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ENTREVISTA
Ruy Fausto vê erros do governo à direita e à esquerda e faz duras críticas aos intelectuais que se decepcionaram com Lula
Curinga da ruptura é carta falsa, diz filósofo
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O governo Luiz Inácio Lula da
Silva erra à direita e à esquerda,
diz o professor de filosofia Ruy
Fausto, mas seus críticos erram
mais, ao apostarem na ruptura.
"Jogam ainda a carta revolucionária. É uma espécie de curinga
que eles acham que têm na mão, e
esse curinga, na verdade, é uma
carta falsa", afirma o professor
emérito da USP, ex-professor da
Universidade de Paris 8.
Fausto, 68, aponta, entre os erros à direita, a "blindagem" que o
governo deu à sua política econômica ortodoxa, nomeando para a
equipe econômica pessoas extremamente comprometidas com o
ideário liberal. Fica difícil agora,
avalia, modificar a "receita do
FMI", cuja adoção tática seria inevitável no início do mandato.
Do lado do que chama de
"pseudo-esquerda", ele vê erros e
riscos nas nomeações de nacional-desenvolvimentistas para o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e na aproximação com os
"neoguevaristas" do MST.
Um dos maiores estudiosos da
obra de Karl Marx e do marxismo, autor de vários livros sobre a
tradição dialética e seu sentido
contemporâneo, Ruy Fausto descrê, contra a esquerda clássica, da
possibilidade de a ruptura anteceder a reforma da sociedade. E diz
que o instrumental marxista, em
que se baseiam os principais críticos do governo Lula, citados por
ele -os sociólogos Emir Sader e
Francisco de Oliveira e o filósofo
Paulo Arantes-, é insuficiente
para dar conta da política atual.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.
Folha - O sr. já disse que o núcleo
dirigente do governo Lula tem
pouca experiência democrática.
Quais as consequências disso?
Ruy Fausto - Há um lado positivo na história de Lula e de boa
parte dos membros do governo.
O fato de que vários deles sejam
ex-militantes de extrema esquerda ou sindicalistas de certo modo
os vacina, direta ou indiretamente, contra a extrema esquerda.
Mas não é gente formada na idéia
de democracia. Existe um traço
autoritário no núcleo que dirige o
PT e o governo. Mas o governo erra por mais de um lado. Existe um
risco de direita e um risco (ou riscos) de pseudo-esquerda.
Folha - Quem é direita e o que é
pseudo-esquerda?
Fausto - Por um lado, há o fato
de que no Banco Central e no Ministério da Fazenda existe muita
gente ligada à ortodoxia econômica. A meu ver, a política inicial
do governo, de não-enfrentamento com o FMI, foi correta. Mas só
como ponto de partida. Entretanto, eles blindaram os cargos mais
importantes com pessoas muito
comprometidas com a ortodoxia.
O ideal seria ter gente de esquerda
fazendo essa política de apaziguamento. Isso não aconteceu ou
porque não houve gente de esquerda com suficiente jogo de
cintura para executar essa política, ou porque eles quiseram dar
uma mensagem muito clara de
que não romperiam -logo, pelo
menos- com a ortodoxia. E eles
evidentemente exageraram.
Por outro lado, existe um grupo
desenvolvimentista -não me refiro a todos os desenvolvimentistas do governo- que está principalmente no BNDES e representa
o contrário dessa linha. Pelas informações que se tem, trata-se de
um grupo de estilo muito autocrático, com um discurso nacional-autoritário, pelo menos por
parte de alguns. Se a posição dos
neoliberais não é boa, o estilo do
BNDES também não é. A propósito, precisamos menos de hegemonismo brasileiro do que de solidariedade latino-americana.
Terceiro risco: se o movimento
camponês tem indiscutivelmente
um papel importante no seu esforço em acelerar a reforma agrária, a ideologia do MST é neoguevarista e totalitária. As suas escolas de quadros não anunciam nada de bom. Existem assim vários
riscos para o governo e dentro dele. Mas há também muita gente
boa. E houve acertos.
Folha - O sr. parece ter simpatia
por posições da social-democracia?
Fausto - Na social-democracia
existem coisas positivas e negativas. O bolchevismo, em comparação, foi um desastre. Se fizermos
um balanço da primeira, algumas
coisas escapam. Do bolchevismo,
só as boas intenções, e ponto. Na
França, país marcado pela social-democracia (além do gaullismo),
há três coisas essenciais: cobertura de saúde universal, ensino público gratuito de bom nível e
transporte público eficiente. Nos
países nórdicos houve um projeto
de reforma bastante radical não
muito centrado no Estado, mas
com redistribuição de renda via
Imposto de Renda. Minha impressão é que a gente de esquerda
no Brasil se interessa pouco por
essas coisas... Como lá não se fuzila, pode-se entrar e sair do país,
não deve ser sério... Preferem-se
as "coisas fortes", revolução...
Folha - As dificuldades do governo Lula são também sintomas de
crise da esquerda?
Fausto - A esquerda foi muito
marcada por um projeto revolucionário. As reformas não seriam
o caminho: o essencial seria a revolução social. Essas idéias penetraram profundamente na esquerda européia, e aqui, em alguma medida, elas se conservam.
Identifica-se a esquerda com o
projeto revolucionário clássico. É
preciso separar as duas coisas.
Não creio que isso signifique
aceitar sem mais o chamado reformismo. Até aqui se pensou que
a ruptura viria antes da reforma.
Dever-se-ia inverter essa relação e
imaginar que uma mudança radical só pode vir depois da reforma.
Ou no curso desta. Vamos começar pela reforma, sem especular se
houve ruptura. Essa espécie de fetichismo da ruptura (de que seria
preciso quebrar o sistema, romper a legalidade) não significa nada. É preciso definir os objetivos
da esquerda. Eles não se identificam mais com o fim da propriedade privada. Devemos supor
que esta deve subsistir, como o dinheiro. É necessário repensar certa tradição da esquerda, porque a
política violenta, revolucionária,
levou, na pior das hipóteses, ao
genocídio, e na melhor, a governos ditatoriais. E finalmente à volta ao capitalismo, frequentemente
um capitalismo selvagem.
Folha - A esquerda que critica o
governo Lula parte desses princípios da esquerda tradicional?
Fausto - Parte. Distingo três casos. Há os castristas, como [o sociólogo] Emir Sader. A propósito
dos fuzilamentos em Cuba, ele escreveu que não eram obrigatórios, o que significa que... eram facultativos. Em um de seus artigos
no "Monde Diplomatique", diz
que não sabe se o Lula vai poder
realizar seus projetos nesse quadro institucional. O que é sintomático. A acrescentar, entre os
castristas, os cristãos de extrema
esquerda, que são uns cristãos estranhos, que justificam execuções. Os socialistas laicos, não-cristãos, temos uma idéia diferente sobre o que vale a vida humana.
Em seguida vêm os que começam
com esquemas quase revolucionários -ruptura com o FMI-,
mas sem pôr todos os "pingos nos
is" nem discutir as consequências.
Também jogam, mesmo se mais
implicitamente, a carta revolucionária. Pensam ter um curinga na
mão, mas esse curinga é na realidade uma carta falsa.
Depois... Depois há o Paulo
Arantes [professor de filosofia da
USP, considerado um dos principais intelectuais da esquerda brasileira]. O discurso de Arantes é
de estofo anarco-marxista. Tem a
marca do Marx, mas também de
uma crítica da posição marxista.
As duas coisas desembocam num
discurso que a meu ver é regressivo e niilista. Paulo Arantes fala do
império, do império e do império.
Mas existem outras forças e personagens que precisam também
ser pensados: os "outros" do império, bons ou maus. Há um pólo
que poderá ter um papel positivo,
a União Européia. Também a
ONU. E há o lado do horror: é
preciso pensar gente como Saddam Hussein, como o [ex-ditador
iugoslavo Slobodan] Milosevic,
como o Bin Laden. Várias dessas
figuras, embora não todas, são figuras de déspotas. Podemos nos
fixar nessa idéia, que remete também ao caso dos despotismos de
"esquerda". Ora, os marxistas não
falam de déspotas. Por uma razão
muito simples: em Marx não existe o conceito de despotismo
-salvo o "despotismo oriental".
Essa noção não existe lá, e portanto um marxista não pode pensá-la. Os melhores marxistas,
quando começaram a refletir sobre o Stálin, falaram em burocracia. Mas Stálin era mais um déspota do que um burocrata.
Folha - O instrumental marxista,
portanto, é insuficiente?
Fausto - É. Quem tentou pensar
o despotismo foram os liberais, só
que eles não viram o problema de
classe. A noção de despotismo,
depois deles, se perdeu. Quem refletiu sobre o despotismo foi o
Montesquieu. Claro, nele se encontra o despotismo oriental, mas
como uma figura politica maior.
Se você falar a um marxista que o
Saddam é responsável pela morte
de talvez 1 milhão de pessoas, ele
não tem nada a dizer. Saddam é
pior do que Bush. Só que o Bush
tem um império mundial. É por
isso que somos contra a guerra
americana. Eles consideram essa
gente como epifenômenos do império, manifestações da totalidade. Isso é um enorme engano. Cada um deles é o que é. É preciso
examinar o que eles são.
No discurso de Paulo Arantes
há ainda um antijuridicismo violento. E aí ele se funda no Carl
Schmitt, que é um teórico radical
da direita. Essa aliança não é ocasional. O que ele tira de Schmitt?
Essa visão antijurídica, e através
dela o ataque à democracia. Claro
que Arantes não vai até a conclusão de Schmitt, que é o governo
autocrático, e, no final, o governo
nazista. Mas ele vai até a crítica da
democracia. Trata-se de mostrar
a cumplicidade da democracia
com as formas totalitárias. Isso é
perigoso. Sobre o Brasil, diz que,
paradoxalmente, com a democratização, aumentou a violência.
Porém ela não aumentou por causa da democracia. Aumentou por
causa da desigualdade. Sem dúvida, sob um governo totalitário há
menos violência urbana, o que
não é paradoxal. Na época de Stálin -Soljenitsin nos conta-, não
tinha violência na rua, na URSS.
Por outro lado, é inerente à democracia o problema da sua defesa.
Mas que solução vamos dar? Acabar com a democracia?
Folha - E a crítica [de Arantes] ao
governo Lula? É uma crítica ao capitalismo como um todo, quando
ele estabelece relação entre consumo e violência?
Fausto - Sobre o consumo, aí,
que ele me desculpe, mas somos
obrigados a discutir a nossa própria posição dentro do sistema.
Nós, professores das grandes universidades públicas, aposentados
ou em vias de nos aposentar, temos uma posição de privilegiados
(ainda que não de grandes privilegiados). Não estou pregando renúncia aos bens, mas acho que
devemos levar em conta a nossa
situação. Nós consumimos. O povo precisa consumir, também
quer consumir.
Folha - Sobre o "Ornitorrinco",
texto do sociólogo Francisco de Oliveira a respeito do Brasil contemporâneo, qual a sua opinião?
Fausto - No caso do Chico
[Francisco de Oliveira], a vantagem que ele tem sobre o Arantes é
que ele conhece muito sobre o
Brasil. Mas tende também a uma
espécie de totalização excessiva e
tem uma postura demasiadamente clássica. Ele se refere a certas
pessoas que vieram da classe operária e se transformaram em administradores de fundos. Esse fenômeno [descrito no texto de Oliveira] não é muito novo. Na história da social-democracia, isso se
encontra desde pelo menos os
anos 30. Em segundo lugar, isso
não é sempre negativo. Vejam o
caso da Suécia. Houve lá um projeto feito por um "homem-ornitorrinco" típico, um economista
de um sindicato, gestor de fundos
de pensão. Em certo momento,
nos anos 70/80, eles apresentaram
um projeto de aquisição de parte
das indústrias do país. Isso provocou um verdadeiro pânico na direita, que aliás acabou ganhando
as eleições. Então o problema não
é que tenha gente de origem operária que vai administrar fundos,
o problema é o de como eles vão
administrar. E não vamos ter medo dessas formas. Se você partir
de um esquema clássico (estatização universal, ditadura revolucionária etc.), isso é o fim do mundo,
acabou tudo. Mas esse esquema
clássico "dançou", e a gente tem
de pensar que as novas formas,
dentro de certas condições, não
são necessariamente ruins. Pode
haver formas monetarizadas que
não são a rigor capitalistas.
Isso deve ser observado também a propósito dos projetos cooperativistas de uma das secretarias do governo. Por outro lado,
Chico de Oliveira não pensa as
marcas deixadas na história pelos
caminhos e descaminhos da esquerda. A história contemporânea tem de ser lida também como
resultado dos "descarrilhamentos" da esquerda inscritos nessa
história (China, Rússia...). Chico
"totaliza" demais. Por exemplo,
no melhor estilo holístico, quer
estabelecer continuidade entre a
violência do império e a criminalidade. Mas a criminalidade é tanto patologia da ordem como da
contra-ordem, e não se identifica
sem mais com a violência do império. A propósito, para me referir a um detalhe ilustrativo: ao
contrário do que pensa Chico de
Oliveira, o Comando Vermelho se
chama assim porque infelizmente
foi instruído também por gente
de esquerda. E a grande criminalidade teve contatos com a triste
guerrilha colombiana.
Folha - Como é que o sr. vê a atuação do outro grupo de intelectuais,
que muitas vezes se esforçam para
justificar as ações do governo Lula?
Valem mais que os críticos?
Fausto - Dizer amém ao governo
não serve. De minha parte, não
assino cheque em branco para
ninguém. Mas a crítica radical é
muito ruim. O que me preocupa
no grupo radical é que estamos
perdendo a oportunidade de fazer
uma critica séria ao governo. Por
exemplo: a reforma da Previdência teria que ser seriamente discutida. A reforma tem coisas boas.
Deveria ter sido apoiada na questão dos juízes. Idem na modificação dos prazos para a aposentadoria. Os tetos poderiam ser mais
altos. Em matéria de críticas ao
governo, a posição dos tucanos
também não é solução. O balanço
do período FHC não é extraordinário. Para não falar de certo tipo
de crítica nitidamente reacionária
-não me refiro especificamente
aos tucanos- por parte de gente
que fez campanha de terror no
momento da eleição do Lula. Esses defensores intransigentes do
capitalismo e de suas desigualdades aberrantes não têm nenhuma
autoridade para falar em "direitos
democráticos", "honestidade administrativa" etc. etc.
Quem fez uma excelente crítica
do governo e das forças nele dominantes foi o [Fernando] Gabeira: sua crítica ecológica atinge os
neoliberais e os nacionais-desenvolvimentistas. E como ele fala
também da atitude do governo
em relação a Fidel Castro, atinge
ainda os neoguevaristas. Vamos
tentar uma saída de esquerda, democrática.
Folha - Mesmo na parte política, o
governo não poderia ter fugido a
certo continuísmo? O que o governo Lula poderia ter apresentado
como novidade e que não fez?
Fausto - O que não fez? A política
internacional é bastante boa, mas
tem o caso de Cuba. Lula faz uma
viagem a Cuba em que poderia ter
feito um gesto em favor dos dissidentes. Eu diria que ele tinha o gol
à frente, era só chutar. Passaria já
para a história como o homem
que enfrentou Bush e que ao mesmo tempo foi capaz de dizer não a
Fidel Castro. Ele iria ser o herói da
esquerda democrática mundial.
Perdeu essa oportunidade. Nomeia um embaixador em Cuba
que é um amigo pessoal de Fidel
Castro. Lula e outros têm relações
afetivas com Castro, mas nós não
temos nada a ver com isso. Muitos, entre os milhões de brasileiros que, como eu, votaram em Lula não têm nenhuma simpatia por
ditadores do Terceiro Mundo.
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