São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2005

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Geopolítica e poder de veto prejudicam o projeto de Annan

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Se o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, insistir em ter suas propostas de reforma da entidade tratadas como um só projeto, ao menos dois aspectos tendem a bloquear sua aprovação: a intenção de fixar exatamente os pré-requisitos para o uso da força militar na cena internacional e a de estabelecer uma definição de terrorismo.
Pouco depois de Annan apresentar seu projeto aos 191 países-membros da ONU, na última segunda-feira, Adam Ereli, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, classificou o texto de "uma pauta ambiciosa". Como previsto, contudo, ele não deixou de expressar seu ceticismo acerca da tentativa de estabelecer regras internacionais para o uso da força.
Vale lembrar que os americanos declararam guerra ao Iraque sem a anuência internacional e que, ao lado de Paris, Londres, Pequim e Moscou, Washington dispõe de direito de veto no Conselho de Segurança, o mais importante órgão de tomada de decisões da ONU.
Obviamente, o CS terá de aprovar a reforma da entidade, a mais abrangente desde sua criação, em 1945. Ou seja, os EUA, a França, o Reino Unido, a China e a Rússia poderão vetar as mudanças, embora isso vá ser bastante impopular.
A tentativa de normatizar o uso da força na cena internacional também não agrada aos russos, que preferem ter liberdade para, se preciso, defender militarmente suas minorias em outras ex-repúblicas da URSS -embora essa opção seja, na prática, bem pouco provável.
Por exemplo, a Geórgia acusa Moscou de fomentar o separatismo da Abkházia e da Ossétia do Sul. E, na Moldova, a população exige a saída de mais de mil soldados russos que ainda vivem na Transnítria, região de numerosa população de origem russa. Em 1999, os russos prometeram deixar o país até o final de 2003. Pouco antes disso, no entanto, avisaram que só poderiam concluir a desmilitarização da região em 2020.
Apesar de a definição de terrorismo proposta por Annan parecer sensata ("Qualquer ato que tem como objetivo causar a morte ou provocar ferimentos graves em civis ou qualquer pessoa que não participa ativamente das hostilidades numa situação que visa intimidar a população ou compelir um governo ou uma organização internacional a fazer ou a deixar de fazer qualquer ato"), ela dificilmente será adotada por uma entidade que reúne Estados com interesses distintos.
Afinal, "quem é terrorista para um é combatente da liberdade para outro". Dois casos explicitam a complexidade de chegar a um consenso: a insurreição tchetchena na Rússia e a ação do Hizbollah no Líbano.
Para o governo russo, os tchetchenos são terroristas internacionais, ligados à rede Al Qaeda, capazes de atos de barbárie, como o seqüestro na escola de Beslan (Ossétia do Norte), que deixou mais de 300 mortos, incluindo crianças.
Segundo a União Européia, todavia, trata-se de um grupo que reúne diferentes facções da luta separatista tchetchena e, apesar de cometer atos indefensáveis, busca fugir ao jugo de Moscou e criar um Estado islâmico na república russa.
O mesmo vale para o Hizbollah. De acordo com Israel e os EUA, ele é um grupo terrorista, cujo maior objetivo é ver o fim do Estado de Israel, financiado e apoiado pela Síria e pelo Irã e capaz de cometer atos de violência contra civis inocentes.
Já para boa parte da população libanesa, ele é um partido político legítimo e uma entidade assistencial responsável por programas sociais e pela gestão de hospitais e de escolas.
A expansão do CS constitui outro aspecto do plano que poderá minar a reforma. Afinal, a inclusão do Brasil, da Índia, da Alemanha e do Japão no grupo de membros permanentes (mesmo sem direito de veto) desagrada, respectivamente, ao México, ao Paquistão, à Itália e à Coréia do Sul. Estes se sentem excluídos em benefício de "rivais" regionais mais influentes.
As propostas de Annan não poderão, portanto, ser tratadas como um conjunto indivisível. Caso contrário, a ONU correrá o risco de ver sua credibilidade abalada, já que um impasse em relação à reforma -que, segundo uma pesquisa da BBC, é bem-vista pela maioria da população de 23 países- só faria contrariar, mais uma vez, a vontade popular internacional.


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