São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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JANIO DE FREITAS

Os furos da enganação

A Época das Enganações está desvendando sua natureza sem esperar que o novo governo, queira ou não, venha a fazê-lo. As revelações aparecem esparsamente na mídia, o que dificulta a visão do conjunto pelos cidadãos, e a importância de muitas delas não é percebida pela crescente superficialidade do jornalismo brasileiro, quando não é escondida por maus motivos.
O aumento do preço da energia elétrica, para dar aos donos das ex-estatais o que deixaram de lucrar com a energia que não forneceram, durante o corte, revelou à população o tipo de relações entre os que privatizaram e os que compraram.
Bastou que repórteres fossem verificar a existência de um assentamento, e Eduardo Scolese e Rubens Valente, da Folha, deram com a fraude-gigante feita pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e pelo Incra. As estatísticas da reforma agraria estão repletas de assentamentos que são apenas matagais intocados e áreas ermas e pantanosos intocáveis. Falsificações urdidas, ficou provado, em reuniões feitas com esse fim pelo ministério e pelo Incra.
Alguma investigação do governo por improbidade, algum processo por falsificação de dados oficiais? Nada. Silêncio até aumentado por uma invenção do jornalismo brasileiro atual: se um jornal faz dada revelação, os concorrentes vetam o assunto em suas páginas. Ah, tomei um furo, pronto, agora não publico, todos de volta à infância. O que vetam, de fato, é o conhecimento do leitor que paga por esses jornais para ter conhecimento sem veto.
No Rio, só mínima quantidade dos leitores de jornal sabe das falsificações do governo na reforma agrária. Em São Paulo, isso se passou com o grave pronunciamento do FMI, originado em levantamento do Banco Mundial, para alertar que a dívida externa brasileira compromete todos os sacrifícios impostos pelo corte de investimentos governamentais e pelo chamado ajuste fiscal. O alarme do FMI veio da constatação de que o Brasil é responsável por 10% da dívida externa existente no mundo todo. É a enganação da estabilidade pelo aprisionamento da economia que começa a mostrar sua face verdadeira.
Estes poucos exemplos vêm a propósito da necessidade de referência a um outro. É um dos truques de consequências muito graves e, no entanto, ainda pouco percebido na sua malignidade, embora adotado em 95, início ainda do primeiro mandato. Para livrar-se de responsabilidades, o governo passou a destinar as verbas correspondentes aos municípios e Estados, sem ao menos interessar-se por acompanhar o uso do dinheiro público. Foi o que já ficou claro na epidemia da dengue.
Eis outro pequeno retrato de efeitos do truque, consideradas só estas últimas semanas e um só aspecto: 493 municípios ficaram desde fevereiro sem a parcela mensal do Programa Nacional de Alimentação Escolar, à falta de sua prestação de contas, até 28 de fevereiro, relativa a 2001.
Sob essa formulação de aparência administrativa, o que se deve ler é a falta de merenda escolar em milhares de escolas públicas pelo país afora, desde o início do ano letivo. A responsabilidade pela falta de prestação de contas é dos secretários de educação, prefeitos ou governadores, mas punidas são as crianças, carentes na sua imensa maioria. Estabelecer punições para os desrespeitadores dos convênios, isso criaria inconveniências políticas para a Presidência. Punam-se as crianças. Como é feito há anos, sob protetor silêncio.


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