São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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LANTERNA NA POPA
Plus ça change...

ROBERTO CAMPOS

Recordar é viver, dizem. Acontece que eu andava relembrando algumas coisas de outros tempos, coisas de economistas, e de repente me dei conta de que a França já foi, como aqui a pátria amada, um país bagunçado. Há pouco mais de dois séculos, a situação das contas públicas havia chegado a um ponto interessante. Os gastos andavam por 300 milhões de "livres", e a receita, aí por uns 140 milhões. O serviço da dívida levava perto de metade das despesas, e havia rubricas "incompreensíveis" ("sociais", militares etc.). Tão importante foi o crescimento da dívida que até hoje se usa o termo "rentier" (mesmo na língua inglesa) para designar os que viviam das rendas dos papéis públicos. O banqueiro Necker, ministro da Fazenda, pulava numa perna só, apertando daqui e dali, firme na guerrilha contra a camarilha de intrigantes palacianos que ficavam em torno da rainha Maria Antonieta (que tinha o apelido de "Madame Déficit").
Até o pobre Luiz 16, bom sujeito, tentou ajudar, reduzindo os gastos das cavalariças de 22 para 17 milhões de "livres" -e quem conhece governo sabe o quanto isso terá representado como sacrifício: um sacrifício realmente "cavalar" (com perdão do trocadilho...).
Para atrapalhar, a meteorologia. Naquele tempo não se falava em aquecimento da atmosfera, El Niño, buraco de ozônio, e outros acontecimentos pelos quais se pode culpar alguém. É claro que, para alguns, seria uma vingança celestial contra as peraltices inauguradas por Adão. Chuvas, más colheitas, não havia os transportes de hoje, e o final foi a confusão geral (há quem conte quatro revoluções juntas...), conhecida como a gloriosa Revolução Francesa. Os "xiitas" de Robespierre acabaram por tomar conta do poder. O déficit continuou bravo. Inventaram uma espécie de papel moeda, os "Assignats". A inflação disparou. Em termos patrioticamente brasileiros, era uma inflaçãozinha micha, uma vez que, em cinco anos, só reduziu o valor dos "Assignats" a 20% (basta fazer a conta, menos de 30% ao ano de desconto)... O governo xiita (naquele tempo, dizia-se "jacobino") tentou tudo, inclusive a guilhotina, entre outras medidas "heterodoxas", tais como fixação de preços máximos. Depois, achou que era preciso colocar tetos também nos salários. Como todo o mundo que vai a cinema sabe, Robespierre acabou também passando pela "navalha da República", o simpático nome dado à "guilhotina", engenhoca do bem-intencionado médico dr. Guillotin...
O crédito talvez seja a mais diabólica das invenções humanas. Os governos, antigamente, faziam malandragens com a moeda física, ou arrancavam dinheiro na marra (historicamente, não há raça mais detestada do que os fiscais de impostos, e o próprio pioneiro da química científica -Lavoisier-, por causa de uma ligação com o fisco monárquico, teve a cabeça cortada pela República. Esta solenemente declarou, a respeito, que não precisava de sábios -hoje, são chamados "cientistas"...).
Assim que aprenderam meios e modos de arranjar dinheiro emprestado, os governos não pararam mais, em parte alguma. O que varia é o grau de descontrole. Aliás, não são só os governos. A "febre amarela", como alguns andaram chamando a generalizada crise asiática, resultou, antes de mais nada, de más práticas bancárias privadas e abusos de crédito, canalizado sobretudo para o setor imobiliário e alguns grandes grupos industriais. Por outro lado, o crédito é o estimulante que mais anima os negócios. E, é claro, os governos têm de gastar. Mandar e gastar são as duas faces da mesma moeda da gestão pública.
A democracia moderna foi inventada pelos ingleses, há quase oito séculos, precisamente para controlar os gastos do soberano. Até hoje usamos a palavra "soberania" para fins dúbios -e quem não se lembra dos nossos bobos subxiitas, com a famosa "moratória soberana", que até hoje continua a custar-nos caríssimo? Agora, lá fora, o que está na moda é falar em "risco moral" para os vários tipos e graus de calotes e semicalotes soberanos. Mais elegante...
Não há forma alguma, no Estado contemporâneo, de se conterem decisivamente as despesas governamentais. Dos governos autoritários, é claro, nem falar. Mas, mesmo nas democracias, o eleitor quer ver resultados, obras, receber serviços públicos e poder contar com uma "rede de segurança" social cada vez mais abrangente. É um longo processo educativo até se chegar ao ponto em que a maioria comece a perceber que nada sai de graça (ou, como dizem os economistas, não há almoço gratuito...). Para o conjunto da sociedade não pode haver boca-livre, conquanto alguns políticos achem que é simples questão de sensibilidade social.
Na verdade, temos aqui dois grandes e complicados problemas, o da "eficiência" e o da "legitimidade", que, embora pertencendo a dois universos de discurso distintos, não são tratáveis, nem sequer pensáveis, separadamente. A "legitimidade" depende da resposta a algumas perguntas muito sérias: quem tem direito a quê, quem tem de contribuir com que para quem e a quem cabe decidir quem tem de pagar o que a quem e como. A simples regra da maioria na marra seria obviamente idiota: 51% poderiam despojar de quanto quisessem os 49% restantes. Igualdade à força não funciona porque as pessoas são desiguais. E hoje, aliás, desiguais não mais naqueles termos de "classe", objeto da maldição simplista dos marxistas, mas de formas muito mais complexas de competência técnica e profissional. Formas, aliás, até cruéis de seleção. Mas não vamos entrar nisso agora.
A questão da "eficiência", não menos séria, tende a ser mal entendida, sobretudo em países como o nosso, ainda relativamente subeducados e lacunarmente desenvolvidos. E, já que iniciamos pelo século 18, voltemos um instante a ele. Em 1766, um panfletista anônimo, na Inglaterra, escreveu o seguinte:
"As pessoas, não percebendo a escassez, tendem a ter inveja umas das outras, cada uma suspeitando que a outra quer descontar a desigualdade roubando o que lhe pertence... como duas pessoas brigando por um cobertor muito curto, acabam por destruí-lo, e ficando sem defesa contra o frio... O quinhão do trabalhador sendo poucas vezes mais do que o mínimo... às vezes encoraja alguns a se servirem da força... Mas isso raramente acontece, salvo na má administração de governos relaxados ou mal geridos".
Não, ele não estava falando do Brasil, que naquele tempo era apenas colônia lusa -e já bem mal administrada, que se diga. A sorte é que a sede do governo ficava longe, e, ao contrário de Brasília, não existiam ainda Varig, Vasp e Transbrasil... Nunca pensei que fosse ficar preocupado com a privatização, mas já estou um pouco. Já pensaram o que acontecerá quando as comunicações se tornarem mais eficientes, e Brasília ficar menos remota? Em todo o caso, como Deus parece que é brasileiro, e até baiano, não percamos a esperança...
Digo essas coisas, em tom de brincadeira, principalmente porque são muito sérias. Fernando Henrique não tem obstáculos sérios no caminho da reeleição. Sob o ponto de vista da lucidez, da racionalidade, e da acessibilidade, não há o que lhe objetar. E é justo reconhecer a firmeza com que tem sabido aguentar o real. As dificuldades deste período, com a herança da inflação e da Constituição de 1988, dispensam comentários. Mas o próximo governo terá de ser diferente. Terá de ser, antes de mais nada, de boa, de muito boa gestão, coisa que ainda não faz parte das nossas tradições... Até agora, Fernando Henrique tem demonstrado mais vocação intelectual analítica do que gerencial. Esse é, porém, o desafio dos novos tempos. Certamente, Fernando Henrique não vai querer que digam dele, quando acabar o mandato, à moda francesa, "plus ça change, plus c'est le même chose" -"quanto mais muda, mais é a mesma coisa".


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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