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ENTREVISTA DA 2ª/CEZAR BRITTO
Novo presidente da OAB afirma que as mudanças políticas da Bolívia e da Venezuela são reflexos da vontade do povo
Onda populista na América Latina deve ser respeitada
LILIAN CHRISTOFOLETTI
DA REPORTAGEM LOCAL
NASCIDA PELA vontade expressa do povo, a
onda populista em países como Venezuela e Bolívia tem de ser respeitada, diz o
novo presidente nacional OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Cezar Britto, 44, que usa a palavra "soberano" sempre que se refere ao povo.
"Esse fenômeno é decorrente da expressão popular, não de
golpes militares nem da força, o
que é muito bom para a América e para o mundo", afirmou o
advogado trabalhista, que assumirá a presidência da Ordem
nesta quinta-feira.
Até mesmo a prerrogativa
obtida por Hugo Chávez de governar a Venezuela por meio de
decretos, sem que precise passar pelo Legislativo, na opinião
do advogado, é fruto da vontade
popular. "É bem diferente do
que ocorreu no Iraque, onde a
democracia nasceu da imposição de um país sobre o outro."
E um eventual terceiro mandato de Lula, também eleito
numa democracia? Não, disse
Britto, declaradamente contrário a qualquer tipo de reeleição.
A relação OAB e Lula, marcada pela troca de farpas durante
a gestão do atual presidente da
Ordem, Roberto Busato, será
ditada pela postura do governo.
Ex-secretário-geral de Busato, Britto apoiou a proposta feita pela OAB de convocação do Conselho da República, que
ajudasse Lula a governar, e de
impeachment do presidente,
no auge da crise do "mensalão".
Sergipano e sobrinho do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto -indicado por Lula para o
cargo-, Britto disse que o social será a marca de sua gestão.
Entre suas metas está fechar
o cerco contra a proliferação de
faculdades de direito no país.
"Nasce uma a cada três dias",
disse o advogado, que foi chapa
única na disputa pelo cargo.
Britto concedeu a entrevista
por telefone.
FOLHA - A OAB tem sido bastante
crítica em relação ao presidente Lula. Pediu a convocação do Conselho
da República e propôs o impeachment. Como será a gestão do sr.?
CEZAR BRITTO - Busato [atual
presidente] viveu uma época
muito específica do primeiro
mandato do governo Lula e respondeu à altura. O segundo
mandato ainda é uma incógnita. Não se sabe qual será a opção do presidente Lula, se a cooptação ou a coalização. Essa
escolha é que direcionará a
nossa administração. A OAB
não é partidária, mas é um órgão político. Nossa política é
defender a cidadania e a advocacia, independentemente dos
governantes. Eu era diretor da
Ordem, o que significa que, o
que Busato manifestou era o
que tinha sido aprovado por
nós, era a posição da entidade.
FOLHA - Qual será a marca da administração do sr.?
BRITTO - A Ordem tem uma linha histórica comum a todos os
presidentes. E essa linha comum avança, tensiona ou recua
dependendo também do perfil
do presidente. O meu perfil é o
de alguém ligado aos movimentos sociais, que aprendeu que,
para mudar o mundo, é preciso
dar a sua contribuição. Sob a
minha presidência, a OAB terá
uma função muito ativa no que
se refere aos movimentos sociais e à defesa da cidadania.
FOLHA - O que mudará na prática?
BRITTO - Vamos fortalecer a
presença da OAB nos órgãos de
controle de políticas públicas.
Uma idéia é reunir várias entidades sociais, num foro de discussões, para que juntas possam ajudar a resolver grande
parte da desigualdade do país.
Vamos tratar ainda da responsabilização do Judiciário sobre
o clima de insegurança e de injustiça no país. Teremos discussão e muita ação para que o
Brasil efetivamente melhore.
FOLHA - Que avaliação o sr. faz da
gestão do presidente Lula?
BRITTO - Embora tenha avançado no campo social, ainda manteve as amarras assistencialistas que vêm de há muitos anos.
É preciso fortalecer cada vez
mais os mecanismos de participação da sociedade no destino
da nação. A OAB propôs, como
referendo, as leis de iniciativa
popular. Defendemos a criação
do "recall", que é a possibilidade de o soberano cassar o parlamentar que se mostrou antiético no curso do mandato.
FOLHA - Como funcionaria o "recall" num Congresso com tantas crises, como a do mensalão e a do sanguessuga?
BRITTO - Como o parlamentar é
o representante do soberano,
do povo, temos de permitir que
esse soberano casse o mandato
de quem não correspondeu às
expectativas. O exemplo da
atual legislativa foi extremamente ruim pelo número de
absolvições de pessoas envolvidas em esquemas de cooptação,
como o mensalão, ou de desvio
de verbas, como o sanguessuga.
É preciso dar mecanismos para
que o soberano exerça sua vontade. O projeto do "recall" está
no Congresso, na chamada reforma política, que, aliás, será o
grande divisor de águas do segundo mandato. Por meio desta reforma o governo
Lula vai demonstrar se quer realmente
um governo de coalizão ou não.
FOLHA - Há esperança de os parlamentares aprovarem uma medida
que colocará em risco os próprios
mandatos?
BRITTO - Esse é o exemplo que o
Congresso tem de dar. Está iniciando uma legislatura, com
novos parlamentares que fizeram promessas ao povo. Agora
é cada um começar a fazer a sua
parte, esquecer um pouco de
seus medos e seus interesses
pessoais e pensar no Brasil.
FOLHA - Na Venezuela e na Bolívia,
a Constituição tem sido alterada para aumentar os poderes dos presidentes. Como o sr. vê esse momento
e que distinção faz com o Brasil?
BRITTO - O Brasil sempre teve
uma postura correta de respeitar a determinação dos povos.
Cada pessoa tem direito de escolher a face do seu país e a forma como ele será desenvolvido.
Na América Latina, embora se
fale da volta do populismo, ele
tem nascido com a vontade e a
participação expressa do povo,
e isso tem de ser respeitado. Esse fenômeno é decorrente da
expressão popular, não de golpes militares nem da força, o
que é bom para a América e para o mundo. É diferente quando a democracia é imposta, como ocorre no Iraque. Lá, a democracia é por imposição de
um país sobre o outro. Então,
há uma grande diferença entre
as duas situações. A democracia não nasce por imposição,
mas pela vontade do povo.
FOLHA - Não é perigoso para a democracia quando o presidente tem
o poder de baixar decretos com força de lei, sem precisar passar pelo Legislativo, como na Venezuela?
BRITTO - É muito difícil opinar
sobre a decisão soberana de um
povo. E foi numa decisão soberana que o Congresso aprovou
a medida. Não houve nenhuma
imposição por meio da força ou
de um golpe militar.Trata-se da
expressão da vontade do povo,
o que deve ser respeitado numa
democracia.
FOLHA - Se o presidente Lula, eleito
numa democracia, tentasse um terceiro mandato, o sr. seria favorável?
BRITTO - A OAB é contra qualquer tipo de reeleição, seja na
esfera federal, estadual ou municipal. A reeleição não fez bem
ao país desde a sua origem,
quando houve denúncias de
compra de votos. O que nasce
viciado, continuará viciado no
futuro. A nossa experiência
com uma reeleição não é boa.
Imagine com duas.
FOLHA - Nesta semana o presidente falou que o Brasil tem uma democracia consolidada. O sr. concorda?
BRITTO - Está parcialmente
consolidada. É claro que avançou muito. As crises que ocorreram nos últimos anos não implicaram nenhum abalo institucional. Ao contrário, as instituições funcionaram corretamente, o Ministério Público
trabalhou, a polícia trabalhou,
os advogados trabalharam. Mas
não está consolidada porque há
ainda uma grande desigualdade. O Brasil ainda é o campeão
de concentração de renda, com
uma exclusão social e racial
muito forte. Grande parte da
população não goza de seus direitos, apesar de vivermos numa democracia.
FOLHA - O Poder Judiciário tem responsabilidade sobre esse cenário?
BRITTO - O Judiciário é o poder
mais fechado do Brasil. Nós, os
advogados, que fazemos parte
do Judiciário, precisamos contribuir para que ele cumpra a
sua função de ser o responsável
pela aplicação da justiça. Se temos hoje um Brasil desigual e
injusto, o Judiciário tem que
assumir sua responsabilidade.
Nós temos de fazer a nossa parte. Por isso, na minha gestão,
vamos aprofundar o diálogo,
assumir as nossas próprias culpas nessa sensação de ineficiência e de impunidade, nessa
sensação de que somente pobre
vai para a cadeia.
FOLHA - Isso não é uma verdade?
BRITTO - No Brasil os pobres
vão muito mais para a cadeia. E
é preciso descobrir e avaliar o
motivo de tal fenômeno. Não se
pode socializar o crime, que
tem de ser apurado e julgado de
forma igual para todos. Esse é
um dos pontos que faz com que
o Brasil não seja democrático,
uns têm mais direitos do que
outros, uns têm mais mecanismos de defesa do que outros.
FOLHA - O sr. concorda com a tentativa do Judiciário e de outros poderes de elevar seus salários acima
do teto constitucional?
BRITTO - É preciso que se tenha
um teto que regule o serviço
público. Certa vez o ministro
Ayres Britto [do STF] disse
uma frase que serve de parâmetro sobre a importância da definição do teto. Ele disse: "O serviço público não pode ser um
voto de pobreza, mas ele é um
veto à riqueza". Ou seja, não pode, por meio do serviço público,
ter um ganho fácil. A partir do
momento em que o Congresso
e o presidente da República dizem, quando sancionam o salário mínimo, que um trabalhador sobreviveria com R$ 350,
não podem cair na contradição
de achar que R$ 24 mil é pouco.
Ou a regra da igualdade vale ou
ela faz do Brasil uma democracia do faz-de-conta.
FOLHA - O sr. tem propostas para a
reforma trabalhista, que é a sua especialidade?
BRITTO - A reforma trabalhista,
assim como a sindical, é extremamente necessária. Porém,
tem de ser compreendida dentro de sua função social, de que
o trabalho, como disse Gonzaguinha [compositor], é fator de
felicidade para o homem. Não
se pode pensar em reforma trabalhista para reduzir salários,
mas para ampliar o poder de
compra e a forma de negociação do trabalhador com o empregador. A reforma não deve reduzir o custo Brasil para que
possamos competir em iguais
condições com países que desrespeitam os direitos do trabalhador, como a China, nem reduzir os direitos do trabalhador, que já são mínimos. Já temos uma legislação de direitos
mínimos. Quando se fala em reforma é para permitir o crescimento e o desenvolvimento social. Quem pensa no trabalho
como custo de produção não vê
nele um fator de desenvolvimento social.
FOLHA - O sr. concorda com o uso
do FGTS em infra-estrutura? Isso fere o direito do trabalhador?
BRITTO - A primeira leitura que
fiz desta medida é que simboliza um desvio de finalidade. Não
está clara a proteção do patrimônio do trabalhador em caso
de má aplicação do fundo, ainda mais quando se sabe que o
Estado brasileiro não é um bom
gerente de recursos. É preciso
ter uma garantia maior para
que o trabalhador não seja mais
uma vez punido.
FOLHA - Será possível manter uma
relação de independência com o ministro do STF Ayres Britto?
BRITTO - Tenho com ele uma
relação extremamente fraterna, como costuma acontecer
com as famílias unidas. Não há
nenhuma interferência da relação de afetividade com as nossas atividades profissionais. A
minha relação com o Supremo
será a mesma que tenho com
todos os magistrados, harmoniosa porém independente.
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