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LANTERNA NA POPA
Plus ça change...
ROBERTO CAMPOS
Recordar é viver, dizem.
Acontece que eu andava relembrando algumas coisas de outros tempos, coisas de economistas, e de repente me dei conta de que a França já foi, como
aqui a pátria amada, um país
bagunçado. Há pouco mais de
dois séculos, a situação das contas públicas havia chegado a
um ponto interessante. Os gastos andavam por 300 milhões
de "livres", e a receita, aí por
uns 140 milhões. O serviço da
dívida levava perto de metade
das despesas, e havia rubricas
"incompreensíveis" ("sociais",
militares etc.). Tão importante
foi o crescimento da dívida que
até hoje se usa o termo "rentier"
(mesmo na língua inglesa) para
designar os que viviam das rendas dos papéis públicos. O banqueiro Necker, ministro da Fazenda, pulava numa perna só,
apertando daqui e dali, firme
na guerrilha contra a camarilha de intrigantes palacianos
que ficavam em torno da rainha Maria Antonieta (que tinha o apelido de "Madame Déficit").
Até o pobre Luiz 16, bom sujeito, tentou ajudar, reduzindo
os gastos das cavalariças de 22
para 17 milhões de "livres" -e
quem conhece governo sabe o
quanto isso terá representado
como sacrifício: um sacrifício
realmente "cavalar" (com perdão do trocadilho...).
Para atrapalhar, a meteorologia. Naquele tempo não se falava em aquecimento da atmosfera, El Niño, buraco de ozônio, e
outros acontecimentos pelos
quais se pode culpar alguém. É
claro que, para alguns, seria
uma vingança celestial contra
as peraltices inauguradas por
Adão. Chuvas, más colheitas,
não havia os transportes de hoje, e o final foi a confusão geral
(há quem conte quatro revoluções juntas...), conhecida como
a gloriosa Revolução Francesa.
Os "xiitas" de Robespierre acabaram por tomar conta do poder. O déficit continuou bravo.
Inventaram uma espécie de papel moeda, os "Assignats". A inflação disparou. Em termos patrioticamente brasileiros, era
uma inflaçãozinha micha, uma
vez que, em cinco anos, só reduziu o valor dos "Assignats" a
20% (basta fazer a conta, menos de 30% ao ano de desconto)... O governo xiita (naquele
tempo, dizia-se "jacobino")
tentou tudo, inclusive a guilhotina, entre outras medidas "heterodoxas", tais como fixação
de preços máximos. Depois,
achou que era preciso colocar
tetos também nos salários. Como todo o mundo que vai a
cinema sabe, Robespierre acabou também passando pela
"navalha da República", o simpático nome dado à "guilhotina", engenhoca do bem-intencionado médico dr. Guillotin...
O crédito talvez seja a mais
diabólica das invenções humanas. Os governos, antigamente,
faziam malandragens com a
moeda física, ou arrancavam
dinheiro na marra (historicamente, não há raça mais detestada do que os fiscais de impostos, e o próprio pioneiro da química científica -Lavoisier-,
por causa de uma ligação com o
fisco monárquico, teve a cabeça
cortada pela República. Esta solenemente declarou, a respeito,
que não precisava de sábios
-hoje, são chamados "cientistas"...).
Assim que aprenderam meios
e modos de arranjar dinheiro
emprestado, os governos não
pararam mais, em parte alguma. O que varia é o grau de
descontrole. Aliás, não são só os
governos. A "febre amarela",
como alguns andaram chamando a generalizada crise asiática,
resultou, antes de mais nada, de
más práticas bancárias privadas e abusos de crédito, canalizado sobretudo para o setor
imobiliário e alguns grandes
grupos industriais. Por outro
lado, o crédito é o estimulante
que mais anima os negócios. E,
é claro, os governos têm de gastar. Mandar e gastar são as
duas faces da mesma moeda da
gestão pública.
A democracia moderna foi inventada pelos ingleses, há quase
oito séculos, precisamente para
controlar os gastos do soberano.
Até hoje usamos a palavra "soberania" para fins dúbios -e
quem não se lembra dos nossos
bobos subxiitas, com a famosa
"moratória soberana", que até
hoje continua a custar-nos caríssimo? Agora, lá fora, o que
está na moda é falar em "risco
moral" para os vários tipos e
graus de calotes e semicalotes
soberanos. Mais elegante...
Não há forma alguma, no Estado contemporâneo, de se conterem decisivamente as despesas governamentais. Dos governos autoritários, é claro, nem
falar. Mas, mesmo nas democracias, o eleitor quer ver resultados, obras, receber serviços
públicos e poder contar com
uma "rede de segurança" social
cada vez mais abrangente. É
um longo processo educativo
até se chegar ao ponto em que a
maioria comece a perceber que
nada sai de graça (ou, como
dizem os economistas, não há
almoço gratuito...). Para o conjunto da sociedade não pode
haver boca-livre, conquanto alguns políticos achem que é simples questão de sensibilidade
social.
Na verdade, temos aqui dois
grandes e complicados problemas, o da "eficiência" e o da
"legitimidade", que, embora
pertencendo a dois universos de
discurso distintos, não são tratáveis, nem sequer pensáveis,
separadamente. A "legitimidade" depende da resposta a algumas perguntas muito sérias:
quem tem direito a quê, quem
tem de contribuir com que para
quem e a quem cabe decidir
quem tem de pagar o que a
quem e como. A simples regra
da maioria na marra seria obviamente idiota: 51% poderiam
despojar de quanto quisessem
os 49% restantes. Igualdade à
força não funciona porque as
pessoas são desiguais. E hoje,
aliás, desiguais não mais naqueles termos de "classe", objeto da maldição simplista dos
marxistas, mas de formas muito
mais complexas de competência
técnica e profissional. Formas,
aliás, até cruéis de seleção. Mas
não vamos entrar nisso agora.
A questão da "eficiência", não
menos séria, tende a ser mal
entendida, sobretudo em países
como o nosso, ainda relativamente subeducados e lacunarmente desenvolvidos. E, já que
iniciamos pelo século 18, voltemos um instante a ele. Em 1766,
um panfletista anônimo, na Inglaterra, escreveu o seguinte:
"As pessoas, não percebendo a
escassez, tendem a ter inveja
umas das outras, cada uma suspeitando que a outra quer descontar a desigualdade roubando o que lhe pertence... como
duas pessoas brigando por um
cobertor muito curto, acabam
por destruí-lo, e ficando sem defesa contra o frio... O quinhão
do trabalhador sendo poucas
vezes mais do que o mínimo...
às vezes encoraja alguns a se
servirem da força... Mas isso raramente acontece, salvo na má
administração de governos relaxados ou mal geridos".
Não, ele não estava falando
do Brasil, que naquele tempo
era apenas colônia lusa -e já
bem mal administrada, que se
diga. A sorte é que a sede do
governo ficava longe, e, ao contrário de Brasília, não existiam
ainda Varig, Vasp e Transbrasil... Nunca pensei que fosse ficar preocupado com a privatização, mas já estou um pouco.
Já pensaram o que acontecerá
quando as comunicações se tornarem mais eficientes, e Brasília ficar menos remota? Em todo o caso, como Deus parece
que é brasileiro, e até baiano,
não percamos a esperança...
Digo essas coisas, em tom de
brincadeira, principalmente
porque são muito sérias. Fernando Henrique não tem obstáculos sérios no caminho da reeleição. Sob o ponto de vista da
lucidez, da racionalidade, e da
acessibilidade, não há o que lhe
objetar. E é justo reconhecer a
firmeza com que tem sabido
aguentar o real. As dificuldades
deste período, com a herança
da inflação e da Constituição
de 1988, dispensam comentários. Mas o próximo governo terá de ser diferente. Terá de ser,
antes de mais nada, de boa, de
muito boa gestão, coisa que
ainda não faz parte das nossas
tradições... Até agora, Fernando Henrique tem demonstrado
mais vocação intelectual analítica do que gerencial. Esse é,
porém, o desafio dos novos tempos. Certamente, Fernando
Henrique não vai querer que
digam dele, quando acabar o
mandato, à moda francesa,
"plus ça change, plus c'est le
même chose" -"quanto mais
muda, mais é a mesma coisa".
Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de
Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro
do Planejamento (governo Castello Branco). É
autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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