São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

JOÃO CLEMENTE BAENA SOARES

Brasileiro participou de time de alto nível que, a pedido de Kofi Annan, propôs mudanças na instituição

Reforma da ONU é resposta a política de Bush, diz diplomata

FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A corrida das Nações Unidas para se modernizarem é em grande medida conseqüência da política externa agressiva daquele que é amplamente considerado o inimigo número um da instituição, o presidente George Bush (EUA).
A ironia é notada pelo embaixador paraense João Clemente Baena Soares, 73, integrante de um painel de 16 notáveis escolhidos pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para elaborar o projeto do que pode tornar-se a maior mudança na instituição desde a sua criação, há 50 anos.
A pedido de Annan, o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças discutiu sobre como manter a relevância e a influência da ONU diante de ameaças terroristas difusas e ações preventivas unilaterais, caso da invasão do Iraque pelos EUA.
Na semana passada, Annan, baseado no parecer unânime do painel, apresentou seu relatório, ainda a ser submetido, até o final do ano, aos 191 Estados da ONU.
"O comportamento da política externa dos EUA contribuiu para uma inquietação da comunidade internacional, que levou a esse movimento de renovação [da ONU] mais acentuado", disse Soares à Folha. Ex-secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, ele foi convidado diretamente por Annan, sem intermediação do Itamaraty.
Teve como um dos colegas no painel o ex-assessor de Segurança Nacional dos EUA Brent Scowcroft, mentor da atual secretária de Estado, Condoleezza Rice. Participaram ainda, entre outros, Gareth Evans, ex-chanceler australiano, Enrique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento e Amre Moussa, secretário da Liga Árabe.
Em alguns trechos do relatório, a ONU se viu obrigada a fazer concessões. Reconhece tacitamente que certos dogmas têm de ser arquivados após a Doutrina Bush. Talvez o ponto mais importante tenha sido a flexibilização dos critérios para uso da força.
Não haveria mais a necessidade da iminência de ataque para legitimar ataque preventivo. Segundo a proposta de reforma, bastaria que a ameaça fosse "latente". Programas suspeitos de fabricação de armas em tese justificariam um ataque tanto quanto mísseis prontos para serem disparados.
É criado, ainda, o princípio da obrigação de um Estado de proteger seus cidadãos, o que legitimaria intervenções humanitárias se esse dever for desrespeitado.
Para uma instituição fundada sob o respeito à soberania das nações e o repúdio à agressão, é uma pequena revolução. "É preciso que o artigo 51 [da Carta da ONU, que trata do uso da força] seja revisto de maneira a dar curso a alguma prevenção. Mas o monopólio do uso da força cabe ao Conselho de Segurança", diz Soares.
Na definição de terrorismo, Annan usou de cautela. Seguindo o conselho dos especialistas, o secretário-geral aceitou a definição genérica de que terrorista é todo e qualquer lutador que infrinja danos a populações desarmadas.
Mas o relatório é omisso quanto aos detalhes práticos. No mundo árabe, por exemplo, haveria muita resistência a caracterizar ações militares contra o Exército israelense de "terrorismo". O secretário-geral sugeriu apenas vagamente a realização de convenção para estudar o assunto no futuro.
Outra preocupação do relatório foi com a perda de autoridade moral da ONU em razão de escândalos de corrupção no Iraque e sexuais no Congo. Sugere a criação de uma espécie de corregedoria. Não que isso vá resolver imediatamente os problemas: "A ONU não é uma organização angelical, nem seus funcionários são monges", diz Soares. A seguir, os principais trechos da entrevista.
 

Folha - O relatório de Kofi Annan parte do princípio de que a ONU precisa se ajustar a novos desafios e a novas ameaças, em um momento em que muitos a acusam de estar seguindo o caminho da irrelevância. É possível salvá-la disso?
Soares
- Não acho que a ONU esteja se tornando irrelevante, e portanto não há necessidade de salvação. Trata-se de reaparelhá-la. As acusações de irrelevância partem daqueles que têm seus interesses prejudicados pela ONU.

Folha- Quem?
Soares -
[rindo] Quem você acha?

Folha - O governo Bush?
Soares -
Evidente que há uma campanha do governo Bush por uma ênfase no poder da força. Mas a ONU não é irrelevante e está provando que tem capacidade de renovação. O documento do secretário-geral mostra a reafirmação da importância do multilateralismo, que incomoda muita gente. Existe uma tendência ao unilateralismo que precisa ser combatida. A ONU se fortalece de acordo com a opinião pública mundial, pois a ONU não tem legiões. Tem só a opinião pública.

Folha - O relatório então é uma resposta à chamada Doutrina Bush, de ataques preventivos e promoção, inclusive pela força, da democracia como requisito da segurança?
Soares -
Não sei se há propriamente Doutrina Bush. Há ações, posições, decisões de caráter unilateral. Isso é inaceitável. A ONU já estava procurando se atualizar. O comportamento da política externa dos EUA não causou, mas contribuiu para uma inquietação da comunidade internacional que levou a esse movimento de renovação mais acentuado.

Folha - Um dos principais pontos do relatório é dar mais espaço para o Conselho de Segurança agir contra ameaças latentes, e não apenas iminentes. Ou seja, há um reconhecimento de que é necessário agir preventivamente em alguns casos. É um reflexo dos novos tempos?
Soares -
Sim. E acrescento que essa reação deve estar sempre dentro da Carta das Nações Unidas. É isso que nós reforçamos no nosso parecer ao discriminar algumas condições para essa reação, ou essa prevenção. A Carta da ONU não precisa ser emendada, mas é preciso que seja revista de maneira a dar curso a alguma prevenção. Mas o monopólio do uso da força continuaria cabendo ao Conselho de Segurança.

Folha - A ONU às vezes não é lenta para dar resposta aos novos tempos, novos perigos?
Soares -
Isso é sempre uma consideração que se faz não apenas em relação à ONU mas em relação à democracia. O processo democrático é muito mais lento que o totalitário, é evidente, mas eu prefiro o processo democrático a nos entregarmos à predominância de uma só potência.

Folha - Outra idéia é criar um fundo de apoio à democracia, que parece uma maneira de dar uma resposta à idéia de Bush de espalhar a democracia militarmente. Parece que a ONU reconhece uma nova realidade, mas tenta adaptá-la como lhe convém. O sr. concorda?
Soares -
Diria que não é adaptar, é reagir. É dar uma resposta, dar um caminho, que só pode ser o da participação da comunidade internacional. Reagir aos desafios, às novas situações que se apresentarem. Por exemplo, uma nova ameaça internacional são as enfermidades, as epidemias. Uma nova ameaça à segurança internacional é a permanência da pobreza. Tudo isso é novo nesse debate. Nós achamos que todas essas ameaças são interdependentes, que não há prioridade de uma nem de outra. O que nós propusemos como ação multilateral são situações em que não há controle, não há Estado, o Estado faliu, e aí as Nações Unidas, como expressão da comunidade internacional, agiriam.

Folha - Por que ainda é tão difícil para a ONU tratar de terrorismo?
Soares -
A ONU há muito tempo procura uma definição para terrorismo, como também levou muito tempo para encontrar uma definição para agressão. Nós partimos da ponderação de que há duas formas de terrorismo. Uma, terrorismo de Estado, que já está definido e contemplado pelas Convenções de Genebra [sobre a proteção de civis]. Já há consenso sobre isso. E há outra forma de terrorismo, que agora atinge uma expressão mais enfática, que não estava definida e para a qual propusemos uma definição, o terrorismo não-estatal, civil. A disposição dos Estados membros para o debate [sobre terrorismo] ainda carece de definições. É um assunto muito complexo.

Folha - O relatório pede perdão da dívida, aumento da assistência internacional e liberalização do comércio para o Terceiro Mundo. Ou seja, defende que se despeje lá uma enormidade de recursos, principalmente na África. Mas metade dos governos africanos são tirânicos e corruptos, o que torna essa idéia bastante questionável. Como resolver esse dilema?
Soares -
Há um quadro geral de ameaça à paz. Não são os pobres que ameaçam, no entanto, é a pobreza. A ameaça é a falta de cuidado, de atenção, o subdesenvolvimento. Agora, a corrupção não é exclusiva dos países pobres, é uma prática universal, inclusive de países democráticos e desenvolvidos. Aumentar a assistência é absolutamente fundamental, mas você tem de saber como fazer isso. Só pode fazer isso dentro do sistema internacional, multilateral. Há de haver critérios de distribuição, de controle, de punição.

Folha - Mas como a ONU pode controlar isso se esteve recentemente envolvida em seu próprio escândalo de corrupção, no programa Petróleo por Comida, no Iraque? Também houve escândalo no Congo, de soldados da organização que estariam cometendo estupros. A ONU está perdendo aquele que talvez seja o seu maior ativo, a autoridade moral?
Soares -
A ONU não é uma organização angelical nem os funcionários da ONU são monges. São pessoas que estão trabalhando com objetivos. Mas há situações que devem ser corrigidas. O problema nessas situações todas não é que elas ocorram, porque o homem é homem, mas o problema é a impunidade. A resposta tem de ser oportuna e ser vigorosa, exemplar. Vamos acabar com a corrupção? Impossível. Mas vamos atacar os corruptos, que não ficarão impunes. Eu desloco o debate não para a existência de erros mas o desloco para a falta ou para a existência de impunidade. Em diversas situações identificadas, houve uma resposta.

Folha - Há chance de a obsessão brasileira com uma vaga no Conselho de Segurança ser realizada?
Soares -
Primeiro, não acho que seja uma obsessão, e sim um objetivo. Há chance, sem dúvida. O conselho já foi reformado no passado. Eu me mantenho firme na defesa da criação de seis novos membros permanentes. Os mais falados são Brasil, Índia, Japão, Alemanha, África do Sul e Egito. Mas claro que não apontamos os nomes no estudo, seria sem propósito. É importante ampliar? É. Há possibilidade? Há.


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