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ENTREVISTA DA 2ª
JOÃO CLEMENTE BAENA SOARES
Brasileiro participou de time de alto nível que, a pedido de Kofi Annan, propôs mudanças na instituição
Reforma da ONU é resposta a política de Bush, diz diplomata
FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A corrida das Nações Unidas
para se modernizarem é em grande medida conseqüência da política externa agressiva daquele que
é amplamente considerado o inimigo número um da instituição, o
presidente George Bush (EUA).
A ironia é notada pelo embaixador paraense João Clemente Baena Soares, 73, integrante de um
painel de 16 notáveis escolhidos
pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para elaborar o projeto
do que pode tornar-se a maior
mudança na instituição desde a
sua criação, há 50 anos.
A pedido de Annan, o Painel de
Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças discutiu sobre
como manter a relevância e a influência da ONU diante de ameaças terroristas difusas e ações preventivas unilaterais, caso da invasão do Iraque pelos EUA.
Na semana passada, Annan, baseado no parecer unânime do painel, apresentou seu relatório, ainda a ser submetido, até o final do
ano, aos 191 Estados da ONU.
"O comportamento da política
externa dos EUA contribuiu para
uma inquietação da comunidade
internacional, que levou a esse
movimento de renovação [da
ONU] mais acentuado", disse
Soares à Folha. Ex-secretário-geral da Organização dos Estados
Americanos, ele foi convidado diretamente por Annan, sem intermediação do Itamaraty.
Teve como um dos colegas no
painel o ex-assessor de Segurança
Nacional dos EUA Brent Scowcroft, mentor da atual secretária
de Estado, Condoleezza Rice. Participaram ainda, entre outros, Gareth Evans, ex-chanceler australiano, Enrique Iglesias, presidente
do Banco Interamericano de Desenvolvimento e Amre Moussa,
secretário da Liga Árabe.
Em alguns trechos do relatório,
a ONU se viu obrigada a fazer
concessões. Reconhece tacitamente que certos dogmas têm de
ser arquivados após a Doutrina
Bush. Talvez o ponto mais importante tenha sido a flexibilização
dos critérios para uso da força.
Não haveria mais a necessidade
da iminência de ataque para legitimar ataque preventivo. Segundo
a proposta de reforma, bastaria
que a ameaça fosse "latente". Programas suspeitos de fabricação de
armas em tese justificariam um
ataque tanto quanto mísseis
prontos para serem disparados.
É criado, ainda, o princípio da
obrigação de um Estado de proteger seus cidadãos, o que legitimaria intervenções humanitárias se
esse dever for desrespeitado.
Para uma instituição fundada
sob o respeito à soberania das nações e o repúdio à agressão, é uma
pequena revolução. "É preciso
que o artigo 51 [da Carta da ONU,
que trata do uso da força] seja revisto de maneira a dar curso a alguma prevenção. Mas o monopólio do uso da força cabe ao Conselho de Segurança", diz Soares.
Na definição de terrorismo, Annan usou de cautela. Seguindo o
conselho dos especialistas, o secretário-geral aceitou a definição
genérica de que terrorista é todo e
qualquer lutador que infrinja danos a populações desarmadas.
Mas o relatório é omisso quanto
aos detalhes práticos. No mundo
árabe, por exemplo, haveria muita resistência a caracterizar ações
militares contra o Exército israelense de "terrorismo". O secretário-geral sugeriu apenas vagamente a realização de convenção
para estudar o assunto no futuro.
Outra preocupação do relatório
foi com a perda de autoridade
moral da ONU em razão de escândalos de corrupção no Iraque
e sexuais no Congo. Sugere a criação de uma espécie de corregedoria. Não que isso vá resolver imediatamente os problemas: "A
ONU não é uma organização angelical, nem seus funcionários são
monges", diz Soares. A seguir, os
principais trechos da entrevista.
Folha - O relatório de Kofi Annan
parte do princípio de que a ONU
precisa se ajustar a novos desafios
e a novas ameaças, em um momento em que muitos a acusam de estar seguindo o caminho da irrelevância. É possível salvá-la disso?
Soares- Não acho que a ONU esteja se tornando irrelevante, e
portanto não há necessidade de
salvação. Trata-se de reaparelhá-la. As acusações de irrelevância
partem daqueles que têm seus interesses prejudicados pela ONU.
Folha- Quem?
Soares - [rindo] Quem você
acha?
Folha - O governo Bush?
Soares - Evidente que há uma
campanha do governo Bush por
uma ênfase no poder da força.
Mas a ONU não é irrelevante e está provando que tem capacidade
de renovação. O documento do
secretário-geral mostra a reafirmação da importância do multilateralismo, que incomoda muita
gente. Existe uma tendência ao
unilateralismo que precisa ser
combatida. A ONU se fortalece de
acordo com a opinião pública
mundial, pois a ONU não tem legiões. Tem só a opinião pública.
Folha - O relatório então é uma
resposta à chamada Doutrina
Bush, de ataques preventivos e promoção, inclusive
pela força, da
democracia como requisito da
segurança?
Soares - Não
sei se há propriamente
Doutrina
Bush. Há
ações, posições, decisões
de caráter unilateral. Isso é
inaceitável. A
ONU já estava
procurando se
atualizar. O
comportamento da política externa
dos EUA não
causou, mas
contribuiu para uma inquietação da comunidade internacional que
levou a esse movimento de renovação mais acentuado.
Folha - Um dos principais pontos
do relatório é dar mais espaço para
o Conselho de Segurança agir contra ameaças latentes, e não apenas
iminentes. Ou seja, há um reconhecimento de que é necessário agir
preventivamente em alguns casos.
É um reflexo dos novos tempos?
Soares - Sim. E acrescento que
essa reação deve estar sempre
dentro da Carta das Nações Unidas. É isso que nós reforçamos no
nosso parecer ao discriminar algumas condições para essa reação, ou essa prevenção. A Carta
da ONU não precisa ser emendada, mas é preciso que seja revista
de maneira a dar curso a alguma
prevenção. Mas o monopólio do
uso da força continuaria cabendo
ao Conselho de Segurança.
Folha - A ONU às vezes não é lenta
para dar resposta aos novos tempos, novos perigos?
Soares - Isso é sempre uma consideração que se faz não apenas
em relação à ONU mas em relação à democracia. O processo democrático é muito mais lento que
o totalitário, é evidente, mas eu
prefiro o processo democrático a
nos entregarmos à predominância de uma só potência.
Folha - Outra idéia é criar um fundo de apoio à democracia, que parece uma maneira de dar uma resposta à idéia de Bush de espalhar a
democracia militarmente. Parece
que a ONU reconhece uma nova
realidade, mas tenta adaptá-la como lhe convém. O sr. concorda?
Soares - Diria que não é adaptar,
é reagir. É dar uma resposta, dar um caminho,
que só pode ser o da participação da comunidade internacional. Reagir
aos desafios, às novas situações que se apresentarem. Por exemplo,
uma nova ameaça internacional são as enfermidades, as epidemias.
Uma nova ameaça à segurança internacional é
a permanência da pobreza. Tudo isso é novo
nesse debate. Nós achamos que todas essas
ameaças são interdependentes, que não há
prioridade de uma nem
de outra. O que nós propusemos como ação
multilateral são situações em que não há controle, não há Estado, o
Estado faliu, e aí as Nações Unidas, como expressão da comunidade
internacional, agiriam.
Folha - Por que ainda é
tão difícil para a ONU tratar de terrorismo?
Soares - A ONU há
muito tempo procura uma definição para terrorismo, como também levou muito tempo para encontrar uma definição para agressão. Nós partimos da ponderação
de que há duas formas de terrorismo. Uma, terrorismo de Estado,
que já está definido e contemplado pelas Convenções de Genebra
[sobre a proteção de civis]. Já há
consenso sobre isso. E há outra
forma de terrorismo, que agora
atinge uma expressão mais enfática, que não estava definida e para
a qual propusemos uma definição, o terrorismo não-estatal, civil. A disposição dos Estados
membros para o debate [sobre
terrorismo] ainda carece de definições. É um assunto muito complexo.
Folha - O relatório pede perdão
da dívida, aumento da assistência
internacional e liberalização do comércio para o Terceiro Mundo. Ou
seja, defende que se despeje lá
uma enormidade de recursos, principalmente na África. Mas metade
dos governos africanos são tirânicos e corruptos, o que torna essa
idéia bastante questionável. Como
resolver esse dilema?
Soares - Há um quadro geral de
ameaça à paz. Não são os pobres
que ameaçam, no entanto, é a pobreza. A ameaça é a falta de cuidado, de atenção, o subdesenvolvimento. Agora, a corrupção não é
exclusiva dos países pobres, é
uma prática universal, inclusive
de países democráticos e desenvolvidos. Aumentar a assistência
é absolutamente fundamental,
mas você tem de saber como fazer
isso. Só pode fazer isso dentro do
sistema internacional, multilateral. Há de haver critérios de distribuição, de controle, de punição.
Folha - Mas como a ONU pode
controlar isso se esteve recentemente envolvida em seu próprio
escândalo de corrupção, no programa Petróleo por Comida, no Iraque? Também houve escândalo no
Congo, de soldados da organização
que estariam cometendo estupros.
A ONU está perdendo aquele que
talvez seja o seu maior ativo, a autoridade moral?
Soares - A ONU não é uma organização angelical nem os funcionários da ONU são monges. São
pessoas que estão trabalhando
com objetivos. Mas há situações
que devem ser corrigidas. O problema nessas situações todas não
é que elas ocorram, porque o homem é homem, mas o problema é
a impunidade. A resposta tem de
ser oportuna e ser vigorosa,
exemplar. Vamos acabar com a
corrupção? Impossível. Mas vamos atacar os corruptos, que não
ficarão impunes. Eu desloco o debate não para a existência de erros
mas o desloco para a falta ou para
a existência de impunidade. Em
diversas situações identificadas,
houve uma resposta.
Folha - Há chance de a obsessão
brasileira com uma vaga no Conselho de Segurança ser realizada?
Soares - Primeiro, não acho que
seja uma obsessão, e sim um objetivo. Há chance, sem dúvida. O
conselho já foi reformado no passado. Eu me mantenho firme na
defesa da criação de seis novos
membros permanentes. Os mais
falados são Brasil, Índia, Japão,
Alemanha, África do Sul e Egito.
Mas claro que não apontamos os
nomes no estudo, seria sem propósito. É importante ampliar? É.
Há possibilidade? Há.
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