São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2007

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ELIO GASPARI

Nem Salazar nem Cunhal; viva Sousa Mendes

Tirou terceiro lugar. Foi dele a maior operação de resgate conduzida por uma só pessoa durante o Holocausto

DEPOIS DO ESPANTO causado pela entrega do título de "Grande Português" à memória do ditador Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), vem estupefação: o segundo colocado foi o stalinista Álvaro Cunhal, que dirigiu o Partido Comunista de 1961 a 1992. No mês dos 33 anos do renascimento da democracia no além-mar, 60% do eleitorado que participou da competição telefônica de uma emissora de televisão dividiu-se entre o que Portugal infelizmente foi e aquilo que felizmente não quis ser.
Mesmo assim, as coisas boas também acontecem e Aristides Sousa Mendes foi o terceiro colocado, com 13% das preferências, contra 19% dadas a Cunhal.
A amostra foi pequena e viciada. Num país de 10 milhões de habitantes, os telefonemas válidos foram 160 mil. Nada a ver com os 55 milhões de chamadas do "Big Brother" brasileiro. De qualquer maneira, quando Luís de Camões fica em quinto lugar, com 4% dos votos, as coisas não vão bem. Contudo, é o poeta quem ensina:
"Quem há que por fama não conhece
As obras portuguesas singulares?"
Aristides Sousa Mendes e sua posição no certame são uma obra portuguesa singular. Conhecê-lo é uma dádiva. Ele nasceu em 1885, numa família católica da aristocracia. Passou pela Universidade de Coimbra e caiu na carreira diplomática. Rodou por Guiana, Zanzibar, Porto Alegre, São Luís e Curitiba. Estava no consulado do porto francês de Bordeaux quando estourou a Segunda Guerra e chegou-lhe uma circular determinando que não se concedessem vistos a judeus.
A cidade transformou-se em corredor de saída para dezenas de milhares de refugiados impotentes e Sousa Mendes distribuiu resmas de vistos em branco, assinados e carimbados. Calcula-se que tenham sido 30 mil em poucos dias. Foi a maior operação de resgate conduzida por uma pessoa durante o Holocausto. Ele recordaria: "Quantos suicídios e outros atos de desespero se produziram, quantos atos de loucura de que eu próprio fui testemunha?"
Salazar mandou dois funcionários para trazê-lo de volta a Lisboa. Sousa Mendes foi para Bayonne e emitiu mais vistos. Quando a polícia da fronteira com a Espanha foi avisada para não honrar sua assinatura, escoltou judeus abrindo caminho com seu carro oficial. Chegou a empurrar portões. Levado a Lisboa, foi expulso do serviço público. Perseguido pelo ditador, Sousa Mendes perdeu o patrimônio da família (a pecúnia, bem entendido porque, em 1944, dois dos seus 14 filhos saltaram sobre a Normandia com as tropas aliadas).
Nada permitia supor que aquele aristocrata monarquista e cinqüentão agisse daquela forma. No seu encontro com a história, realizou a obra portuguesa singular.
Sousa Mendes morreu em 1954, doente e miserável. Alimentava-se em centros de caridade da colônia judaica. Seus bens foram leiloados e sua casa senhorial virou galinheiro. Nada se escreveu sobre ele, além do que se gravou na lápide: "Quem salva uma vida salva o mundo".
Hoje ele é uma glória de Portugal e nome de praça em São Paulo. Tem busto em Bordeaux e parque em Montreal. Vinte árvores foram plantadas em sua memória na Floresta dos Mártires, em Jerusalém.


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