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ELIO GASPARI
Nem Salazar nem Cunhal; viva Sousa Mendes
Tirou terceiro lugar. Foi dele a maior operação de resgate conduzida por uma só pessoa durante o Holocausto
DEPOIS DO ESPANTO causado
pela entrega do título de
"Grande Português" à memória do ditador Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970), vem estupefação: o segundo colocado foi o stalinista Álvaro Cunhal, que dirigiu o
Partido Comunista de 1961 a 1992.
No mês dos 33 anos do renascimento da democracia no além-mar, 60%
do eleitorado que participou da
competição telefônica de uma emissora de televisão dividiu-se entre o
que Portugal infelizmente foi e aquilo que felizmente não quis ser.
Mesmo assim, as coisas boas também acontecem e Aristides Sousa
Mendes foi o terceiro colocado, com
13% das preferências, contra 19%
dadas a Cunhal.
A amostra foi pequena e viciada.
Num país de 10 milhões de habitantes, os telefonemas válidos foram
160 mil. Nada a ver com os 55 milhões de chamadas do "Big Brother"
brasileiro. De qualquer maneira,
quando Luís de Camões fica em
quinto lugar, com 4% dos votos, as
coisas não vão bem. Contudo, é o
poeta quem ensina:
"Quem há que por fama não conhece
As obras portuguesas singulares?"
Aristides Sousa Mendes e sua posição no certame são uma obra portuguesa singular. Conhecê-lo é uma
dádiva. Ele nasceu em 1885, numa
família católica da aristocracia. Passou pela Universidade de Coimbra e
caiu na carreira diplomática. Rodou
por Guiana, Zanzibar, Porto Alegre,
São Luís e Curitiba. Estava no consulado do porto francês de Bordeaux
quando estourou a Segunda Guerra
e chegou-lhe uma circular determinando que não se concedessem vistos a judeus.
A cidade transformou-se em corredor de saída para dezenas de milhares de refugiados impotentes e
Sousa Mendes distribuiu resmas de
vistos em branco, assinados e carimbados. Calcula-se que tenham sido
30 mil em poucos dias. Foi a maior
operação de resgate conduzida por
uma pessoa durante o Holocausto.
Ele recordaria: "Quantos suicídios e
outros atos de desespero se produziram, quantos atos de loucura de que
eu próprio fui testemunha?"
Salazar mandou dois funcionários
para trazê-lo de volta a Lisboa. Sousa Mendes foi para Bayonne e emitiu mais vistos. Quando a polícia
da fronteira com a Espanha foi avisada para não honrar sua assinatura,
escoltou judeus abrindo caminho
com seu carro oficial. Chegou a empurrar portões. Levado a Lisboa, foi
expulso do serviço público. Perseguido pelo ditador, Sousa Mendes
perdeu o patrimônio da família (a
pecúnia, bem entendido porque, em
1944, dois dos seus 14 filhos saltaram sobre a Normandia com as tropas aliadas).
Nada permitia supor que aquele
aristocrata monarquista e cinqüentão agisse daquela forma. No seu encontro com a história, realizou a
obra portuguesa singular.
Sousa Mendes morreu em 1954,
doente e miserável. Alimentava-se
em centros de caridade da colônia
judaica. Seus bens foram leiloados e
sua casa senhorial virou galinheiro.
Nada se escreveu sobre ele, além do
que se gravou na lápide: "Quem salva uma vida salva o mundo".
Hoje ele é uma glória de Portugal e
nome de praça em São Paulo. Tem
busto em Bordeaux e parque em
Montreal. Vinte árvores foram plantadas em sua memória na Floresta
dos Mártires, em Jerusalém.
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