São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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CRIME ORGANIZADO
Descentralização das verbas para fins diversos estimula fraudes em prefeituras de todo país
Indústria da nota fria domina corrupção

da Agência Folha

Quem esperava que a descentralização administrativa reduzisse a corrupção na área pública se enganou. Os esquemas de fraude com o dinheiro do contribuinte se sofisticaram para bater nas portas dos 5.507 prefeitos do país.
Uma indústria de notas fiscais frias usa o know-how já empregado em golpes famosos como o "escândalo da mandioca" (da década passada) e o esquema PC, como atestam a Polícia Federal e a Procuradoria da República em levantamento feito pela Agência Folha em 20 Estados.
"Antes tudo ficava restrito a um grupinho. Agora generalizou-se, virou uma esculhambação. Qualquer um que quiser desviar verba pública usa nota falsa para justificar gastos", avalia o chefe da Divisão de Polícia Fazendária da PF, Ivan Rosa Marques.
Os "grupinhos" citados por Marques desviaram US$ 13,7 milhões do crédito agrícola do Banco do Brasil em Pernambuco, no "escândalo da mandioca", e cerca de US$ 1 bilhão no esquema liderado por PC Farias, tesoureiro de campanha de Fernando Collor.
A análise é endossada por seu colega do Piauí, delegado Francisco Airton Franco Filho: "Essa cultura é o ralo por onde passa a sangria de recursos públicos, é o "modus operandi" da corrupção".
Hoje, nenhuma autoridade responsável por vigiar o emprego de dinheiro do contribuinte (tribunais de contas, Ministério Público e polícias) tem idéia do volume de recursos fraudados, tamanha a disseminação da prática no país.
Segundo o procurador-chefe da República em Alagoas, Delson Lyra da Fonseca, a municipalização "pulverizou" esse tipo de irregularidade. "Criaram escolas de papel, remédios de papel, obras de papel. A falsa comprovação de despesa virou uma indústria nacional após a descentralização de recursos", afirma.
Em Caxias (MA), o Tribunal de Contas da União estima que, em seis anos, 61% dos R$ 66 milhões do SUS (Sistema Único de Saúde) foram parar em cofres que não os dos hospitais públicos da cidade de 133 mil habitantes. Todos os tipos de notas fraudadas serviram para desviar R$ 40 milhões.
Em Palmas (TO), procuradores apuram o sumiço de R$ 1,1 milhão de dois convênios com os ministérios da Cultura e da Saúde. A assessoria do prefeito Manoel Odir Rocha (PPB) nega irregularidades e afirma que todas as obras foram realizadas, o que contradiz documentos em poder da Procuradoria da República.
Mais 11 municípios do Estado estão sob investigação. Para o procurador da República Mário Lúcio Avelar, "com toda a certeza existem fraudes em 100% das prefeituras" de Tocantins.
Organizações criminosas envolvidas com roubos e assassinatos se utilizam também desse esquema de corrupção. No Piauí, por exemplo, 90% (201) das 223 prefeituras são suspeitas de estar envolvidas com a quadrilha montada, segundo a polícia, pelo coronel reformado da Polícia Militar José Viriato Correia Lima.
As investigações ainda não apontam o tamanho da fraude, mas já se verificou que a maior parte vinha do Fundo de Participação dos Municípios (parcela da arrecadação de IPI e IR repassada a prefeituras e que é empregada em obras e serviços).
Empresas "fantasmas" ou comandadas por laranjas serviam para justificar as despesas com compras e prestação de serviços.
Os valores ficavam restritos a no máximo R$ 150 mil, estabelecidos pela legislação como limite para dispensa de licitação.
A comissão cobrada para "legalizar" a fraude era de 10% do total da nota fiscal fria. O esquema, segundo a PF, existe há dez anos. O dinheiro ficava com os prefeitos.
Em Chapadão do Sul (MS), o ex-prefeito Edwino Raimundo Schultz (PFL) é acusado de lançar mão de empresas "fantasmas" para desviar R$ 500 mil (o equivalente à receita mensal do município) entre 1997 e maio último.
Para isso, teria comprado notas frias da Padamo Comercial Ltda. e da Danipam Comercial Ltda., ambas de Ribeirão Preto (SP), segundo o Ministério Público do Estado. Não se sabe quanto ele teria pago pela operação. Schultz foi cassado pela irregularidade.
O advogado do pefelista, Felix Nunes da Cunha, nega que seu cliente tenha cometido fraudes.
A política da "rapinagem", como define o procurador-chefe da República no Espírito Santo, Ronaldo Albo, também serve para pagar dívidas eleitorais.
Em seu Estado, diz, a organização criminosa conhecida como "Scuderie Detetive Le Coq" (que seria formada por policiais) investe na eleição de representantes municipais. Para preservar suas apurações, Albo não revela nomes das cidades e dos envolvidos.
O esquema é confirmado pelo superintendente da PF no Maranhão, Sidney Lemos. Os agiotas cobram do eleito o que foi gasto na campanha ou o repasse de valores previamente combinados.
Mesmo que não concorde com a fraude, o prefeito vira refém do grupo que se diz "dono" de sua candidatura, segundo Lemos.
"Os casos dos prefeitos mortos no Piauí, por exemplo, são quase todos relacionados com ameaças de agiotas. Se eles não pagam, são ameaçados", afirma. Nesta década, há sete casos de prefeitos piauienses assassinados.
O aumento das atribuições dos municípios foi adotado pela Constituinte de 1988 para pôr fim à máfia da intermediação de verbas que dominava Brasília. Para obter recursos do governo central, prefeitos e governadores usavam empresas de lobby. A administração FHC incentivou a municipalização, em especial na educação e na saúde.
Os procuradores ouvidos pela Agência Folha são unânimes ao apontar que esse processo ocorreu sem a criação de estruturas capazes de fiscalizar as responsabilidades dadas aos prefeitos.
"Os tribunais de contas ficam restritos a ver se os números dos prefeitos batem com os gastos realizados, até porque, mesmo que verifiquem irregularidades, as Câmaras é que decidem se haverá investigação", diz Avelar.
Mais uma vez o contribuinte fica sem controle do gasto de seu dinheiro. Como afirma a sub-procuradora da República Ela Castilho, "se não há exercício da cidadania, se as pessoas não participam, não há fiscalização".


Colaboraram Ari Cipola, Eduardo de Oliveira,Fábio Guibu, Irineu Machado, Kamila Fernandes, José Maschio e Paulo Zocchi, da Agência Folha


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