencial a ser feito, de um lado estão os delinqüentes; de outro, as vítimas. A questão é problemática, mas é positivo o debate público que se pauta no Brasil, ainda que com grande atraso.

FOLHA - Isso inclui a possibilidade de a esquerda ser responsabilizada por seus crimes?
PIOVESAN
- Seguramente, se houver ações contra militares, haverá a tentativa de resistência, daqueles que vão fazer o mesmo com o outro lado. Ao vasculhar o nosso passado, não podemos temê-lo. É saudável e necessário lidar com o passado autoritário, lidar com os dois lados, mas sempre evitando a equiparação, pois são dois lados totalmente distintos. E vale a pena aceitar e assumir a coragem desse risco. Precisamos conhecer nossa história.

FOLHA - Parte da história está nos documentos militares do regime, que até hoje são sigilosos.
PIOVESAN
- É lamentável a situação do Brasil. A lei nš 11.111 prevê uma categoria de documentos públicos cujo acesso pode ser restringido por tempo indeterminado ou até permanecer em eterno segredo. É evidente que viola os princípios básicos de uma democracia.

FOLHA - Por que presidentes como Fernando Henrique e Lula, que sofreram durante o regime, não determinaram a abertura dos arquivos?
PIOVESAN
- Se no regime militar houve a fusão dos militares com o governo civil, ao longo da transição democrática houve uma acomodação dos governos militares. Por isso os governos democraticamente eleitos temem enfrentar o assunto.
Os militares ainda constituem um poder, ainda que mais oculto. Há um acordo entre civis e militares que põe em risco a consolidação democrática. Se não mudarmos a cultura, não adianta mudar as leis.


Texto Anterior: Presidente da Assembléia nega desvio
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.