São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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NO PLANALTO

SP revoluciona o combate à exclusão social

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Ano de 2054. A milionésima reedição do "Novíssimo Aurélio" acaba de sair do prelo. Incorpora neologismos. Revê acepções de velhas palavras.
O verbete "miserável", por exemplo, ficou assim: "[Do lat. miserabile] subpessoa; detrito humano; ser antinatural, que prolifera como rato e sonha viver como gente".
Consagrado pelo uso, o vocábulo "humanissínio" foi finalmente dicionarizado: "[De humanitário + assassínio] ato de tirar a vida de pessoas pobres; assassinato legal; antecipação da morte de indigentes por meio de execução socialmente consentida".
As notícias sobre a atualização do Aurélio evocam episódios ocorridos há 50 anos. Em agosto de 2004, rememoram agora os jornais, surgiu em São Paulo uma técnica inusual de combate à exclusão social: o extermínio de indigentes a pauladas. Ficou conhecida no exterior como "the Brazilian revolutionary method".
Alguns historiadores fazem menção ao remoto massacre do Carandiru e às longínquas chacinas de Corumbiara, Vigário Geral e Candelária. Mas a maioria dos livros identifica no método do sarrafo a gênese dos modernos procedimentos de supressão da indigência.
A repulsa dos bem-nascidos em relação aos mendigos foi ganhando contornos desabridos. Hoje, o monumento aos matadores desconhecidos de pobres é visitado semanalmente por legiões de admiradores. Vêm de todas as partes, para reverenciar os agressores de 16 moradores de rua do centro da capital paulista.
São festejados como heróis visionários. Numa era remota, marcada pelo ocaso do humanismo, vislumbraram uma forma letal de abrandamento da poluição urbana. Seus bustos encontram-se assentados na praça da Sé. Erigiu-os a Prefeitura de São Paulo, em convênio com o governo do Estado. Deu-se na seqüência de memorável sessão realizada no Congresso Nacional.
Em votação simbólica, precedida de amplo acordo suprapartidário, deputados e senadores injetaram no Código Penal o conceito da eliminação sem culpa. Descriminalizado, o morticínio da bugrada passou a ser aferido pelo IBGE.
Compêndios econômicos contemporâneos tecem loas às vantagens mercadológicas da higienização biológica. Obras de cunho sociológico fazem a apologia da inevitabilidade do processo.
Alguns textos recuam a tempos imemoriais. Recordam os tempos em que os mendigos brasileiros, por escassos, ainda podiam ser recebidos, com compungida fidalguia, na soleira das casas de classe média.
Tocavam a campainha entre uma e outra refeição. Olhos grudados no chão, rogavam pelas sobras do almoço e do jantar. Com sorte, levavam, além do prato de comida, peças de roupa usada.
Com o passar dos anos, a malta cometeu a imprudência da proliferação desmedida. Não contente em existir, passou a existir em grandes quantidades. Tornou-se o desnecessário levado longe demais, o etc. do processo de globalização, a ameaça ao final feliz.
As pauladas de São Paulo levaram a uma inflexão no ideal retórico da distribuição do bem-estar. Rendido à ineficácia de suas políticas sociais, o Estado passou a patrocinar programas de incentivo fiscal à eliminação de mendigos. Inicialmente restrito a pessoas físicas, o benefício foi estendido depois a empresas comprometidas com cotas anuais de extermínio de miseráveis.
Uma corajosa encíclica papal legitimou, a partir de 2025, o assassinato de pobres. O texto aceita o aniquilamento como gesto cristão. Uma forma de abreviar a existência vã de milhões de seres inúteis. Indivíduos que só encontram lenitivo para a sua dor no plano celeste.
As montadoras de automóveis passaram a oferecer à clientela veículos com lataria e pára-choques reforçados. Moldados em liga metálica especial, possibilitam o atropelamento de pobres sem danos ao patrimônio.
Consumidores mais aquinhoados dão preferência a modelos munidos de armas retráteis, postadas sob os faróis dianteiros e lanternas traseiras. Carros mais sofisticados têm metralhadoras giratórias embutidas no capô. Um luxo.
A despeito dos ditames da igreja, nem todos os miseráveis encontram a paz na morte. Decidido a evitar a superlotação do paraíso, Deus empreende rigorosa triagem. Envia levas de excedentes às profundas.
Movido por inédita generosidade, o Diabo faculta aos novos inquilinos a inscrição em dois programas infernais. Chama-os de "Comunidade Solidária" e "Fome Zero". Em vez de arder nas temidas labaredas, o pecador pode optar pelo castigo da espera eterna. Um suplício ao qual já está habituado.


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