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ENTREVISTA DA 2ª
MARKUS JANN
Segundo o chefe do Departamento de Drogas da Suíça, as salas de uso seguro ajudam a reduzir as mortes por overdose
"Narco-sala é tratamento médico", diz psicólogo suíço
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Chefe do Departamento de
Drogas da Suíça, o psicólogo Markus Jann, 47, diz que as salas de
uso seguro de drogas ou narco-salas, cuja implantação é debatida
pelo governo brasileiro, são uma
forma de tratamento.
"Nessas condições, o uso da
drogas estaria fora do contexto
normal de consumo e não é considerado abuso, mas uso médico",
afirmou em entrevista da Suíça à
Folha.
O governo suíço gosta de destacar que sua população escolheu o
"caminho do meio" -entre a repressão do uso de drogas e sua legalização- para abordar a questão de consumo de entorpecentes
no país. A política da Suíça é baseada em quatro pilares: prevenção, terapia, redução de danos e
repressão. E estabelece diferenças
entre uso, abuso, dependência e
tráfico de drogas.
Jann rebateu críticas comuns
que dizem que a redução de danos incentiva o uso de psicotrópicos, principalmente por jovens.
"Descobrimos que, sem almejar
unicamente a abstinência, poderíamos diminuir os danos causados pelo consumo de drogas e seu
custo para o sistema de saúde,
além de reintegrar os dependentes na sociedade", explica.
Na década de 80, o Estado suíço
começou a distribuir seringas para usuários de drogas injetáveis
para evitar contágio por doenças
infecciosas. Pouco depois, foram
criadas praças de uso livre de drogas próximas a postos médicos. E
aí ficou evidente para todos os
que circulavam por ali que as drogas eram um problema que merecia atenção especial.
Surgiram então duas correntes:
a proibicionista, que organizou
um programa de prevenção e tratamento compulsório para atacar
a questão, e a legalizadora, que
pregava a liberação das drogas.
Ambas as propostas foram votadas em plebiscitos nacionais nos
anos 90. E ambas foram rejeitadas
pelos suíços, que optaram pelo
"caminho do meio".
Segundo Jann, pesquisas de
universidades do país não deixam
dúvida a respeito do sucesso das
medidas de redução de danos implementadas pelo governo, como
a troca de seringas, a distribuição
de preservativos, a terapia de
substituição e a criação de narco-salas, em que usuários podem utilizar drogas com orientação especializada, além de ter acesso a
uma rede de assistência.
Em 1991, cerca de 40% dos novos casos de Aids eram de usuários de drogas injetáveis e o país
computou 415 mortes por overdose. Em 1999, os novos casos de
Aids entre dependentes tinham
caído para cerca de 15% e as mortes por overdose para 181. Leia a
seguir trechos da entrevista.
Folha - Quando medidas de redução de danos foram implementadas na Suíça?
Markus Jann - Há muitos ingredientes numa política como essa.
E a aceitação da população é um
dos mais importantes deles. A redução de danos diz respeito a atitudes. Se há entre os cidadãos a
idéia de que uma pessoa que vive
à margem da sociedade deva ser
resgatada, aí você tem o ambiente
mais propício para o desenvolvimento de medidas de redução de
danos. Implementar essas medidas é lutar contra algumas contradições: você diz à população que
consumir drogas é danoso ao organismo e, ao mesmo tempo, cria
intervenções e espaços que de certa forma os auxiliam a consumir
drogas. Começamos a criar medidas de redução de danos em 1985,
quando uma cena de consumo de
drogas se tornou muito evidente
para a sociedade suíça [nessa época, existiam praças de uso de drogas em várias cidades]. As pessoas
não estavam preparadas para ver
viciados nas ruas, e isso evidenciou que algo precisava ser feito
para além da prevenção e repressão do consumo. A coexistência
entre cidadãos usuários e não-usuários de drogas proporcionou
um debate e um posicionamento
da sociedade suíça, que se abriu
para a redução de danos.
Folha - As medidas de redução de
danos não sofreram críticas?
Jann - Sofreram, é claro. As classes mais abastadas questionavam
a necessidade de um programa
como esse. Só quando a questão
da dependência tornou-se muito
evidente para a sociedade que essas pessoas começaram a mudar
de opinião. Essa é uma das diferenças mais importantes entre o
Brasil e a Suíça no que concerne a
redução de danos. O Brasil é um
país muito grande. A Suíça é muito pequena, tem controle social
intenso, e isso faz com que seja
impossível não se confrontar com
uma cena de consumo de drogas.
No Brasil, imagino, as circunstâncias são mais propícias para que
as pessoas não se deparem freqüentemente com cenas de consumo de drogas. As pessoas têm a
chance de não ver os viciados nas
ruas. Nesse caso, que imagino ser
o brasileiro, é fácil dizer: as drogas
são um problema dos outros, eles
que lidem com isso.
Folha - Quais programas de redução de danos o governo suíço
apóia?
Jann - Troca de seringas, acesso
a preservativos, programas de trabalho e geração de renda. Programas de albergagem para moradores de rua usuários de drogas. E
também terapias de substituição
de drogas. Substituição aqui quer
dizer basicamente a de heroína
por metadona, que é uma substância controlada e fornecida pelo
governo em doses diárias para
aqueles que não conseguem largar o vício de uma só vez. Digo
tranqüilamente que terapia de
substituição é a intervenção mais
poderosa em termos de redução
de danos. Se você dá às pessoas a
oportunidade de entrar em um
programa desses, você tira delas a
pressão de ter de comprar e usar
drogas toda hora. Esse é o primeiro passo em direção ao tratamento que gera a abstinência.
Folha - A Suíça tem narco-salas?
Jann- Em 1985, instalamos a primeira sala de uso seguro ou narco-sala. No início, a idéia não era
desenvolver um local de consumo
de drogas, mas uma espécie de
dormitório diurno onde os dependentes mais graves pudessem
descansar e ficar longe dos traficantes e das ruas. Eles não podiam consumir drogas nesses locais. Mas, então, os usuários nos
questionavam: por que vocês estão nos dando todo esse luxo se
não nos deixam fazer o que mais
queremos e precisamos? E aí começamos a fazer um projeto-piloto. Rapidamente percebemos que
a cena de usuários de drogas nas
ruas desapareceu. E o estado de
saúde dessas pessoas melhorou
muito. Foi por isso que a sociedade logo aceitou a instalação de
mais salas desse tipo [o governo
mantém hoje 13 narco-salas em
sete cidades diferentes].
Folha - Se consumir drogas na
Suíça é um crime, como foram legalizadas as narco-salas?
Jann - Criamos um mecanismo
legal que permite a administração
de drogas desde que feitas por um
médico, mas somente nas narco-salas. Nessas condições, o uso da
drogas estaria fora do contexto
normal de consumo e não é considerado abuso, mas uso médico e
para tratamento.
Folha - Essas salas não atraem
mais usuários?
Jann - Não. São salas em que os
usuários estão sob total controle
de uma equipe médica e assistencial. Eles precisam ter uma permissão para entrar nesses locais,
portanto, não é qualquer pessoa
que pode chegar e consumir sua
droga. Há um controle muito
grande de quem participa do programa. Essas narco-salas são destinadas ao que chamamos de
"usuário pesado", aquele que está
no fim da linha e realmente necessita de ajuda. Não é como um bar
ou um café. Os usuários de drogas
sabem que, se estão entrando naquele local, estão iniciando uma
espécie de tratamento médico.
Por isso não são locais atrativos
para usuários eventuais ou não-dependentes. Não são locais
atraentes para jovens.
Folha - Há quem argumente
que medidas de redução de danos
promovem as drogas e aumentam o
número de usuários e dependentes.
Jann -Absolutamente não. Essa
idéia de estímulo do consumo e
aumento de usuários está totalmente equivocada. As cidades
suíças que têm narco-salas não
têm maior proporção de usuários
de drogas que aquelas que não
possuem esse aparato. Fizemos
levantamentos sobre as narco-salas e concluímos que elas ajudam
a reduzir os comportamentos de
risco, a transmissão de doenças
infecciosas, particularmente a
Aids e as hepatites, e os índices de
mortes por overdose, portanto, a
mortalidade entre essa população. As salas ainda reduziram o
uso de drogas nas ruas, diminuindo a insurgência em bairros residenciais. O maior efeito de todos é
a diminuição da violência relacionada a drogas nas ruas.
Folha - Há pesquisas que provem
a eficácia de medidas de redução
de danos na Suíça?
Jann - A diminuição do número
de mortes relacionadas a drogas e
de infecções pelo HIV entre usuários é uma prova impressionante
do sucesso da redução de danos.
Muitas avaliações foram conduzidas pelo Ministério da Saúde e
por instituições nos diferentes Estados do país. Todas elas mostraram que dependentes pesados
dos nossos programas puderam
ser integrados a alguma estrutura
de tratamento com a redução de
danos, preservando o ideal da
abstinência a longo prazo. Uma
pesquisa do Instituto de Medicina
Social e Preventiva, da Universidade de Lausanne, nos dá a clara
impressão dos benefícios das narco-salas para viciados em heroína. O número de infectados por
Aids e hepatites diminuiu, as
mortes por overdose diminuíram
e até a freqüência de uso de drogas diminuiu entre muitos usuários do programa.
Folha - Quanto custa o programa
de drogas da Suíça?
Jann - Trabalhamos com quatro
tópicos: prevenção, terapia, redução de danos e repressão. Repressão é a parte de nosso programa
sobre drogas que mais consome
dinheiro. No total, gastamos por
ano US$ 1 bilhão no programa, divididos assim: US$ 500 milhões
em repressão, US$ 200 milhões
em terapia, US$ 150 milhões em
redução de danos e US$ 150 milhões em prevenção. Os custos
são divididos entre o Escritório
Federal de Saúde Pública e governos estaduais. Descobrimos que a
repressão por si só não reduz em
nada o problema.
Folha - Como o governo suíço
concluiu que prevenção e repressão não resolveriam o problema
das drogas?
Jann - A própria evolução da
história nos ensinou que uma sociedade totalmente livre de drogas é um sonho, uma utopia. Tivemos de aceitar que sempre existirão usuários e dependentes de
drogas apesar de nossos esforços
para prevenção e repressão desse
quadro. De acordo com o interesse dessa população e com a responsabilidade da sociedade, nós
asseguramos que as pessoas que
se tornaram dependentes, apesar
da prevenção e da repressão, terão tratamento adequado a suas
necessidades. Em outras palavras,
além da prevenção e da repressão,
precisamos de terapias. Infelizmente, no entanto, nem todos os
usuários de drogas conseguem
iniciar um tratamento ou completá-lo com sucesso. E essas pessoas
são o grande alvo da nossa rede de
assistência. O principal objetivo
de nossas medidas de redução de
danos não é apenas diminuir a dependência debilitante mas também manter os usuários em condições para uma futura terapia de
abstinência. Dessa maneira, nós
não só exercemos nossa responsabilidade para com os membros
mais fracos da nossa sociedade
como também contribuímos significativamente para reduzir o
custo social das drogas.
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