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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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ELIO GASPARI

O anjo do doutor Alceu vai morar nas livrarias

Alceu em 1918 e com a mulher em 1951
Chega nesta semana às livrarias o anjo de Alceu Amoroso Lima. Vem na forma de livro, um elegante cartapácio de dois quilos, 670 páginas, com o preço de R$ 78. É "Cartas do Pai", com a correspondência de Alceu para sua filha madre Maria Teresa, monja beneditina desde 1951. São quase mil cartas, de 1958 ao final de 1968. Para os sem-R$ 78, uma boa notícia: o Instituto Moreira Salles, responsável pela edição, quer botar o texto na internet.
A obra é um monumental diário de um homem de fé, um católico da igreja. É também a narrativa de um lutador da liberdade. De todas as liberdades, inclusive da sua. Assim:
"Não consigo tomar partido por um sujeito, por um partido, por uma classe, por um país, por um filósofo, ou mesmo por uma filosofia, por um poeta, por uma escola literária, por um regime político. Tenho horror ao um... E foi isso que me reteve tanto tempo às portas da Igreja Católica. E só entrei quando vi e senti que ela não era uma, mas múltipla."
Madre Maria Teresa extricou das cartas aquilo que elas tinham de diálogo de pessoas amadas. Disso resultou o monólogo de um grande homem, capaz de achar que o cardeal Angelo Roncalli poderia ser manipulado pela Cúria Romana, tornando-se um "Joãozinho 23", um pastor que seria "comido pelos lobos". Em, 1963, quando o papa se foi, ele escreveu: "João 23 foi a passagem da esperança... e o rastro que deixou, ao menos para mim, irá me acompanhar até o fim".
Um diário pode ser uma grande obra pela alma do autor, pelo tempo em que vive e pela posição em que ele está. Doutor Alceu acumulou as três qualificações. Uma grande alma, observando uma época turbulenta a partir de um cadeirão encravado no andar de cima do refinamento cultural. Ele admitia a hipótese de ter trazido o tango para o Brasil, em 1915. É dele a seguinte lição: "Adoro não fazer nada. Mas detesto perder tempo".
Foi a Alceu que San Tiago Dantas disse, no dia 31 de março de 1964, que iria começar uma noite de 20 anos.
Foi a ele que o Núncio Apostólico pediu um relatório sobre a nova ordem militar. Em 1964, Tristão de Athayde, o pseudônimo do dr. Alceu na imprensa ou, como ele dizia, nas "croniquetas", denunciou o "terrorismo cultural" da ditadura. O presidente Castello Branco lhe telefonou, defendendo-se. Tristão era bondoso, porém duro. Juscelino Kubitschek? "Paranóico." Nelson Rodrigues? "Autor de peças e livros terríveis de imoralidade." João Goulart: "No momento, o perigo golpista vem do Jango, não há dúvida [29 de fevereiro de 1964]".
Dr. Alceu morreu em 1983, aos 90 anos, e passou para a história como o grande pensador da esquerda católica brasileira. É pouco, talvez nada. O intelectual que aparece nas cartas é um liberal que combateu todas as ditaduras (a começar pelas comunistas), todos os despautérios administrativos (a começar por Brasília), todas as malandragens (a começar pelos cargos que lhe ofereciam). "Esquerda" é um qualificativo ralo para Alceu Amoroso Lima. Melhor dizer decente. Viveu numa sociedade onde o andar de cima acha que a decência é um supérfluo importado.

Coincidências de empreiteiros

Está dura a vida no Ministério dos Transportes. Sua equipe de fiscalização teve de propor a revogação de duas concorrências para a recuperação de trechos de rodovias. Numa, para 125 km da BR 267, de São Paulo a Nova Alvorada, 48 empresas retiraram o edital. Quatro apresentaram propostas. Duas foram inabilitadas e sobraram duas.
Na outra concorrência, para 123 km da BR 267, as empresas foram 42, e novamente apareceram quatro propostas, das mesmas empreiteiras. Novamente, restaram duas. Em todos os casos, sobraram só a Arg e a Torc.
Depois de tantas coincidências, nada mais natural que a Torc vencesse por margens de 1,79% num lote e de 1,85% no outro.
Empreiteiros não gostam que se percebam coincidências. Não se sabe se os interesses do PMDB no ministério têm opinião a respeito desse caso.

O preço do "Oitão"

É com satisfação que aqui se noticia a decisão do Tribunal de Contas da União mandando que nove hierarcas da Caixa Econômica tucana devolvam à Viúva R$ 63 mil por terem gasto seu dinheiro na famosa propaganda do "Oitão", no ano passado. Era aquele imenso "8" que parecia festejar o aniversário do Plano Real e contrabandeava louvação do governo em ano eleitoral. A Caixa foi condenada por ter desviado R$ 7,5 milhões de suas funções.
O "Oitão" foi uma campanha concebida no Palácio do Planalto. Petrobras, Banco do Brasil, Eletrobrás, Furnas e Correios também entraram na farra.
Se os burocratas tiverem de pagar uma parte do que torram, as coisas melhoram. No comissariado de Luiz Gushiken, ninguém voltará a ter a idéia de transformar o Congresso Nacional em porta-bandeira de eventos do governo federal.

Na briga da Receita com a polícia, deu-se mal o vigilante

Os ministros Antonio Palocci Filho e Márcio Thomaz Bastos ainda não se deram conta de que estão presidindo a favelização dos aeroportos brasileiros. No Rio, US$ 30 mil custaram a vida ao comerciante Chan Kim Chang. Em Cumbica, no dia 11 passado, um auditor da Receita (Antonio de Souza Coelho) relatou formalmente a seus superiores que foi ameaçado de morte por um policial federal que julga chamar-se Navarro.
O episódio mostra que, se há no Brasil uma casa-da-mãe-joana, ela fica no aeroporto de Cumbica. Pelo seguinte:
Tanto a Receita quanto a PF haviam sido avisadas, por um agente da Abin, que um passageiro vindo de Roma (Alitalia 0672) tentara sair pela porta da Polícia Federal, carregando uma pesada bagagem. (Doutores Palocci e Thomaz Bastos: os senhores conhecem alguém que já tentou sair de um aeroporto, por engano, pela porta da polícia?)
O cidadão foi detido pela Polícia Federal. Seus agentes entraram na área sob jurisdição da alfândega e um deles ameaçou de morte o auditor Coelho. Nisso, um vigilante da empresa Ofício, que presta serviços à Receita, entrou no lance, do lado do auditor. Foi derrubado, desarmado, detido e levado para as dependências da PF. Saiu de lá para o hospital Santa Marcelina.
Até aí, tudo bem. Um contrabandista tenta sair do aeroporto pela porta da polícia, agentes invadem a alfândega, ameaçam um auditor de morte, um agente de segurança entra na confusão, é detido e se machuca. Como a Viúva pagou a instalação de um circuito interno de TV na sala da alfândega, essa confusão deve estar registrada. Nada feito. As câmeras estão desligadas. Por quê? O doutor Palocci pode saber.
As câmeras falham, mas deve existir um registro da ocorrência. Com a palavra o auditor Coelho: "A partir da chegada do delegado da Polícia Federal ao aeroporto de Cumbica, sr. Troncon, ele e o João Figueiredo [inspetor substituto da alfândega] assumiram o controle da situação, propondo a elaboração de um documento omitindo os detalhes do conflito".
Isso tudo aconteceu no dia 11. Na semana seguinte, a Polícia Federal e a Receita se reuniram em Cumbica e em Brasília. O secretário da Receita, Jorge Rachid, foi informado do que aconteceu. A presidente do Unafisco, Maria Lucia Fatorelli, também teve um relato do charivari.
Inquérito? Nem pensar. Os fatos relacionados com o episódio só não ficaram nos conventículos de Brasília porque o relatório do auditor Antonio de Souza Coelho, rubricado, datado e assinado, bateu asas e voou. Do ponto de vista do ministro Thomaz Bastos, o caso é ameaçador. Pressupondo-se que semelhante confusão pudesse ser esquecida pelos participantes, os padrões de silêncio do aeroporto de Cumbica teriam chegado a um nível semelhante ao do complexo do Alemão, no Rio.
Do ponto de vista do ministro Palocci, a situação está feia. Ou o relatório do auditor Coelho merece fé, e nesse caso, armou-se um simulacro de mal-entendido para abafar uma ameaça de morte, ou ninguém lhe deve dar crédito. Tudo bem. Mas, se ele não merece fé para relatar o que lhe sucede, como haverá de merecê-la para autuar contribuintes?
E o vigilante? Desse ninguém cuidou. O doutor Rachid não lhe deu nenhum telefonema. Até a noite do dia 18, a doutora Fatorelli, presidente do sindicato dos auditores, não o havia procurado.
Se o homem do ouro era um avulso, faltou-lhe sorte. Se fosse um dos integrantes das quadrilhas que operam entre a Europa e o Brasil trazendo jóias e levando pedras brutas, teria perdido uns US$ 200 mil, mas poderia lançar o prejuízo no risco Brasil. Entre o homem da mala do ouro, o auditor e os policiais, o vigilante era o menor salário a bordo.
Alguém poderia se interessar por esse brasileiro. Ele é um terceirizado. Não está na folha da Viúva, mas é filho de Deus.

Aos interessados

O governo sabe que o patrimônio de 3.000 brasileiros no Estado da Flórida (leia-se Miami) chega a US$ 250 milhões. A maior parte desse ervanário está em imóveis, e a sua totalidade jamais passou pelo Fisco. Não se sabe como o dinheiro foi ganho no Brasil nem como viajou para os Estados Unidos. Pode-se estimar que em Nova York o patrimônio desse caixa dois seja de pelo menos outros US$ 250 milhões, o que soma meio bilhão de dólares.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música e a qualquer tipo de inclusão, sobretudo a digital. Ela concedeu mais uma de suas bolsas de estudo para a prefeita de Campinas, Izalene Tieni, pela seguinte peça legislativa:
"Lei nº 11.643, de 26 de agosto de 2003.
Dispõe sobre o uso da linguagem inclusiva na legislação municipal.
A Câmara Municipal aprovou e eu, prefeita do município de Campinas, sanciono e promulgo a seguinte lei:
Artigo 1º - As leis e atos normativos do município passarão a usar linguagem inclusiva na edição dos seus textos.
Parágrafo único - Para os efeitos desta lei, entende-se por linguagem inclusiva:
I - a utilização de vocábulos que designam o gênero masculino apenas para referir-se ao homem, sem que seu alcance seja estendido à mulher;
II - nos textos escritos ou falados, toda referência à mulher deverá ser feita expressamente utilizando-se, para tanto, o gênero feminino;
III - todas as vezes em que se referir ao coletivo dos seres humanos deverá ser utilizado "ser", "pessoa" ou "pessoa humana"."
Natasha não alcançou o sentido da expressão "coletivo dos seres humanos". Ela supõe que designe o coletivo petista, somado aos demais bípedes.

CPI morta a pau

O PT federal pode dormir em paz. Apesar das tintas de guerra que enfeitam os rostos de alguns parlamentares da oposição, a CPI das irregularidades cometidas na Prefeitura de Santo André será assassinada.
É uma pena, porque as CPIs servem para inibir a conduta de pessoas que se julgam onipotentes e acabam fazendo o que não deveriam.
A vigilância do PT impediu muitas besteiras da liga PSDB-PFL.


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