São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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ELIO GASPARI

Apareceu o canibalismo fiscal

FFHH já disse muitas impropriedades durante seu principado. Chamou aposentados de "vagabundos" e disse que "vida de rico, em geral, é muito chata". Até aí, pode-se admitir que tenha escorregado, verbalizando coisas que explicaria de forma diversa se não estivesse em campanha. Num caso queria tungar os aposentados. No outro, pedia votos aos pobres. Chegou a dizer que um município do interior de Alagoas (Jaramataia) atingira taxas de mortalidade infantil inferiores às do Japão. Lera números falsos.
Tudo isso é compreensível. Inexplicável é o que aconteceu na quarta-feira, quando FFHH anunciou que existe uma "sugestão" do secretário da Receita Federal para "reduzir a taxa do Imposto de Renda e acabar com os descontos". Segundo ele, "os que são mais ricos vão ter menos isenções. Essa é uma alternativa que precisa ser analisada".
Logo FFHH, que há uma semana deixou o Conselho Monetário Nacional aprovar um contorcionismo legal destinado a isentar da CPMF os lucros dos investidores estrangeiros que aplicam nas Bolsas de Valores de Pindorama. Esperar que seu governo inove o sistema tributário tomando dos ricos é uma das formas mais tediosas de perder tempo.
Sem que FFHH tenha dito que é isso o que pretende fazer, acredita-se que ele namora uma idéia de unificar as alíquotas de Imposto de Renda em 7,7%, acabando com as deduções. Noves fora a inconstitucionalidade, uma coisa dessas teria um efeito escandalosamente oposto. Cobraria mais de quem ganha menos. Estabeleceria um ponto neutro na faixa das pessoas que ganham entre R$ 2.500 e R$ 3.000 por mês. Acima daí, seria a farra geral.
Dois exemplos extremos, calculados com uma alíquota de 7,7%:
No andar de baixo, quem ganha R$ 1.500 por mês tem um dependente na escola privada e gasta R$ 200 no plano de saúde, paga hoje R$ 40 de Imposto de Renda. Unificada a alíquota e terminadas as deduções, esse mesmo sujeito pagará R$ 554.
No andar de cima, o cidadão que ganha dez vezes mais, tem dois dependentes na escola privada e paga R$ 500 de plano de saúde, paga hoje R$ 41.500. Pagará R$ 13 mil.
(Uma alíquota de 10% provocaria efeito semelhante.)
Brincadeira. O sujeito do andar de cima ganha um rebate equivalente a quase duas vezes a renda anual do similar do andar de baixo. Já houve governos que patrocinaram a antropofagia como política de Estado, mas não há registro de governante que tenha tentado praticar semelhante matança tributária.
Chega a ser constrangedor acreditar que FFHH venha a se meter com semelhante maluquice e é razoável acreditar que, confrontado previamente com esses números, não falaria de Imposto de Renda nos próximos 22 anos.
As deduções de despesas com dependentes, educação e saúde não beneficiam os ricos. Beneficiam a classe média baixa. Numa família humilde, cujo chefe ganha R$ 1.500 por mês, o desconto de R$ 230 com uma criança em idade escolar guarda algum tipo de proporção com a vida real. Na casa onde o chefe da família ganha dez vezes mais, essa quantia é uma mixórdia.
FFHH aventurou-se nas contas do Imposto de Renda das pessoas físicas esquecendo-se que seu governo aplicou na classe média uma das maiores tungas da história tributária nacional. Desde 1996 a Receita não corrige a tabela progressiva dos rendimentos. Como o teto da isenção dos trabalhadores está nos R$ 900 mensais, isso equivaleu a uma derrama junto às camadas mais baixas dos assalariados urbanos. Ao exemplo:
Uma secretária que ao final de 1995 ganhava R$ 900 por mês estava isenta. Se ela teve seu salário reajustado em 30% nos últimos quatro anos, ganha hoje R$ 1.170. Admitindo-se que não tenha dependente nem plano de saúde, paga R$ 254. Parece mixaria. O governo se orgulha de ter dobrado o número de contribuintes do IR (de 6,5 milhões para 12 milhões). O que ele fez foi capturar algo como 5 milhões de novas vítimas na classe média baixa. Pode-se estimar que passou a tomar da patuléia pelo menos R$ 2,5 bilhões adicionais por ano. No andar de cima passou despercebido. Baixou a alíquota máxima da pessoa física de 35% para 27,5%.
Acreditar que FFHH pretenda patrocinar uma mudança tributária destinada a comer uma parte dos lucros dos gatos gordos que vivem dos juros é coisa próxima de esperar Papai Noel. Não só ele vem beneficiando-os desde 1995, como, sempre que há um choque entre o sistema tributário e a turma dos juros, prevalecem os interesses da especulação.


Em campanha

O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, é candidato a presidente da República, com direito a todos os comportamentos que essa condição exige.


Renda e cheques

Se a relação entre os rendimentos que declaram e o dinheiro que movimentam é um indicador da boa conduta tributária dos profissionais liberais, o grupo dos capitalistas e proprietários de vários imóveis é o que menos confiança merece. Eles movimentam dez vezes mais dinheiro do que recebem. (Em alguns casos essa movimentação faz parte da profissão. Em outros, não.)
É a seguinte a classificação de outras dez profissões. Ela deve ser lida levando-se em conta que, na média, os contribuintes movimentam 4,2 vezes o que ganham.
1) Servidores públicos: 2,1.
2) Trabalhadores industriais: 2,3.
3) Bancários, professores e jornalistas: 2,5.
4) Empregados no comércio: 3,2.
5) Diretores de empresas: 3,3.
6) Cantores, atores e atletas: 3,7.
7) Despachantes: 4,6.
8) Pintores e decoradores: 4,9.
9) Médicos, dentistas e advogados: 5,1.
10) Donos de microempresas: 8,5.


Boa notícia

A Faculdade de Campinas, uma instituição privada fundada por ex-professores da Unicamp, inovou o currículo para estudantes de economia e administração. Será a primeira do gênero a ensinar português como matéria obrigatória.
Mesmo tendo recebido estudantes de boas escolas, achou melhor reciclá-los. Na lista de obras para leitura, há Freud, Umberto Eco ("Como se Faz uma Tese") e Henry Bergson ("O Riso").
Desse jeito, é provável que a ekipekonômica do ano 2020 fale português.


Ao museu

As coisas boas também acontecem. Há cerca de dois meses FFHH ganhou de presente de um empresário suíço um relógio Zenith de ouro, edição limitada e numerada. Verdadeira jóia. Não chegou a colocá-lo no pulso. Determinou que a Comissão de Ética do governo decidisse se ia a leilão em benefício do programa Comunidade Solidária ou ficaria no patrimônio da Viúva. A comissão decidiu que ficará no patrimônio.


Por que o gás boliviano é pago em dólares?

Curto de dólares, bem que o governo poderia pensar em abrir a discussão da mudança da forma de pagamento da energia que compra ao Paraguai e do gás que começou a comprar à Bolívia. Nos dois casos, cumprindo acordos internacionais, paga a mercadoria em dólares. A energia paraguaia de Itaipu custa US$ 350 milhões por ano. O gás sai por US$ 84 milhões e em 2007 deverá chegar a US$ 300 milhões.
Duas razões fazem com que seja razoável comercializar uma mercadoria em dólares. Se o comprador não tem uma moeda confiável (o Brasil anterior ao real) ou se a mercadoria pode ser vendida em qualquer lugar (um anel de brilhante). A parte paraguaia da energia de Itaipu pode ser vendida num mercado muito restrito. Já o gás boliviano só pode ser vendido ao Brasil. Ou seja, vale o que o Brasil paga ou não vale nada.
Pagar esse gás em dólares é um absurdo. Primeiro porque revela que o governo brasileiro não tem confiança no real. Segundo, porque introduz no sistema de preços das matérias-primas um elemento de indexação sobre o qual o país não tem e jamais terá qualquer controle. Um metro cúbico de gás boliviano consumido por brasileiros poderá custar mais caro por conta de fatores que têm a ver com uma moeda cujo valor independe do comportamento das duas economias dos países envolvidos na transação.
É justo que os bolivianos queiram receber em dólares, até para que possam usá-los para comprar mercadorias em outros países. É justo também que não estejam dispostos a rever um contrato assinado por negociadores brasileiros. Não é justo que a economia brasileira tenha que carregar uma anomalia por conta de burocratas que negociaram um preço para o gás quando a única relação que têm com essa mercadoria está no uso dos isqueiros.
Em Itaipu o Brasil foi feito de gato e sapato pelo então ditador do pedaço, o paraguaio Alfredo Stroessner. Com a Bolívia foi burrada mesmo. Em vez de sair pelo mundo alugando embaixadas, o Itamaraty poderia começar a pedir a renegociação dessas faturas em dólar. Tanto a energia quanto o gás poderiam ser pagos em reais indexados ao câmbio. Poderia também ser discutido um outro sistema de indexação, acompanhado de um gatilho cambial que não criasse riscos para paraguaios e bolivianos. Há dezenas de fórmulas possíveis, mas até hoje ninguém falou nesse assunto, apesar de o sistema vigente ser o único que escorcha o Brasil e desmoraliza o real.


ENTREVISTA

Paulo Goldrajch

59 anos, advogado, candidato a presidente da OAB-RJ)

O senhor não acha que a Ordem dos Advogados está se metendo em coisas demais, sobretudo em coisas políticas?
A meu ver ela está se metendo em coisas de menos. O grande momento da OAB, nos anos 70, foi essencialmente político, no desmonte da ditadura e na luta pelo retorno do habeas corpus. Quando a Ordem se juntou a outras entidades para lutar pelo impedimento de Fernando Collor, fez o que o país necessitava. A Ordem deveria ser mais ativa na defesa dos interesses dos profissionais liberais e no combate às políticas e às condutas que os sacrificam. Especificamente no caso dos advogados, estamos assistindo ao surgimento de barreiras ao correto exercício da profissão. Há juízes que fazem coisas que não aconteciam durante a ditadura.
Isso não é exagero?
Não, porque estou me referindo a casos concretos, Por exemplo: há juízes que não recebem advogados. Houve um que colou na porta de seu gabinete um papel informando que não estava ali para tirar dúvidas. Outro, diante de um advogado que não entendia o que ele dizia, mandou-o estudar mais, como se não estivesse dizendo coisas incompreensíveis. Na ditadura os juízes das auditorias militares e os próprios generais do STM recebiam os advogados. Se você vai ao Supremo, o ministro recebe. Essa anomalia é coisa de alguns juízes de primeira instância. Fazem isso e ninguém reclama.
De uma maneira geral o Judiciário brasileiro começou a funcionar melhor. Seus profissionais liberais não podem ser chamados de sacrificados. Apesar disso, não há notícia de a Ordem ter ajudado na assistência aos cidadãos sem recursos.
Não estou dizendo que o advogado é um oprimido. Apenas deixa-se de pensar nas suas necessidades e na peculiaridade de sua carreira. Como todo profissional liberal, ele só ganha enquanto trabalha. Quando pára, vive do pecúlio. Hoje, um advogado com uma atividade média, num pequeno escritório, ganha em torno de R$ 8.000 por mês. Para a sociedade brasileira isso é muito dinheiro. Mesmo assim, há advogadas que têm dificuldade para trabalhar porque não dispõem de um lugar para deixar os filhos. As creches dos foros poderiam recebê-los, mas isso não acontece. Talvez a Ordem devesse fazer mais pelos cidadãos necessitados de assistência jurídica, mas não esqueçamos que essa é uma atribuição da defensoria pública. Há milhares de advogados ajudando pessoas carentes e injustiçadas. Custaria muito pouco à Ordem associar-se de alguma maneira às suas iniciativas.


Efeito Rambo

Conseguiu-se quantificar os dividendos eleitorais de pelo menos um bate-boca do governador Mário Covas com manifestantes de rua.
No dia 22 de setembro, quando ele foi à cidade de Sumaré, a candidata tucana Cristina Carrara tinha pouco mais de 30 pontos numa pesquisa. Estava nesse patamar desde o início do mês. Seu adversário, Dirceu Allen, do PPS (lutando pela reeleição), subira 10 pontos em uma semana, aproximando-se. Nas 48 horas seguintes, Allen ultrapassou Carrara e, em cinco dias, pulou de 30 para 40 pontos, enquanto a tucana despencou para 23%. Nos dias seguintes o efeito começou a se dissolver, mas Allen conseguiu a reeleição.


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