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CRIME ORGANIZADO
Descentralização das verbas para fins diversos estimula fraudes em prefeituras de todo país
Indústria da nota fria domina corrupção
da Agência Folha
Quem esperava que a descentralização administrativa reduzisse a corrupção na área pública se
enganou. Os esquemas de fraude
com o dinheiro do contribuinte se
sofisticaram para bater nas portas
dos 5.507 prefeitos do país.
Uma indústria de notas fiscais
frias usa o know-how já empregado em golpes famosos como o
"escândalo da mandioca" (da década passada) e o esquema PC,
como atestam a Polícia Federal e a
Procuradoria da República em levantamento feito pela Agência
Folha em 20 Estados.
"Antes tudo ficava restrito a um
grupinho. Agora generalizou-se,
virou uma esculhambação. Qualquer um que quiser desviar verba
pública usa nota falsa para justificar gastos", avalia o chefe da Divisão de Polícia Fazendária da PF,
Ivan Rosa Marques.
Os "grupinhos" citados por
Marques desviaram US$ 13,7 milhões do crédito agrícola do Banco do Brasil em Pernambuco, no
"escândalo da mandioca", e cerca
de US$ 1 bilhão no esquema liderado por PC Farias, tesoureiro de
campanha de Fernando Collor.
A análise é endossada por seu
colega do Piauí, delegado Francisco Airton Franco Filho: "Essa cultura é o ralo por onde passa a sangria de recursos públicos, é o "modus operandi" da corrupção".
Hoje, nenhuma autoridade responsável por vigiar o emprego de
dinheiro do contribuinte (tribunais de contas, Ministério Público
e polícias) tem idéia do volume de
recursos fraudados, tamanha a
disseminação da prática no país.
Segundo o procurador-chefe da
República em Alagoas, Delson
Lyra da Fonseca, a municipalização "pulverizou" esse tipo de irregularidade. "Criaram escolas de
papel, remédios de papel, obras
de papel. A falsa comprovação de
despesa virou uma indústria nacional após a descentralização de
recursos", afirma.
Em Caxias (MA), o Tribunal de
Contas da União estima que, em
seis anos, 61% dos R$ 66 milhões
do SUS (Sistema Único de Saúde)
foram parar em cofres que não os
dos hospitais públicos da cidade
de 133 mil habitantes. Todos os tipos de notas fraudadas serviram
para desviar R$ 40 milhões.
Em Palmas (TO), procuradores
apuram o sumiço de R$ 1,1 milhão de dois convênios com os
ministérios da Cultura e da Saúde.
A assessoria do prefeito Manoel
Odir Rocha (PPB) nega irregularidades e afirma que todas as
obras foram realizadas, o que
contradiz documentos em poder
da Procuradoria da República.
Mais 11 municípios do Estado
estão sob investigação. Para o
procurador da República Mário
Lúcio Avelar, "com toda a certeza
existem fraudes em 100% das prefeituras" de Tocantins.
Organizações criminosas envolvidas com roubos e assassinatos
se utilizam também desse esquema de corrupção. No Piauí, por
exemplo, 90% (201) das 223 prefeituras são suspeitas de estar envolvidas com a quadrilha montada, segundo a polícia, pelo coronel reformado da Polícia Militar
José Viriato Correia Lima.
As investigações ainda não
apontam o tamanho da fraude,
mas já se verificou que a maior
parte vinha do Fundo de Participação dos Municípios (parcela da
arrecadação de IPI e IR repassada
a prefeituras e que é empregada
em obras e serviços).
Empresas "fantasmas" ou comandadas por laranjas serviam
para justificar as despesas com
compras e prestação de serviços.
Os valores ficavam restritos a no
máximo R$ 150 mil, estabelecidos
pela legislação como limite para
dispensa de licitação.
A comissão cobrada para "legalizar" a fraude era de 10% do total
da nota fiscal fria. O esquema, segundo a PF, existe há dez anos. O
dinheiro ficava com os prefeitos.
Em Chapadão do Sul (MS), o
ex-prefeito Edwino Raimundo
Schultz (PFL) é acusado de lançar
mão de empresas "fantasmas"
para desviar R$ 500 mil (o equivalente à receita mensal do município) entre 1997 e maio último.
Para isso, teria comprado notas
frias da Padamo Comercial Ltda.
e da Danipam Comercial Ltda.,
ambas de Ribeirão Preto (SP), segundo o Ministério Público do
Estado. Não se sabe quanto ele teria pago pela operação. Schultz foi
cassado pela irregularidade.
O advogado do pefelista, Felix
Nunes da Cunha, nega que seu
cliente tenha cometido fraudes.
A política da "rapinagem", como define o procurador-chefe da
República no Espírito Santo, Ronaldo Albo, também serve para
pagar dívidas eleitorais.
Em seu Estado, diz, a organização criminosa conhecida como
"Scuderie Detetive Le Coq" (que
seria formada por policiais) investe na eleição de representantes
municipais. Para preservar suas
apurações, Albo não revela nomes das cidades e dos envolvidos.
O esquema é confirmado pelo
superintendente da PF no Maranhão, Sidney Lemos. Os agiotas
cobram do eleito o que foi gasto
na campanha ou o repasse de valores previamente combinados.
Mesmo que não concorde com
a fraude, o prefeito vira refém do
grupo que se diz "dono" de sua
candidatura, segundo Lemos.
"Os casos dos prefeitos mortos
no Piauí, por exemplo, são quase
todos relacionados com ameaças
de agiotas. Se eles não pagam, são
ameaçados", afirma. Nesta década, há sete casos de prefeitos
piauienses assassinados.
O aumento das atribuições dos
municípios foi adotado pela
Constituinte de 1988 para pôr fim
à máfia da intermediação de verbas que dominava Brasília. Para
obter recursos do governo central, prefeitos e governadores usavam empresas de lobby. A administração FHC incentivou a municipalização, em especial na educação e na saúde.
Os procuradores ouvidos pela
Agência Folha são unânimes ao
apontar que esse processo ocorreu sem a criação de estruturas
capazes de fiscalizar as responsabilidades dadas aos prefeitos.
"Os tribunais de contas ficam
restritos a ver se os números dos
prefeitos batem com os gastos
realizados, até porque, mesmo
que verifiquem irregularidades,
as Câmaras é que decidem se haverá investigação", diz Avelar.
Mais uma vez o contribuinte fica sem controle do gasto de seu
dinheiro. Como afirma a sub-procuradora da República Ela
Castilho, "se não há exercício da
cidadania, se as pessoas não participam, não há fiscalização".
Colaboraram Ari Cipola, Eduardo de Oliveira,Fábio Guibu, Irineu Machado, Kamila Fernandes, José Maschio e Paulo
Zocchi, da Agência Folha
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