São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

MARKUS JANN

Segundo o chefe do Departamento de Drogas da Suíça, as salas de uso seguro ajudam a reduzir as mortes por overdose

"Narco-sala é tratamento médico", diz psicólogo suíço

FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

Chefe do Departamento de Drogas da Suíça, o psicólogo Markus Jann, 47, diz que as salas de uso seguro de drogas ou narco-salas, cuja implantação é debatida pelo governo brasileiro, são uma forma de tratamento.
"Nessas condições, o uso da drogas estaria fora do contexto normal de consumo e não é considerado abuso, mas uso médico", afirmou em entrevista da Suíça à Folha.
O governo suíço gosta de destacar que sua população escolheu o "caminho do meio" -entre a repressão do uso de drogas e sua legalização- para abordar a questão de consumo de entorpecentes no país. A política da Suíça é baseada em quatro pilares: prevenção, terapia, redução de danos e repressão. E estabelece diferenças entre uso, abuso, dependência e tráfico de drogas.
Jann rebateu críticas comuns que dizem que a redução de danos incentiva o uso de psicotrópicos, principalmente por jovens.
"Descobrimos que, sem almejar unicamente a abstinência, poderíamos diminuir os danos causados pelo consumo de drogas e seu custo para o sistema de saúde, além de reintegrar os dependentes na sociedade", explica.
Na década de 80, o Estado suíço começou a distribuir seringas para usuários de drogas injetáveis para evitar contágio por doenças infecciosas. Pouco depois, foram criadas praças de uso livre de drogas próximas a postos médicos. E aí ficou evidente para todos os que circulavam por ali que as drogas eram um problema que merecia atenção especial.
Surgiram então duas correntes: a proibicionista, que organizou um programa de prevenção e tratamento compulsório para atacar a questão, e a legalizadora, que pregava a liberação das drogas. Ambas as propostas foram votadas em plebiscitos nacionais nos anos 90. E ambas foram rejeitadas pelos suíços, que optaram pelo "caminho do meio".
Segundo Jann, pesquisas de universidades do país não deixam dúvida a respeito do sucesso das medidas de redução de danos implementadas pelo governo, como a troca de seringas, a distribuição de preservativos, a terapia de substituição e a criação de narco-salas, em que usuários podem utilizar drogas com orientação especializada, além de ter acesso a uma rede de assistência.
Em 1991, cerca de 40% dos novos casos de Aids eram de usuários de drogas injetáveis e o país computou 415 mortes por overdose. Em 1999, os novos casos de Aids entre dependentes tinham caído para cerca de 15% e as mortes por overdose para 181. Leia a seguir trechos da entrevista.

 

Folha - Quando medidas de redução de danos foram implementadas na Suíça?
Markus Jann -
Há muitos ingredientes numa política como essa. E a aceitação da população é um dos mais importantes deles. A redução de danos diz respeito a atitudes. Se há entre os cidadãos a idéia de que uma pessoa que vive à margem da sociedade deva ser resgatada, aí você tem o ambiente mais propício para o desenvolvimento de medidas de redução de danos. Implementar essas medidas é lutar contra algumas contradições: você diz à população que consumir drogas é danoso ao organismo e, ao mesmo tempo, cria intervenções e espaços que de certa forma os auxiliam a consumir drogas. Começamos a criar medidas de redução de danos em 1985, quando uma cena de consumo de drogas se tornou muito evidente para a sociedade suíça [nessa época, existiam praças de uso de drogas em várias cidades]. As pessoas não estavam preparadas para ver viciados nas ruas, e isso evidenciou que algo precisava ser feito para além da prevenção e repressão do consumo. A coexistência entre cidadãos usuários e não-usuários de drogas proporcionou um debate e um posicionamento da sociedade suíça, que se abriu para a redução de danos.

Folha - As medidas de redução de danos não sofreram críticas?
Jann -
Sofreram, é claro. As classes mais abastadas questionavam a necessidade de um programa como esse. Só quando a questão da dependência tornou-se muito evidente para a sociedade que essas pessoas começaram a mudar de opinião. Essa é uma das diferenças mais importantes entre o Brasil e a Suíça no que concerne a redução de danos. O Brasil é um país muito grande. A Suíça é muito pequena, tem controle social intenso, e isso faz com que seja impossível não se confrontar com uma cena de consumo de drogas. No Brasil, imagino, as circunstâncias são mais propícias para que as pessoas não se deparem freqüentemente com cenas de consumo de drogas. As pessoas têm a chance de não ver os viciados nas ruas. Nesse caso, que imagino ser o brasileiro, é fácil dizer: as drogas são um problema dos outros, eles que lidem com isso.

Folha - Quais programas de redução de danos o governo suíço apóia?
Jann -
Troca de seringas, acesso a preservativos, programas de trabalho e geração de renda. Programas de albergagem para moradores de rua usuários de drogas. E também terapias de substituição de drogas. Substituição aqui quer dizer basicamente a de heroína por metadona, que é uma substância controlada e fornecida pelo governo em doses diárias para aqueles que não conseguem largar o vício de uma só vez. Digo tranqüilamente que terapia de substituição é a intervenção mais poderosa em termos de redução de danos. Se você dá às pessoas a oportunidade de entrar em um programa desses, você tira delas a pressão de ter de comprar e usar drogas toda hora. Esse é o primeiro passo em direção ao tratamento que gera a abstinência.

Folha - A Suíça tem narco-salas?
Jann-
Em 1985, instalamos a primeira sala de uso seguro ou narco-sala. No início, a idéia não era desenvolver um local de consumo de drogas, mas uma espécie de dormitório diurno onde os dependentes mais graves pudessem descansar e ficar longe dos traficantes e das ruas. Eles não podiam consumir drogas nesses locais. Mas, então, os usuários nos questionavam: por que vocês estão nos dando todo esse luxo se não nos deixam fazer o que mais queremos e precisamos? E aí começamos a fazer um projeto-piloto. Rapidamente percebemos que a cena de usuários de drogas nas ruas desapareceu. E o estado de saúde dessas pessoas melhorou muito. Foi por isso que a sociedade logo aceitou a instalação de mais salas desse tipo [o governo mantém hoje 13 narco-salas em sete cidades diferentes].

Folha - Se consumir drogas na Suíça é um crime, como foram legalizadas as narco-salas?
Jann -
Criamos um mecanismo legal que permite a administração de drogas desde que feitas por um médico, mas somente nas narco-salas. Nessas condições, o uso da drogas estaria fora do contexto normal de consumo e não é considerado abuso, mas uso médico e para tratamento.

Folha - Essas salas não atraem mais usuários?
Jann -
Não. São salas em que os usuários estão sob total controle de uma equipe médica e assistencial. Eles precisam ter uma permissão para entrar nesses locais, portanto, não é qualquer pessoa que pode chegar e consumir sua droga. Há um controle muito grande de quem participa do programa. Essas narco-salas são destinadas ao que chamamos de "usuário pesado", aquele que está no fim da linha e realmente necessita de ajuda. Não é como um bar ou um café. Os usuários de drogas sabem que, se estão entrando naquele local, estão iniciando uma espécie de tratamento médico. Por isso não são locais atrativos para usuários eventuais ou não-dependentes. Não são locais atraentes para jovens.

Folha - Há quem argumente que medidas de redução de danos promovem as drogas e aumentam o número de usuários e dependentes.
Jann -
Absolutamente não. Essa idéia de estímulo do consumo e aumento de usuários está totalmente equivocada. As cidades suíças que têm narco-salas não têm maior proporção de usuários de drogas que aquelas que não possuem esse aparato. Fizemos levantamentos sobre as narco-salas e concluímos que elas ajudam a reduzir os comportamentos de risco, a transmissão de doenças infecciosas, particularmente a Aids e as hepatites, e os índices de mortes por overdose, portanto, a mortalidade entre essa população. As salas ainda reduziram o uso de drogas nas ruas, diminuindo a insurgência em bairros residenciais. O maior efeito de todos é a diminuição da violência relacionada a drogas nas ruas.

Folha - Há pesquisas que provem a eficácia de medidas de redução de danos na Suíça?
Jann -
A diminuição do número de mortes relacionadas a drogas e de infecções pelo HIV entre usuários é uma prova impressionante do sucesso da redução de danos. Muitas avaliações foram conduzidas pelo Ministério da Saúde e por instituições nos diferentes Estados do país. Todas elas mostraram que dependentes pesados dos nossos programas puderam ser integrados a alguma estrutura de tratamento com a redução de danos, preservando o ideal da abstinência a longo prazo. Uma pesquisa do Instituto de Medicina Social e Preventiva, da Universidade de Lausanne, nos dá a clara impressão dos benefícios das narco-salas para viciados em heroína. O número de infectados por Aids e hepatites diminuiu, as mortes por overdose diminuíram e até a freqüência de uso de drogas diminuiu entre muitos usuários do programa.

Folha - Quanto custa o programa de drogas da Suíça?
Jann -
Trabalhamos com quatro tópicos: prevenção, terapia, redução de danos e repressão. Repressão é a parte de nosso programa sobre drogas que mais consome dinheiro. No total, gastamos por ano US$ 1 bilhão no programa, divididos assim: US$ 500 milhões em repressão, US$ 200 milhões em terapia, US$ 150 milhões em redução de danos e US$ 150 milhões em prevenção. Os custos são divididos entre o Escritório Federal de Saúde Pública e governos estaduais. Descobrimos que a repressão por si só não reduz em nada o problema.

Folha - Como o governo suíço concluiu que prevenção e repressão não resolveriam o problema das drogas?
Jann -
A própria evolução da história nos ensinou que uma sociedade totalmente livre de drogas é um sonho, uma utopia. Tivemos de aceitar que sempre existirão usuários e dependentes de drogas apesar de nossos esforços para prevenção e repressão desse quadro. De acordo com o interesse dessa população e com a responsabilidade da sociedade, nós asseguramos que as pessoas que se tornaram dependentes, apesar da prevenção e da repressão, terão tratamento adequado a suas necessidades. Em outras palavras, além da prevenção e da repressão, precisamos de terapias. Infelizmente, no entanto, nem todos os usuários de drogas conseguem iniciar um tratamento ou completá-lo com sucesso. E essas pessoas são o grande alvo da nossa rede de assistência. O principal objetivo de nossas medidas de redução de danos não é apenas diminuir a dependência debilitante mas também manter os usuários em condições para uma futura terapia de abstinência. Dessa maneira, nós não só exercemos nossa responsabilidade para com os membros mais fracos da nossa sociedade como também contribuímos significativamente para reduzir o custo social das drogas.


Texto Anterior: Multimídia: Revista alemã traz detalhes do nazista
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.