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São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2003

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ENTREVISTA

Ruy Fausto vê erros do governo à direita e à esquerda e faz duras críticas aos intelectuais que se decepcionaram com Lula

Curinga da ruptura é carta falsa, diz filósofo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O governo Luiz Inácio Lula da Silva erra à direita e à esquerda, diz o professor de filosofia Ruy Fausto, mas seus críticos erram mais, ao apostarem na ruptura.
"Jogam ainda a carta revolucionária. É uma espécie de curinga que eles acham que têm na mão, e esse curinga, na verdade, é uma carta falsa", afirma o professor emérito da USP, ex-professor da Universidade de Paris 8.
Fausto, 68, aponta, entre os erros à direita, a "blindagem" que o governo deu à sua política econômica ortodoxa, nomeando para a equipe econômica pessoas extremamente comprometidas com o ideário liberal. Fica difícil agora, avalia, modificar a "receita do FMI", cuja adoção tática seria inevitável no início do mandato.
Do lado do que chama de "pseudo-esquerda", ele vê erros e riscos nas nomeações de nacional-desenvolvimentistas para o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e na aproximação com os "neoguevaristas" do MST.
Um dos maiores estudiosos da obra de Karl Marx e do marxismo, autor de vários livros sobre a tradição dialética e seu sentido contemporâneo, Ruy Fausto descrê, contra a esquerda clássica, da possibilidade de a ruptura anteceder a reforma da sociedade. E diz que o instrumental marxista, em que se baseiam os principais críticos do governo Lula, citados por ele -os sociólogos Emir Sader e Francisco de Oliveira e o filósofo Paulo Arantes-, é insuficiente para dar conta da política atual.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.
 

Folha - O sr. já disse que o núcleo dirigente do governo Lula tem pouca experiência democrática. Quais as consequências disso?
Ruy Fausto -
Há um lado positivo na história de Lula e de boa parte dos membros do governo. O fato de que vários deles sejam ex-militantes de extrema esquerda ou sindicalistas de certo modo os vacina, direta ou indiretamente, contra a extrema esquerda. Mas não é gente formada na idéia de democracia. Existe um traço autoritário no núcleo que dirige o PT e o governo. Mas o governo erra por mais de um lado. Existe um risco de direita e um risco (ou riscos) de pseudo-esquerda.

Folha - Quem é direita e o que é pseudo-esquerda?
Fausto -
Por um lado, há o fato de que no Banco Central e no Ministério da Fazenda existe muita gente ligada à ortodoxia econômica. A meu ver, a política inicial do governo, de não-enfrentamento com o FMI, foi correta. Mas só como ponto de partida. Entretanto, eles blindaram os cargos mais importantes com pessoas muito comprometidas com a ortodoxia. O ideal seria ter gente de esquerda fazendo essa política de apaziguamento. Isso não aconteceu ou porque não houve gente de esquerda com suficiente jogo de cintura para executar essa política, ou porque eles quiseram dar uma mensagem muito clara de que não romperiam -logo, pelo menos- com a ortodoxia. E eles evidentemente exageraram.
Por outro lado, existe um grupo desenvolvimentista -não me refiro a todos os desenvolvimentistas do governo- que está principalmente no BNDES e representa o contrário dessa linha. Pelas informações que se tem, trata-se de um grupo de estilo muito autocrático, com um discurso nacional-autoritário, pelo menos por parte de alguns. Se a posição dos neoliberais não é boa, o estilo do BNDES também não é. A propósito, precisamos menos de hegemonismo brasileiro do que de solidariedade latino-americana. Terceiro risco: se o movimento camponês tem indiscutivelmente um papel importante no seu esforço em acelerar a reforma agrária, a ideologia do MST é neoguevarista e totalitária. As suas escolas de quadros não anunciam nada de bom. Existem assim vários riscos para o governo e dentro dele. Mas há também muita gente boa. E houve acertos.

Folha - O sr. parece ter simpatia por posições da social-democracia?
Fausto -
Na social-democracia existem coisas positivas e negativas. O bolchevismo, em comparação, foi um desastre. Se fizermos um balanço da primeira, algumas coisas escapam. Do bolchevismo, só as boas intenções, e ponto. Na França, país marcado pela social-democracia (além do gaullismo), há três coisas essenciais: cobertura de saúde universal, ensino público gratuito de bom nível e transporte público eficiente. Nos países nórdicos houve um projeto de reforma bastante radical não muito centrado no Estado, mas com redistribuição de renda via Imposto de Renda. Minha impressão é que a gente de esquerda no Brasil se interessa pouco por essas coisas... Como lá não se fuzila, pode-se entrar e sair do país, não deve ser sério... Preferem-se as "coisas fortes", revolução...

Folha - As dificuldades do governo Lula são também sintomas de crise da esquerda?
Fausto -
A esquerda foi muito marcada por um projeto revolucionário. As reformas não seriam o caminho: o essencial seria a revolução social. Essas idéias penetraram profundamente na esquerda européia, e aqui, em alguma medida, elas se conservam. Identifica-se a esquerda com o projeto revolucionário clássico. É preciso separar as duas coisas.
Não creio que isso signifique aceitar sem mais o chamado reformismo. Até aqui se pensou que a ruptura viria antes da reforma. Dever-se-ia inverter essa relação e imaginar que uma mudança radical só pode vir depois da reforma. Ou no curso desta. Vamos começar pela reforma, sem especular se houve ruptura. Essa espécie de fetichismo da ruptura (de que seria preciso quebrar o sistema, romper a legalidade) não significa nada. É preciso definir os objetivos da esquerda. Eles não se identificam mais com o fim da propriedade privada. Devemos supor que esta deve subsistir, como o dinheiro. É necessário repensar certa tradição da esquerda, porque a política violenta, revolucionária, levou, na pior das hipóteses, ao genocídio, e na melhor, a governos ditatoriais. E finalmente à volta ao capitalismo, frequentemente um capitalismo selvagem.

Folha - A esquerda que critica o governo Lula parte desses princípios da esquerda tradicional?
Fausto -
Parte. Distingo três casos. Há os castristas, como [o sociólogo] Emir Sader. A propósito dos fuzilamentos em Cuba, ele escreveu que não eram obrigatórios, o que significa que... eram facultativos. Em um de seus artigos no "Monde Diplomatique", diz que não sabe se o Lula vai poder realizar seus projetos nesse quadro institucional. O que é sintomático. A acrescentar, entre os castristas, os cristãos de extrema esquerda, que são uns cristãos estranhos, que justificam execuções. Os socialistas laicos, não-cristãos, temos uma idéia diferente sobre o que vale a vida humana. Em seguida vêm os que começam com esquemas quase revolucionários -ruptura com o FMI-, mas sem pôr todos os "pingos nos is" nem discutir as consequências. Também jogam, mesmo se mais implicitamente, a carta revolucionária. Pensam ter um curinga na mão, mas esse curinga é na realidade uma carta falsa.
Depois... Depois há o Paulo Arantes [professor de filosofia da USP, considerado um dos principais intelectuais da esquerda brasileira]. O discurso de Arantes é de estofo anarco-marxista. Tem a marca do Marx, mas também de uma crítica da posição marxista. As duas coisas desembocam num discurso que a meu ver é regressivo e niilista. Paulo Arantes fala do império, do império e do império. Mas existem outras forças e personagens que precisam também ser pensados: os "outros" do império, bons ou maus. Há um pólo que poderá ter um papel positivo, a União Européia. Também a ONU. E há o lado do horror: é preciso pensar gente como Saddam Hussein, como o [ex-ditador iugoslavo Slobodan] Milosevic, como o Bin Laden. Várias dessas figuras, embora não todas, são figuras de déspotas. Podemos nos fixar nessa idéia, que remete também ao caso dos despotismos de "esquerda". Ora, os marxistas não falam de déspotas. Por uma razão muito simples: em Marx não existe o conceito de despotismo -salvo o "despotismo oriental".
Essa noção não existe lá, e portanto um marxista não pode pensá-la. Os melhores marxistas, quando começaram a refletir sobre o Stálin, falaram em burocracia. Mas Stálin era mais um déspota do que um burocrata.

Folha - O instrumental marxista, portanto, é insuficiente?
Fausto -
É. Quem tentou pensar o despotismo foram os liberais, só que eles não viram o problema de classe. A noção de despotismo, depois deles, se perdeu. Quem refletiu sobre o despotismo foi o Montesquieu. Claro, nele se encontra o despotismo oriental, mas como uma figura politica maior. Se você falar a um marxista que o Saddam é responsável pela morte de talvez 1 milhão de pessoas, ele não tem nada a dizer. Saddam é pior do que Bush. Só que o Bush tem um império mundial. É por isso que somos contra a guerra americana. Eles consideram essa gente como epifenômenos do império, manifestações da totalidade. Isso é um enorme engano. Cada um deles é o que é. É preciso examinar o que eles são.
No discurso de Paulo Arantes há ainda um antijuridicismo violento. E aí ele se funda no Carl Schmitt, que é um teórico radical da direita. Essa aliança não é ocasional. O que ele tira de Schmitt? Essa visão antijurídica, e através dela o ataque à democracia. Claro que Arantes não vai até a conclusão de Schmitt, que é o governo autocrático, e, no final, o governo nazista. Mas ele vai até a crítica da democracia. Trata-se de mostrar a cumplicidade da democracia com as formas totalitárias. Isso é perigoso. Sobre o Brasil, diz que, paradoxalmente, com a democratização, aumentou a violência. Porém ela não aumentou por causa da democracia. Aumentou por causa da desigualdade. Sem dúvida, sob um governo totalitário há menos violência urbana, o que não é paradoxal. Na época de Stálin -Soljenitsin nos conta-, não tinha violência na rua, na URSS. Por outro lado, é inerente à democracia o problema da sua defesa. Mas que solução vamos dar? Acabar com a democracia?

Folha - E a crítica [de Arantes] ao governo Lula? É uma crítica ao capitalismo como um todo, quando ele estabelece relação entre consumo e violência?
Fausto -
Sobre o consumo, aí, que ele me desculpe, mas somos obrigados a discutir a nossa própria posição dentro do sistema. Nós, professores das grandes universidades públicas, aposentados ou em vias de nos aposentar, temos uma posição de privilegiados (ainda que não de grandes privilegiados). Não estou pregando renúncia aos bens, mas acho que devemos levar em conta a nossa situação. Nós consumimos. O povo precisa consumir, também quer consumir.

Folha - Sobre o "Ornitorrinco", texto do sociólogo Francisco de Oliveira a respeito do Brasil contemporâneo, qual a sua opinião?
Fausto -
No caso do Chico [Francisco de Oliveira], a vantagem que ele tem sobre o Arantes é que ele conhece muito sobre o Brasil. Mas tende também a uma espécie de totalização excessiva e tem uma postura demasiadamente clássica. Ele se refere a certas pessoas que vieram da classe operária e se transformaram em administradores de fundos. Esse fenômeno [descrito no texto de Oliveira] não é muito novo. Na história da social-democracia, isso se encontra desde pelo menos os anos 30. Em segundo lugar, isso não é sempre negativo. Vejam o caso da Suécia. Houve lá um projeto feito por um "homem-ornitorrinco" típico, um economista de um sindicato, gestor de fundos de pensão. Em certo momento, nos anos 70/80, eles apresentaram um projeto de aquisição de parte das indústrias do país. Isso provocou um verdadeiro pânico na direita, que aliás acabou ganhando as eleições. Então o problema não é que tenha gente de origem operária que vai administrar fundos, o problema é o de como eles vão administrar. E não vamos ter medo dessas formas. Se você partir de um esquema clássico (estatização universal, ditadura revolucionária etc.), isso é o fim do mundo, acabou tudo. Mas esse esquema clássico "dançou", e a gente tem de pensar que as novas formas, dentro de certas condições, não são necessariamente ruins. Pode haver formas monetarizadas que não são a rigor capitalistas.
Isso deve ser observado também a propósito dos projetos cooperativistas de uma das secretarias do governo. Por outro lado, Chico de Oliveira não pensa as marcas deixadas na história pelos caminhos e descaminhos da esquerda. A história contemporânea tem de ser lida também como resultado dos "descarrilhamentos" da esquerda inscritos nessa história (China, Rússia...). Chico "totaliza" demais. Por exemplo, no melhor estilo holístico, quer estabelecer continuidade entre a violência do império e a criminalidade. Mas a criminalidade é tanto patologia da ordem como da contra-ordem, e não se identifica sem mais com a violência do império. A propósito, para me referir a um detalhe ilustrativo: ao contrário do que pensa Chico de Oliveira, o Comando Vermelho se chama assim porque infelizmente foi instruído também por gente de esquerda. E a grande criminalidade teve contatos com a triste guerrilha colombiana.

Folha - Como é que o sr. vê a atuação do outro grupo de intelectuais, que muitas vezes se esforçam para justificar as ações do governo Lula? Valem mais que os críticos?
Fausto -
Dizer amém ao governo não serve. De minha parte, não assino cheque em branco para ninguém. Mas a crítica radical é muito ruim. O que me preocupa no grupo radical é que estamos perdendo a oportunidade de fazer uma critica séria ao governo. Por exemplo: a reforma da Previdência teria que ser seriamente discutida. A reforma tem coisas boas. Deveria ter sido apoiada na questão dos juízes. Idem na modificação dos prazos para a aposentadoria. Os tetos poderiam ser mais altos. Em matéria de críticas ao governo, a posição dos tucanos também não é solução. O balanço do período FHC não é extraordinário. Para não falar de certo tipo de crítica nitidamente reacionária -não me refiro especificamente aos tucanos- por parte de gente que fez campanha de terror no momento da eleição do Lula. Esses defensores intransigentes do capitalismo e de suas desigualdades aberrantes não têm nenhuma autoridade para falar em "direitos democráticos", "honestidade administrativa" etc. etc.
Quem fez uma excelente crítica do governo e das forças nele dominantes foi o [Fernando] Gabeira: sua crítica ecológica atinge os neoliberais e os nacionais-desenvolvimentistas. E como ele fala também da atitude do governo em relação a Fidel Castro, atinge ainda os neoguevaristas. Vamos tentar uma saída de esquerda, democrática.

Folha - Mesmo na parte política, o governo não poderia ter fugido a certo continuísmo? O que o governo Lula poderia ter apresentado como novidade e que não fez?
Fausto -
O que não fez? A política internacional é bastante boa, mas tem o caso de Cuba. Lula faz uma viagem a Cuba em que poderia ter feito um gesto em favor dos dissidentes. Eu diria que ele tinha o gol à frente, era só chutar. Passaria já para a história como o homem que enfrentou Bush e que ao mesmo tempo foi capaz de dizer não a Fidel Castro. Ele iria ser o herói da esquerda democrática mundial. Perdeu essa oportunidade. Nomeia um embaixador em Cuba que é um amigo pessoal de Fidel Castro. Lula e outros têm relações afetivas com Castro, mas nós não temos nada a ver com isso. Muitos, entre os milhões de brasileiros que, como eu, votaram em Lula não têm nenhuma simpatia por ditadores do Terceiro Mundo.


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