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ENTREVISTA/FLÁVIA PIOVESAN
Lei de Anistia optou pelo esquecimento e pela paz sem justiça
Especialista em direitos humanos
adverte que abertura de ação contra
militar também traz riscos à esquerda
LILIAN CHRISTOFOLETTI
DA REPORTAGEM LOCAL
A REAÇÃO dos militares, que ameaçam processar grupos de esquerda que lutaram
contra a ditadura (1964-85), já era esperada, diz a professora de direito constitucional e de direitos humanos da PUC-SP Flávia Piovesan,
37, para quem a anistia deveria ser restrita às vítimas.
"Se houver ações contra militares, haverá a tentativa de resistência, daqueles que vão fazer o mesmo com o outro lado.
Mas vale a pena aceitar e assumir a coragem desse risco",
afirmou a professora.
Na semana passada, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, primeiro militar a responder
na Justiça pela acusação de tortura durante o regime, disse
que um grupo de civis estuda a
possibilidade de também propor uma ação contra os militantes para que eles sejam declarados "terroristas".
"É preciso entender que as
situações são diferentes. De um
lado estão os delinqüentes, que
representavam o Estado, de outro, as vítimas", disse Piovesan,
que critica duramente a Lei de
Anistia, editada em 1979 e que
perdoou a todos que, de 1961 a
1979, cometeram "crimes políticos ou com eles conexos".
Os militares querem que os
grupos de esquerda sejam julgados pelos atentados, mortes e
seqüestros comandados por
eles durante o regime.
"A anistia foi a lei do esquecimento. Não nasceu de um pacto nacional, mas da voz de um regime decadente." Apesar de a
ação contra Ustra não prever
pena, para Piovesan é o primeiro passo para que o Brasil reescreva o seu passado.
Procuradora do Estado e integrante do Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana, Piovesan falou à Folha durante uma hora.
FOLHA - Como a sra. avalia a decisão de um juiz de primeira instância
que aceitou a abertura de uma ação
contra um coronel acusado de tortura durante o regime militar?
FLÁVIA PIOVESAN - Foi uma decisão paradigmática, que lançou
luz a um passado sombrio, ao
direito à verdade, à memória e à
própria identidade do povo
brasileiro. O filósofo Charles
Taylor disse: "Para termos um
sentido de quem somos, temos
de dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde estamos indo". Um dos grandes
desafios da consolidação democrática é justamente romper com o continuísmo autoritário. Para os europeus ocidentais há uma tríade indissociável: democracia, direitos humanos e Estado de Direito.
FOLHA - E para a América do Sul?
PIOVESAN - O que se vê no Cone
Sul é o contrário, uma desassociação. Temos democracias políticas em fase de consolidação,
que ainda convivem com a barbárie. Um exemplo é o que
ocorreu em São Paulo com os
ataques do PCC, com 492 homicídios cometidos no prazo
de uma semana. O que isso tem
a ver com a questão? Eu entendo que um dos pontos essenciais para a consolidação democrática é olhar para o passado.
Diferentemente da Argentina, do Chile, do Uruguai, da
África do Sul, de países europeus do pós-guerra, o passado
ainda está encoberto no Brasil.
FOLHA - A ação judicial movida
contra o coronel é declaratória, não
prevê indenização nem pena, mas
apenas o reconhecimento oficial da
acusação de tortura...
PIOVESAN - Mas é o primeiro
passo. Depois de 21 anos de ditadura, tivemos uma transição
lenta e gradual para a democracia. Em 1979, veio a Lei de Anistia, que, na verdade, optou pelo
esquecimento. Foi a paz sem a
justiça. Depois, a lei de 1995,
prevendo indenização aos familiares dos mortos e desaparecidos. A decisão de abertura
da ação é o início de um processo. Diante da timidez do nosso
passado, esse reconhecimento
oficial é um passo fundamental,
um avanço extraordinário. A
partir desse caso discute-se hoje o direito à verdade, o acesso
aos arquivos militares e a revisão da Lei da Anistia.
FOLHA - Que pode levar ao mesmo
caminho da Argentina ou do Uruguai, que anularam suas anistias e
passaram a punir seus militares?
PIOVESAN - Cada país lida com
as suas feridas da sua maneira.
Uma das discussões mais quentes é: como, sem deixar traumas nem seqüelas, fazer a justiça de transição de um regime
atroz para um democrático? O
binômio é justiça e paz. E como
lido com essas questões?
O arranjo feito no Brasil foi a
paz sem a justiça. Há outros
países, no entanto, que buscaram aliar justiça e paz.
FOLHA - Um exemplo...
PIOVESAN - A África do Sul, que
criou comissões de reconciliação. A idéia não era punir, mas
simplesmente descobrir a verdade. Eles ouviram os algozes
que torturaram e mataram,
mas não puniram. São opções.
Para o Brasil, essa decisão judicial de São Paulo lança um
horizonte muito promissor no
sentido de que ao menos o direito à verdade seja assegurado
e, quem sabe, isso seja uma porta para o direito à justiça.
FOLHA - A busca dessa verdade pode levar a uma condenação penal ou
os crimes já prescreveram?
PIOVESAN - Hoje a comunidade
internacional debate a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade, como a tortura.
Mas preciso dizer que isso não
é unânime. Defendo a tese da
imprescritibilidade e do direito
à justiça, do dever do Estado de
investigar, processar e punir.
Caso contrário, há uma injustiça continuada que alimenta a impunidade. Isso é um dos fatores de a lei brasileira contra
a tortura, que é de 1997, ter uma
reduzida eficácia.
Com o passado acobertado,
não houve a mudança cultural
fundamental para a democracia. Por isso, a tortura persiste.
FOLHA - Se a anistia foi para os dois
lados, para os militares e para a esquerda armada, uma revisão também pode afetar a esquerda?
PIOVESAN - Lidar com o passado autoritário é um dos temas
mais delicados. Não me parece
razoável interpretar a Lei de
Anistia equiparando os dois lados. A lei concede o perdão a
todos que, de 1961 a 1979, cometeram crimes políticos ou
com eles conexos. Entendo que
beneficia mais as vítimas, não
os algozes.
FOLHA - Essa distinção, no entanto,
não está prevista na lei.
PIOVESAN - Entendo que a lei foi
mais fruto de um regime ditatorial em decadência do que
propriamente da vontade de
uma maioria. A saída em prol
da "paz e da conciliação nacional" foi aprovar a lei com dupla
via, beneficiando algozes e vítimas. Foi algo unilateral.
Não só acho que a idéia de
anistia recíproca, que equipara
torturadores e torturados, tenha de ser revista, como acho
que a lei teve ainda a finalidade
de proteger a imagem das Forças Armadas. Imagine o que seria da instituição com milhares
de denúncias por abusos. A instituição estaria liquidada.
FOLHA - Os militares, irritados com
a ação aberta contra Ustra, falam
que é injusto a família de um militante ter mais direito à Justiça do
que a de um militar.
PIOVESAN - A questão é extremamente complexa e vai nos
levar a vasculhar o passado. E
temos de assumir a coragem
desse risco sem deixar de levar
em consideração a motivação
de cada grupo. Há um diferencial a ser feito, de um lado estão
os delinqüentes; de outro, as vítimas. A questão é problemática, mas é positivo o debate público que se pauta no Brasil,
ainda que com grande atraso.
FOLHA - Isso inclui a possibilidade
de a esquerda ser responsabilizada
por seus crimes?
PIOVESAN - Seguramente, se
houver ações contra militares,
haverá a tentativa de resistência, daqueles que vão fazer o
mesmo com o outro lado. Ao
vasculhar o nosso passado, não
podemos temê-lo. É saudável e
necessário lidar com o passado
autoritário, lidar com os dois
lados, mas sempre evitando a
equiparação, pois são dois lados
totalmente distintos. E vale a
pena aceitar e assumir a coragem desse risco. Precisamos
conhecer nossa história.
FOLHA - Parte da história está nos
documentos militares do regime,
que até hoje são sigilosos.
PIOVESAN - É lamentável a situação do Brasil. A lei nš 11.111
prevê uma categoria de documentos públicos cujo acesso
pode ser restringido por tempo
indeterminado ou até permanecer em eterno segredo. É evidente que viola os princípios
básicos de uma democracia.
FOLHA - Por que presidentes como
Fernando Henrique e Lula, que sofreram durante o regime, não determinaram a abertura dos arquivos?
PIOVESAN - Se no regime militar
houve a fusão dos militares
com o governo civil, ao longo da
transição democrática houve
uma acomodação dos governos
militares. Por isso os governos
democraticamente eleitos temem enfrentar o assunto.
Os militares ainda constituem um poder, ainda que mais
oculto. Há um acordo entre civis e militares que põe em risco
a consolidação democrática. Se
não mudarmos a cultura, não
adianta mudar as leis.
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