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LIVRO/ANÁLISE
As memórias casuais de FHC, para americano ler
VINICIUS TORRES FREIRE
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
A rainha da Inglaterra, muito agradável, ensinou a Fernando Henrique e Ruth Cardoso
como abrir e fechar as gavetas de
roupas dos aposentos de hóspedes do Palácio de Buckinghan.
Lady Diana disse a FHC que os
homens brasileiros eram vaidosos. Mas a preferida do ex-presidente na família real era mesmo a
rainha-mãe.
No livro que FHC lança nos
EUA em março, tais anedotas merecem tanto espaço quanto, por
exemplo, a privatização das teles.
"The Accidental President of Brazil - A Memoir" ("Presidente do
Brasil por Acaso - Memória") é
uma autobiografia leve, livro de
esquetes e anedotas temperado
por resumos colegiais de história
do Brasil para estrangeiros. Sem
fatos ou idéias novas e rascantes.
FHC prepara outra autobiografia, para a editora Record. Também deve ser lançada em março e
por ora leva o título "Minhas Memórias do Poder". Os poucos que
leram partes do livro, tratado como secretíssimo, dizem que o volume brasileiro é mais forte.
O "Presidente por Acaso" começa com a narrativa das origens
quase patrícias do ex-presidente.
Na famosa litografia, o avô de
FHC é um dos oficiais republicanos que levam a ordem de exílio
ao deposto imperador Pedro 2. A
avó filha da burguesia comercial
carioca e freqüentadora da corte
dos Bragança horroriza-se na visita que faz ao rústico Goiás governado pelo bisavô Cardoso. Pai e
parentes são generais, conselheiros e amigos de presidentes, e por
vezes rebeldes e presos políticos.
Brasil inzoneiro
O ex-presidente pinta os políticos brasileiros com um colorido
bananeiro e com seu suave, irônico e simpático esnobismo. Getúlio Vargas, esboçado com mais
detalhe e respeito, aparece metralhando ele mesmo integralistas
que atacavam seu palácio em
1938. Carnaval, café, futebol, cordialidade, compadrio e jeitinho
são assuntos recorrentes. FHC
parece mais um ensaísta dos anos
30 e 40 do que o sociólogo industrial e político que foi.
O olho torto de Jânio Quadros,
"feio, bêbado, mulherengo, tolo e
irresponsável" e uma das obsessões do livro, merece meia dúzia
de menções. FHC seria derrotado
por Jânio na eleição para prefeito
de São Paulo em 1985, derrota e
campanha sórdida que pelo jeito
o marcaram muito. Foi nessa
campanha que FHC deu uma resposta evasiva sobre sua religião.
No livro, o ex-presidente diz que
não é ateu e que vai a igrejas.
Da Globo, diz que mentiu sobre
a campanha das Diretas Já. De José Sarney, que seu governo foi
uma série de desastres. De Fernando Collor quase aceitou o
convite para ser chanceler, pois se
sentia seduzido pelos seus planos
de governo. Da Carta de 1988 diz
que era uma lista de desejos irrealista, com privilégios como a semana de 44 horas de trabalho, um
projeto anacrônico de Estado de
bem-estar social, que então entrava em colapso na Europa. De Florestan Fernandes (1920-1995),
fundador da sociologia uspiana e
seu mentor, magras linhas.
O Real e seu fim merecem uma
narrativa mais cuidada, mas que
ainda não faz jus ao intelectual. O
real forte acabou pelos seguintes
motivos. O mundo globalizado é
instável. A imaturidade de Wall
Street provoca pânicos e contágios financeiros. Havia enorme
déficit público, que tinha de ser
coberto com capital estrangeiro,
atraído por juros altos. Havia obstinação das elites em impedir reformas como a da Previdência.
Havia acusações injustas de corrupção, que aumentavam a desconfiança dos investidores no
Brasil. Houve o calote de Itamar
Franco governador de Minas.
E nada mais sobre economia, a
não ser reformas de mercado.
Sociólogo por acaso
FHC aprendeu a ler aos três
anos, teve tutor francês e foi garoto de praia no Rio, horrorizado ao
mudar para uma São Paulo rústica, de ruas poeirentas, que sujavam seu sapato bicolor. A idéia de
ser sociólogo veio quase por acaso, de um diálogo à beira da piscina em Águas de Lindóia com o
crítico português e professor fundador da USP Fidelino de Figueiredo (1888-1967).
O seminário Marx, grupo de estudos do qual participariam os
principais cientistas sociais do
país, surgiu numa conversa de
praia com o filósofo José Arthur
Giannotti. Virou chanceler de Itamar num cafezinho na cozinha e
foi ministro da Fazenda à revelia.
O sociólogo acidental das memórias de FHC é obcecado com a
desigualdade racial e de renda,
"herança escravocrata", do descaso com a educação e com a reforma agrária. A instabilidade, o desprezo pela lei e o "jeitinho" brasileiros são estratégias da elite para
manter privilégios, como o foi a
inflação e como o é o déficit público. O sociólogo seria um ser mais
preparado para detectar e operar
a mudança estabilizadora no país
institucionalmente caótico. Por
vezes, a reflexão intimidou e atrapalhou o político. Mas o sociável
articulador de consensos reparava o problema.
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva surge como um arguto e inovador líder sindical, companheiro
de campanhas de FHC, e termina
como um desapontamento, um
governo incompetente e acusado
de corrupção, embora adepto das
idéias tucanas. Tal adesão começou, sugere FHC, numa conversa
que os dois tiveram no Alvorada,
em 98: após ouvir um discurso sobre globalização e o muro de Berlim, Lula nunca mais seria o mesmo, tornando-se menos radical.
José Serra é o outro político nacional vivo mais citado. É o único
apenas enaltecido, como Bill Clinton e Nelson Mandela, da grande
lista de grandes nomes que FHC
conheceu e sobre os quais nada de
interessante se passa a saber.
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