São Paulo, domingo, 29 de julho de 2001

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RELIGIÃO

Novo arcebispo do Rio elege a desigualdade social e as carências educacionais como principais problemas do país

D. Eusébio critica socialismo e capitalismo

MARCELO BERABA
DIRETOR DA SUCURSAL DO RIO

O novo arcebispo do Rio, d. Eusébio Scheid (pronuncia-se cháit), 68, elege a desigualdade social e as carências na área da educação como os principais problemas do país. Scheid substituirá o cardeal d. Eugenio Sales, 80, que vai se aposentar após ficar à frente da Arquidiocese do Rio por 30 anos.
"O primeiro é a desigualdade, a injustiça da desigualdade, a falta de atenção às necessidades sociais. Depois, a violência, a morosidade da Justiça, o pessimismo cívico e político. Outro problema, gravíssimo, é o da educação", disse o religioso catarinense.
Ao olhar para trás, para o período em que iniciou seu sacerdócio, na década de 60, acha que o Brasil melhorou, mas não em todas as áreas. A saúde e a fome, por exemplo, ainda são problemas.
Ele destaca um ponto em que acredita que houve um grande avanço: a consciência cívica. "Se hoje se levanta muitos escândalos, é que as coisas vêm mais às claras, e com isso o povo cria um senso político mais apurado." Sobre os casos de corrupção envolvendo políticos, afirmou: "Pessoas de alta colocação e de responsabilidade que deveriam ser honradas, de repente tombam como cedros do Líbano e isto é um estardalhaço de ordem emotiva, de ordem social, de ordem cívica".
D. Eusébio se diz crítico tanto do sistema capitalista como do socialista. Ele defende uma alternativa de solidariedade e respeito humano, o que, na sua opinião, falta ao FMI (Fundo Monetário Internacional): "Até que ponto o pagamento de uma dívida pode sacrificar uma nação? É uma questão que peca contra a dignidade humana". Ele defende a criação de uma instância ética, com poder político, acima do organismo internacional.
Outro ponto que o incomoda é o da ameaça de monopólio nos meios de comunicação. "O monopólio seria um desastre, e isso é próprio de totalitarismos."
Prova do prestígio do cargo que ocupará a partir de 22 de setembro, d. Eusébio foi convidado pelo papa para participar do Sínodo que discutirá em outubro, no Vaticano, o papel dos bispos. Ele se junta a outros eleitos pela CNBB para representar a igreja brasileira: d. Luciano Mendes de Almeida, de Mariana, d. Jayme Chemello (presidente da CNBB) e os novos cardeais d. Cláudio Hummes, de São Paulo, e d. Geraldo Majella Agnelo, de Salvador. D. Eusébio ainda está em Florianópolis e deu a entrevista por telefone, na sexta.

 

Folha - Se fosse possível fazer uma hierarquia, que problemas o sr. destacaria hoje no Brasil?
D. Eusébio Scheid -
O primeiro é a desigualdade, a injustiça da desigualdade, a falta de atenção às necessidades sociais. Depois, a violência, a morosidade da Justiça, o pessimismo cívico e político. Outro problema, gravíssimo, é o da educação. Este talvez seja o primeiro problema. Diria também que acho um absurdo o problema da fome que reina em determinadas regiões do país. Além disso, o abuso de menores, notadamente a prostituição infantil. O narcotráfico. Não sei como hierarquizar, mas é sério o problema do narcotráfico, que está associado à violência. Quando falo da morosidade da Justiça, eu atento especialmente ao problema da situação dos carcerários, que ficam mofando nas prisões. É uma triste realidade.

Folha - O que está na raiz desses problemas? Onde o Brasil está tendo dificuldades de acertar?
D. Eusébio -
A falta de respeito à dignidade humana, é aí onde está todo o problema. Parece até que se adota o princípio de [Thomas" Hobbes, que dizia que o homem para o outro homem é um lobo, enquanto a palavra de Jesus nos diz que somos todos irmãos.

Folha - Olhando para trás, para o período em que o sr. começou seu trabalho pastoral, em 1964, o sr. diria que o Brasil melhorou ou piorou?
D. Eusébio -
Há regiões no Brasil que melhoraram muito, como alguns Estados do Sul, e há outras que pioraram tremendamente. Em muitas coisas o Brasil melhorou muitíssimo. Na área das comunicações, por exemplo, na área dos transportes, embora nos tenha custado caro, porque foram os petrodólares em grande parte que sedimentaram a melhoria das estradas no passado.
Mas em outras áreas, como a saúde, eu não sei se nós não estamos pior. Na educação, não estamos onde deveríamos estar, mas estamos melhor. Também estamos melhor na consciência cívica. Se hoje se levantam muitos escândalos, é que as coisas vêm mais às claras, e com isso o povo cria um senso político mais apurado, mais acentuado. E creio também que aumentou a solidariedade. Mas seria incrível pensar que em tantos anos o país não tivesse melhorado. Somos um povo inteligente e criativo.

Folha - A igreja critica igualmente o socialismo e o capitalismo e vem buscando um caminho alternativo, mas pouco claro. Como o sr. vê essa questão dos modelos econômicos e políticos?
D. Eusébio -
Primeiro, temos de distinguir entre socialismo e socializar. A igreja é até a favor de socialização, mas não do socialismo. Socialização é a participação cada vez maior e melhor de todos no bem comum. É um termo usado até pelo papa. O socialismo é um sistema de poder absoluto nas mãos de poucos e com grande descrédito em relação à democracia. É um sistema que milita contra a situação do homem na modernidade e na pós-modernidade.
O capitalismo é o modelo econômico baseado na injustiça, na desigualdade e no mercado livre, da oferta e da procura ao bel-prazer de quem mais possa lucrar. Eu, evidentemente, não sou a favor do capitalismo, muito menos do capitalismo selvagem, que se traduz assim: desde que eu lucre, dana-se quem for. Esse sistema é injusto em si mesmo.
No meu entender, a única via é a da solidariedade. A minha posição é otimista. Nós estamos caminhando para uma cultura de solidariedade, que, no fundo, num idealismo maior, chamar-se-ia de civilização do amor. O futuro da humanidade depende disso. Ou ela se fecha num sistema totalitário ou semitotalitário, ou ela se abre para essa solidariedade. Se não, vamos terminar todos de maneira muito desastrosa.

Folha - Civilização do amor? Não é muito utópico?
D. Eusébio -
É utópico se olhar do ponto de vista da maldade atual. Mas não é utópico se formos considerar certas premissas como a dignidade humana e não se deixar nortear por filosofias como a de [Jean-Paul" Sartre, que diz que o outro é o inferno, que o outro é meu inimigo. Que partamos de Merleau-Ponty, que considera o outro uma preciosidade a ser descoberta, conferida e valorizada. Apelando para a mensagem cristã, não é difícil ver no outro a imagem de Deus.

Folha - Como o sr. avalia nossos quadros políticos, muitos envolvidos em denúncias de corrupção, de desvio de dinheiro público ou de desvios éticos?
D. Eusébio -
A única coisa que posso dizer é que é lamentável. O que considero mais grave é o descrédito que se lança em cima da própria política. Segundo dizia Aristóteles, a política é a arte das artes, porque é a arte do bem comum. Esses escândalos são mais do que lamentáveis. Pessoas de alta colocação e de responsabilidade que deveriam ser honradas, de repente tombam como cedros do Líbano e isso é um estardalhaço de ordem emotiva, de ordem social, de ordem cívica. O pior, na minha opinião, é que interfere no conceito que se tem de todos os políticos e da própria política como instituição humana das mais válidas.

Folha - O país está negociando novo acordo com o FMI. Como o sr. vê a questão?
D. Eusébio -
Eu tenho para mim que a situação internacional é desequilibrada e injusta. Não fomos nós que escolhemos a taxa de juros. Esse é um problema muito sério. Até que ponto o pagamento de uma dívida pode sacrificar uma nação para que a dívida seja paga? É uma questão que peca contra a dignidade humana.
Quando o papa esteve em Florianópolis, no dia 18 de outubro de 1991, eu tive a audácia, durante a saudação que fiz, de pedir que houvesse uma instância superior ao FMI, uma instância de ética e de poder político, para fixar essas taxas de juros, e que houvesse o aval e até a iniciativa do Vaticano. O papa ficou muito atento a isso, pediu que voltássemos ao assunto. A Comissão de Justiça e Paz do Vaticano já emanou um documento sobre isso. É claro que essa situação é uma situação de clamorosa injustiça internacional.

Folha - O sr. se refere com frequência à importância dos meios de comunicação. A sociedade está debruçada neste momento sobre o anteprojeto da Lei de Serviços de Radiodifusão, que coloca em discussão a democratização dos meios de comunicação. O sr. está acompanhando esse debate?
D. Eusébio -
Estou acompanhando. Creio que, quanto mais acesso houver aos meios de comunicação, mais objetiva será a comunicação. O monopólio nos meios de comunicação seria um desastre, e isso é próprio de totalitarismos, não é democrático. E quanto mais se puder democratizar a chamada produção da opinião pública, e os meios de comunicação são os grandes produtores da opinião pública, será melhor para a humanidade. Creio que todos os comunicadores estão conscientes de que, se tiverem o monopólio, terão uma visão unilateral do mundo e muito pequena, por mais potente que seja.

Folha - Mas essa questão é regida mais por referências do mercado do que por conceitos éticos.
D. Eusébio -
Por isso que essa questão se junta ao que condenamos antes, à questão do totalitarismo econômico. É um dos itens do capitalismo selvagem. Os grandes homens dos meios de comunicação devem pensar que não é o dinheiro nem o capital nem o poder do monopólio que vai lhes dar maior credibilidade, muito menos maior respeito.

Folha - Um dos problemas sérios da igreja é a competição com as denominações pentecostais. O sr. deu uma declaração, condenando o proselitismo dessas igrejas, que acabou provocando uma reação forte de líderes pentecostais. Como o sr. vê o problema?
D. Eusébio -
Eu disse que a Igreja Católica está aberta ao diálogo, desde que os outros possibilitem o diálogo. Quando a outra crença se fecha, torna-se impossível o diálogo inter-religioso. A posição da Igreja Católica é muito clara: o tempo do proselitismo, da conquista de adeptos, já era. Nós temos a missionariedade, que é a missão de levar a verdade de Cristo da melhor maneira possível, mas sem o proselitismo, como em épocas passadas infelizmente aconteceu, especialmente na expansão católica na Europa. São erros de estratégia pastoral que nós hoje condenamos.

Folha - O governador do Rio é presbiteriano e tem um trabalho político grande entre as igrejas evangélicas. Como o sr. avalia isso?
D. Eusébio -
A igreja é ecumênica, está aberta ao diálogo com as religiões cristãs. Se o caro amigo Garotinho se pautar por critérios cristãos, evidentemente que nos daremos as mãos. Agora, se se pautar na religião para tirar proveito, aí não podemos fazer um diálogo que chegue a conclusões.

Folha - Haveria, hoje, um clima de guerra religiosa?
D. Eusébio -
Da parte da Igreja Católica, não. Mas que há determinadas denominações religiosas que fazem [guerra], há. Eu não quero nomear, mas quem está por dentro dessa área conhece.

Folha - Em que medida a expansão dos evangélicos preocupa a igreja?
D. Eusébio -
O que nos interessa é que se forme um católico praticante bem consciente e que conheça a sua religião. Mudar de religião já denota uma falta de conhecimento da própria fé.



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