São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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ELIO GASPARI

A bela história da deposição de um prefeito corrupto

Na quarta-feira da semana passada, Antonio Sérgio de Mello Buzzá, prefeito de Ribeirão Bonito, no Oeste Paulista, renunciou ao seu mandato. Corre o risco de passar um bom tempo na cadeia. Dificilmente se transformará num caso exemplar das roubalheiras nacionais, mas com toda certeza tomou carona numa das mais bonitas histórias de combate à corrupção já ocorridas no país. É bonita pela rapidez de seu desfecho, pela pluralidade de seus personagens e, sobretudo, porque nela se ouve o ronco da patuléia.
Começando pelo começo:
Nos anos 50 havia cinco garotos em Ribeirão Bonito. Dois chamavam-se Toninho, um era Raposa e havia também o Zezinho e o Tuepa. Os velhos do lugar lembram-se do dia em que quatro deles voltaram pelados para suas casas depois de um banho no rio Bicão. Tuepa sumira com suas roupas. Passados quase 50 anos, eles se reencontraram e repassaram suas carreiras. Tinham dado certo na vida. Raposa (Josmar Verillo) preside as indústrias Klabin. Toninho 1 (Antoninho Trevisan) comanda um respeitado escritório de auditoria e consultoria. Toninho 2 (Antonio Chizzotti) é padre e leciona na PUC-SP, e seu irmão Zezinho é procurador aposentado. Tuepa (Rubens Gayoso Jr.) continua metido com roupas e é o dono da marca Rubinho de zíperes, a maior do país.
Tentaram responder a uma pergunta: "A que podemos atribuir o êxito que tivemos?". Todos reconheceram que deviam muito ao que aprenderam no Grupo Escolar Coronel Pinto Ferraz. Resolveram devolver à cidade um pouco do que dela tinham recebido e, em 1999, fundaram uma ONG para ajudar a comunidade. Chamou-se Amigos Associados de Ribeirão Bonito, Amarribo.
As intenções do grupo estavam mais para romantismo cinquentão do que para militância tardia. Criaram um grupo para estudar a vocação empresarial do município, que vive de cana, laranja e umas poucas indústrias. Restauraram uma capela, organizaram uma programação cultural e até um baile com a velha orquestra do Nelson de Tupã. Tentando reescrever o roteiro do filme "Cinema Paradiso", consertaram o Cine Piratininga, o único da cidade, fechado há 28 anos.

Estavam roubando a escola
Ia tudo muito bem até que, em julho do ano passado, receberam uma denúncia. Veio do velho grupo escolar (logo dele). O pequeno empreiteiro da prefeitura estava superfaturando serviços e cobrando por coisas que não fazia. Raposa investigou a história e acabou conversando com o dono da empresa. Ele contou-lhe o seguinte: o prefeito pagava-lhe R$ 7.860 mensais (a maior despesa que a lei permite sem que se abra concorrência pública) e não se fazia serviço algum. Ao fim do mês ia ao banco, sacava o cheque da prefeitura, ficava com 10% em sua conta e colocava 90%, em dinheiro, no boné. Era a parte do prefeito. Recentemente, Buzzá confiscara-lhe os 10%. Ficava com tudo. Raposa tinha um gravador consigo.
Apareceu a segunda denúncia. Veio de uma mulher que trabalhava no preparo da merenda escolar. A prefeitura comprava mais de uma tonelada de carne por mês e em quase um ano as crianças só haviam recebido coxa e sobrecoxa duas vezes. Mesmo quando vinha frango, era tão pouco que serviam-no desfiado, com batatas.
A terceira denúncia informava que em 250 dias a prefeitura comprara 117 mil litros de gasolina para sua frota de 18 veículos (468 litros de consumo por dia) num posto a 160 quilômetros de distância, em outro município. Até aí, estava-se diante do caso clássico de prefeito que gasta o dinheiro da choldra de forma incompreensível. Fazer o quê? Manda quem pode e paga imposto quem tem juízo. Com um orçamento de R$ 7 milhões por ano, Buzzá endividara o município em R$ 1,7 milhão durante o ano de 2001.
O prefeito Buzzá entrará para a história do combate à corrupção porque estava na cidade errada na hora errada. Os garotos dos anos 50 foram atrás dele. Toninho 1, com sua infra-estrutura de auditores, passou a examinar as contas da prefeitura. Zezinho cuidou da parte legal. Raposa e Tuepa coletaram informações. A eles juntou-se uma advogada da cidade (Laurília Alquezar). No segundo semestre do ano passado, quem entrasse na loja de roupas de crianças de Lurdinha Piccollo não suspeitaria que nos fundos funcionava uma central de informações. Nisso apareceu um jornalista, o repórter Marcos Rogério, do "Primeira Página", do município vizinho de São Carlos. Todos mobilizaram-se para fazer andar a máquina de fiscalização do Estado. Em seis meses a cidade teve duas passeatas.
A Amarribo patrocinou uma ação contra o prefeito e um pedido de instalação de uma Comissão Especial de Investigações na Câmara de Vereadores. Nisso entrou na história um promotor de 28 anos (Marcel Zanin Bombardi). Já era alguma coisa, mas tinha tudo para não dar em nada. A ação poderia demorar e o prefeito tinha maioria na Câmara. A quebra do sigilo bancário de Ivan Ciarlo, dono da casa de carnes que mercadejava com a prefeitura, revelou que ele fazia pagamentos regulares ao presidente da Câmara. A filha do prefeito circulava pela cidade numa camionete Blazer registrada em nome de Ciarlo.

Uma mesada de R$ 4 mil
No final do ano passado, descobriu-se que Ribeirão Bonito pagara pelo menos R$ 180 mil a duas empresas de terraplenagem e pavimentação. O povo do lugar não se lembrava de obra alguma. Nenhuma das duas empresas existia, assim como não existia a gráfica que imprimira o talonário de notas fiscais. O dinheiro das obras ia para a conta de Ciarlo. Já se sabe que um funcionário da prefeitura vizinha de São Carlos, Wilton Moshida, redigia editais, contratava despesas e preenchia notas do talonário fantasma. (Essa é a parte da novela que ainda não acabou.)
A criação da comissão de investigação foi aprovada por 11 a 0. Todos os dias havia três queimas regulares de rojões na cidade. Era um aviso de que o caso não acabara.
Marcou-se uma audiência pública para que a população tomasse conhecimento das denúncias, e Buzzá tratou o caso pelo manual. A reunião estava marcada para as 19h. Ele mandou parar o serviço público de transportes às 18h. Como formigas atrás de açúcar, apareceram 1.100 pessoas (10% da população do município).
Durante os trabalhos da comissão, diversos funcionários da prefeitura apareceram com versões que interessavam ao prefeito. Abandonaram-nas no meio dos depoimentos. O administrador do cemitério soube que a prefeitura destinava ao seu serviço 300 litros de gasolina por mês. Revelou que precisava de combustível para a máquina de cortar grama. Quantos litros? Dez por ano. E os resto? "Não sei, não. Só se os mortos andam saindo de carro."
O chefe do almoxarifado da prefeitura sustentava que a carne era entregue, até que um vereador converteu quilos em bois e perguntou-lhe como explicava o fato de uma creche com 26 crianças ter recebido um boi por dia. Ele respondeu: "A nota fiscal eu recebia e pagava, mas o boi nunca foi". Terminou o depoimento em prantos. Em 2001 o povo de Ribeirão Bonito pagara R$ 86.610 pela carne da merenda.
Em dezembro, autorizado pela juíza Adriana Albergueti Albano, o promotor Zanin Bombardi foi à prefeitura e confiscou o papelório de Buzzá. Pressionado, ele se afastou do cargo por 30 dias.

A queda da Casa de Buzzá
No dia 19 de março, a CEI concluiu seus trabalhos e recomendou que começasse a tramitação do impedimento de Buzzá. Dois dias depois, o prefeito convocou o vereador Domingos Martins Cirqueira ao seu gabinete. Ele votara pelo andamento do processo. Buzzá informou-lhe que, como fiscal da vigilância sanitária, passaria a trabalhar na prefeitura, mas vestiria um macacão cor de laranja no qual teria, às costas, a inscrição "fiscalização". Tinha na ante-sala uma comerciante para tirar-lhe as medidas, já que seu peso está em torno dos 140 quilos. Horas depois de ter-lhe mostrado o porrete, chamou-o para falar de cenouras. Mostrou-lhe um pacote com R$ 1.000. Seria a primeira parte de uma mesada de R$ 4.000. Cirqueira levou o ervanário para casa, mas pediu que chamassem Antoninho Trevisan, a quem mostrou o dinheiro e contou a história. No dia 5 de abril, o vereador deu seu depoimento formal ao promotor. Há duas semanas, Zanin Bombardi decretou a indisponibilidade dos bens de Buzzá e conseguiu da juíza o seu afastamento do cargo. O prefeito tentou voltar por ordem do Tribunal de Justiça, mas o desembargador Roberto Bedaque manteve a decisão.
É comum ouvir que a Justiça é lenta e que as instituições brasileiras são débeis. O caso de Ribeirão Bonito mostra o contrário. A Promotoria e o Judiciário funcionaram com velocidade e rigor. Entre a primeira denúncia e o defenestramento do prefeito passaram-se apenas oito meses. A ação judicial levou metade disso. Fica a suspeita de que isso só aconteceu porque os garotos dos anos 50 sabem como funciona a máquina nacional. Pode ser. Nesse caso, vale avisar que a fórmula do pesticida que criaram para Ribeirão Bonito está a disposição dos interessados. Quem quiser pode escrever para amarribo@ig.com.br.



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