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ENTREVISTA DA 2ª
JEAN BAUDRILLARD
Conflito no Iraque só existiu para apagar o verdadeiro acontecimento: os atentados de 11 de setembro
Pensador diz que guerra é um "não-acontecimento"
Para os americanos, não há inimigo, mas um terrorismo
fantasma a ser eliminado. É o caso do filme
"Minority Report", que trata da prevenção do
crime antes que ele ocorra, e, portanto, não se
saberá nunca se ele existirá
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FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE PARIS
O filósofo e sociólogo Jean Baudrillard, 73, é um singular personagem da paisagem intelectual
francesa contemporânea. Pensador inquieto e irrequieto, provocador e radical, irônico e paradoxal, ele exige daqueles que desejam acompanhar suas idéias o
abandono de lógicas clássicas e
raciocínios lineares.
Atento, a seu modo particular,
às mudanças de seu tempo, ele
define a recente guerra no Iraque
como um "não-acontecimento",
uma tentativa fracassada de apagar o verdadeiro e simbólico
acontecimento: os atentados de 11
de setembro.
Para Baudrillard, o terrorismo é
o suicídio do Ocidente, agente e
metáfora da desintegração interna de uma superpotência mundial sem inimigos visíveis no front
de combate. Essa é, segundo ele, a
quarta guerra mundial que estamos vivendo. Um conflito alimentado por uma nova Guerra
Fria, provocada pela obsessão de
seguridade imposta pela ameaça
terrorista.
No próximo mês, o filósofo desembarcará no Brasil, na Bienal
do Livro do Rio, para o lançamento da edição brasileira de "Power
Inferno" (ed. Sulina), uma reunião de três textos escritos em
2002: "Réquiem para as Torres
Gêmeas", "Hipóteses sobre o Terrorismo" e "A Violência do Mundial". Outra de suas obras, "Telemorphose" (2001), também está
com lançamento previsto para este ano no país.
No seu apartamento em Paris,
próximo ao Jardim de Luxemburgo, Jean Baudrillard recebeu a Folha para expor seu pensamento
sobre os acontecimentos e não-acontecimentos mundiais deste
turbulento início de século.
Folha - Que relação o senhor vê
entre os atentados de 11 de setembro e a guerra contra o Iraque?
Jean Baudrillard - Há, evidentemente, uma lógica na estratégia,
no acontecimento político e militar. Há um tipo de encadeamento,
mas também uma antinomia. Para mim, isso é o mais importante.
O único e verdadeiro acontecimento foi o 11 de setembro, e a
guerra é o não-acontecimento, algo que foi feito para eliminar o
primeiro. A relação entre os dois
não é lógica, mas é uma contratransferência. A guerra é uma reação, um meio de vencer um desafio. É uma guerra à imagem do
conflito do Golfo, são quase guerras clonadas. Elas não têm sentido, são injustificáveis, mas isso já
é outra coisa. A questão não é "a
favor ou contra", mas saber o que
significa essa guerra.
Folha - E qual é o significado?
Baudrillard - Ela existe por outra
coisa, não tem sentido nela mesma e nem mesmo tem um objetivo direto. Saddam Hussein não
era mais do que a sombra de um
fantasma, ao contrário de Bin Laden, que tem uma outra dimensão. Há, inclusive, essa história sobre a estátua de Saddam derrubada na praça no centro de Bagdá:
foi dito que era a estátua de um
sósia de Saddam. Gosto muito
dessa história, pois é a imagem de
todo o resto, tudo é sósia, tudo é
artefato. Foi um acontecimento
truncado. O 11 de setembro foi algo simbólico no sentido mais forte. Já a guerra é algo no qual tudo
foi encenado, programado e mesmo vencido de antemão. Foi um
acontecimento sem surpresa.
Mesmo assim, houve um pequeno momento no qual se pensou
que o Iraque iria resistir, e o não-acontecimento estava quase se
tornando um acontecimento.
Folha - Num recente debate com
o filósofo Jacques Derrida, o sr. teve sua teoria questionada. Como
dizer que uma guerra é virtual
quando há milhares de mortos
reais?
Baudrillard - Derrida dizia que
os mortos iraquianos, o petróleo,
tudo isso não é virtual, é real.
Acho um erro. Se começamos a
debater baseados no argumento
das vítimas etc, não há discussão,
não há mais nada a dizer. Mas o
que eu quero é compreender - é
ainda um direito do homem, não?
Não quero ser enganado. E nesse
caso há um mistificação.
Também sou contra essa superpotência mundial, mas não nessa
forma antiglobalização. Sou radicalmente contra, mas quero saber
de que ponto de vista podemos
realmente combatê-la. Se deploramos as vítimas do World Trade
Center, do Iraque e nos detemos
nessa moralização, acabou. O
problema, infelizmente, se tornou
muito mais simples, mais violento e mais radical. E minha teoria é
a de que a análise seja também
mais violenta e mais radical. E
nesse momento, evidentemente,
ela se torna tão inaceitável quanto
o acontecimento. Mas, num sentido, ela faz parte do acontecimento, como as imagens. Ela participa
um pouco do mal.
Hoje, os movimentos antiglobalização, no fundo, querem ser
mais moralistas do que o sistema,
mais humanos. Tudo muito respeitável, mas creio que estrategicamente, politicamente não serve.
Hoje, não há nada mais a fazer senão colocar o problema a partir
do terrorismo. É o único contraponto. E o terrorismo não é forçosamente violento. Certamente, há
formas violentas. Mas há um terrorismo "soft", mesmo no nível
dos indivíduos e dos grupos. Ainda precisa ser feita uma genealogia da violência. Há a violência
nos subúrbios, os carros incendiados e tudo mais. Pode-se dizer
que, se eles tivessem o que comer,
tudo seria tranqüilo. Não é verdade. Há os que têm o que comer, o
conforto absoluto, mas, numa determinada hora, há um tipo de recusa, de negação de uma situação
que se tornou insuportável. Se vamos longe demais no conforto, na
superabundância, num dado momento ocorre algo de perverso.
Folha - Como o senhor acompanhou a guerra?
Baudrillard - Somos tomados
pelas imagens e forçados a saber o
que acontece. É algo espetacular,
mas bastante abjeto, obsceno,
aterrorizante pelo lado da superpotência americana e pelo outro
lado, no qual não há inimigo, não
há confrontos. A guerra foi um
objeto perdido, não se sabe o que
fazer dela. No imaginário, estamos sempre ao lado das vítimas,
mas, objetivamente, estamos do
lado da superpotência que ataca, e
é uma situação insolúvel.
Para os americanos, não há inimigo, mas sim um terrorismo
fantasma a ser eliminado, dentro
da estratégia da prevenção. É o caso do filme "Minority Report",
que trata da prevenção do crime
antes que ele ocorra e, portanto,
não se saberá nunca se ele existirá.
A guerra é algo programado à repetição, ela não começa verdadeiramente, mas também não terminará. É interminável. Já o acontecimento é totalmente imprevisível e, quando ocorre, termina, e
ele é, de uma certa maneira, indestrutível. Nesse confronto, há
um antagonismo no qual o terrorismo é, ao mesmo tempo, agente
e metáfora. E não é somente o terrorismo islâmico,
mas tudo o que resiste, toda singularidade, toda recusa
a essa espécie de
império unilateral.
A verdadeira guerra é essa, e não o
confronto que se
viu no Iraque.
Essa é a quarta
guerra mundial.
Nunca houve um
verdadeiro front de
guerra islâmico.
Bin Laden e todo o
resto não são um
front. Não há uma
verdadeira solução
para essa guerra. Os
americanos não
têm verdadeiros
inimigos, pois não
há um face a face,
não há combates.
Ao mesmo tempo,
eles são perdedores, pois o inimigo
desapareceu, e isso
é o pior que poderia
ter acontecido.
Folha - O sr. coloca
a verdadeira vitória do terrorismo
na imposição ao Ocidente de uma
obsessão pela segurança e fala de
uma nova Guerra Fria.
Baudrillard - O terrorismo de seguridade é uma Guerra Fria estendida a todos os países, a todas
as populações. Veja o que ocorreu
no teatro de Moscou, quando o
poder se voltou contra sua própria população para exterminar
os terroristas e os reféns ao mesmo tempo. Essa é a verdade da situação em que vivemos. O terrorismo que está aí é, ao mesmo
tempo, o produto e o contraproduto da situação atual. Ele não é o
anarquismo do passado, nem
também o terrorismo palestino.
Não é o terrorismo suicida perdedor. Ele coloca a contestação,
também pela morte, mas não tem
os meios, pela globalização, de
combater a superpotência segundo sua própria lógica.
Folha - O choque de civilizações é
uma teoria que já teria nascido ultrapassada?
Baudrillard - Não são as civilizações que estão em questão, nem
as culturas ou as religiões. Há um
choque, mas é um "choque e pavor", como dizia o outro. Nesse
choque, há um só conjunto, que é
a globalização. Não
se trata de um choque entre duas coisas. Mas é a superpotência em si que
se desfaz e se desintegra. O terrorismo
é o agente, o operador dessa desintegração interna da
superpotência. Isso
é o importante, e
sem isso não compreendemos nada.
Hoje não há mais
duas superpotências adversas. Já há
muito tempo os
americanos estudam estratégias da
guerra assimétrica,
na qual os dois inimigos não estão no
mesmo plano. A
chave da situação é
que toda superpotência globalizada
não pode mais lutar, na falta de inimigos, de adversidades, de alteridade. Dizer que o terrorismo tem uma causa, seja da
violência histórica, do islamismo,
é menos grave do que dizer que,
no fundo, o terrorismo é a autodestruição da superpotência
mundial.
Folha - O sr. diz que o terror está
no ar e que o terrorismo não faz
mais do que cristalizar partículas
em suspensão.
Baudrillard - A situação do império deflagra, não só no Islã, uma
reação. Daí essa espécie de júbilo,
de fascinação em relação ao 11 de
setembro. Podemos nos sentir espantados, transtornados, mas isso não impede essa coexistência
no nosso imaginário do transtorno e do júbilo, mesmo naqueles
que depois fizeram todo tipo de
considerações morais. Não é racional, mas é algo profundo da
ambivalência das coisas.
As imagens do 11 de setembro
são midiáticas. Elas fazem parte
do acontecimento. É um momento, como o ato em si, instantâneo
e terá quase uma repercussão viral. E agora vemos o vírus asiático,
as catástrofes, os acidentes, tudo
isso, objetivamente, é terrorismo.
Mesmo uma catástrofe natural é
terrorismo. A natureza é destruída, domesticada, explorada e, de
vez em quando, se vinga. Racionalmente, isso não tem sentido.
Mas, simbolicamente, sim.
O terrorismo apanha tudo, é
epicentral. E, depois, tudo o que
se produz e que desestabiliza um
poder qualquer se torna terrorismo. O próprio poder faz essa dedução, pois tudo que o ataca é designado como terrorismo. Em vez
de se dizer que é uma contestação
política ou algo parecido, é mais
simples definir como terrorismo.
Fala-se em eixo do mal, quando
as coisas são bem mais complicadas. Não há um eixo, mas um paraeixo, o eixo que passa mesmo
no centro da superpotência. Não é
mais um eixo, mas uma nebulosa
terrorista, uma nebulosa do mal.
É preciso exterminar tudo se se
quer resolver o problema.
Folha - Os valores universais, segundo o sr., tiveram sua chance
histórica, mas a perderam.
Baudrillard - Os valores universais, na esfera da modernidade,
foram dizimados, aniquilados.
Não há mais valores de transcendência, estamos num funcionamento total, operacional, estratégico. Valores como a democracia
ou direitos humanos são instrumentalizados a serviço da própria
superpotência, que age em contraponto ou mesmo em contradição com seus próprios valores.
O problema é que todas as soluções apresentadas ao terrorismo e
à violência recorrem a esses valores universais. Prega-se a volta à
política no sentido tradicional,
aos valores morais. Não tenho ilusões em relação a isso. Nessa
guerra, por exemplo, vimos Jacques Chirac e a ONU proferirem
seus discursos morais, que foram
logo varridos de cena.
Folha - Vivemos hoje uma confusão de valores?
Baudrillard - O que está em
questão é a modernidade. A modernidade como progresso contínuo, como história. Com o pós-moderno, já temos um questionamento da modernidade, já é uma
passagem além do "tudo é aceitável", do "não há mais valores absolutos", os grandes ideais acabaram. Já é uma decomposição da
modernidade. Hoje, o global talvez seja também uma ruptura.
Não é o contrário, mas uma outra
coisa. É algo instável e que joga
com a instabilidade. Não há mais
meios de encontrar uma ética
qualquer. Tenta-se encontrá-la no
nível genético e outros, mas não
se consegue. Não se consegue saber onde está o limite do humano.
Não conseguimos mais definir
nem mesmo os direitos humanos.
Há direitos para todo mundo hoje. Há o direito da vítima e do carrasco, o direito do bebê de não
nascer. Chegamos a uma espécie
de confusão, não há mais demarcações. Não sabemos onde estamos na questão do verdadeiro e
do falso, do bem e do mal. Hoje
há, novamente, uma tentativa desesperada de fazer com que existam o bem e o mal. Uma tentativa
também dos que estão no poder
nos EUA, os falcões americanos. É
uma tentativa de recriar valor,
reencontrar o real depois de toda
essa realidade virtual, "Matrix" e
tudo mais. Refazer o real e dizer
"isso é real".
Folha - Ouvindo o sr. falar, é difícil vislumbrar uma saída para esse
impasse deste início de século.
Baudrillard - No momento, efetivamente, estamos numa situação
insolúvel. É uma boa coisa que essa grande superpotência mundial
seja radicalmente questionada
por algo que a atinja realmente,
que a deslegitimize, que seja provado que ela não é invencível. É a
única chance de se poder tentar
pensar em outra coisa. Em relação
aos atentados do 11 de setembro,
aos terroristas, certamente suas
razões e motivações são más e não
são aceitáveis, mas não se deve levar isso em conta, e sim o acontecimento em si mesmo.
Quando meu amigo Paul Virilio
[pensador francês" fala de uma
guerra civil planetária, ele não está errado. Há uma desintegração
interna. O poder elimina seu próprio objeto. O objeto sobre o qual
ele vai exercer um poder, ele também o extermina
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