São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

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Atas revelam que ditadura queimou papéis secretos

"Termos de destruição" registram a incineração de pelo menos 39 ofícios sigilosos

Coronéis reformados do Exército que acompanham as incinerações em Brasília afirmam que atos eram de rotina e persistem até hoje


RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Documentos entregues pela União ao Arquivo Nacional de Brasília, ligado à Casa Civil, revelam que pelo menos 39 papéis secretos produzidos pelo Exército e pelo Emfa (Estado-Maior das Forças Armadas) foram incinerados pela ditadura militar entre o final da década de 60 e o início dos anos 70.
Nos arquivos do CSN (Conselho de Segurança Nacional), que a partir de 2006 foram transferidos para o Arquivo, a Folha localizou quatro "termos de destruição", três do ano de 1969 e um de 1972. Criado em 1937, o CSN se tornou, por meio de uma lei de 1969, o "órgão de mais alto nível de assessoramento direto do presidente da República, na formulação e na execução da política de segurança nacional".
Extinto nos anos 80, o CSN participou de momentos decisivos da ditadura militar, como a decretação do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, que aumentou as restrições às liberdades civis.
Nos termos de destruição datados de 1969 aparecem as datas em que os papéis queimados foram produzidos, todos anteriores ao golpe de 1964. Pelo menos cinco deles eram classificados como "ultra-secretos", que é o mais alto grau de sigilo nos papéis produzidos pelo serviço público. Pela lei atual, precisariam ter ficado pelo menos 30 anos sob sigilo.
Datados de maio, junho e julho de 1961, os papéis incinerados poderiam conter informações acerca do governo de sete meses de Jânio Quadros (1917-1992), que renunciou ao cargo em agosto daquele ano.
Os temas de alguns desses papéis queimados foram relatados genericamente nos termos de destruição. Eram uma "diretriz de contra-informação", produzida pelo Estado-Maior das Forças Armadas, uma "ação repressiva", uma "ação preventiva", um "plano de comunicação de emergência" e um "plano de transporte" de emergência.
O termo de destruição do ano de 1972 é ainda mais vago. Relata a incineração de 34 papéis considerados sigilosos, porém identificados apenas por códigos alfanuméricos.

Testemunhas
Para documentar as incinerações, a ditadura produzia atas assinadas pelos responsáveis pela guarda dos papéis. Em 1969, o responsável era o chefe-de-gabinete da Secretaria Geral do CSN, o coronel José Machado Bellas, falecido há cerca de quatro anos, que por sua vez obedecia a ordens do então secretário, o general Jayme Portella. Em 1972, o responsável pela guarda era o então coronel Lourival Massa da Costa, também já morto, cujo chefe era o general João Baptista Figueiredo, tornado presidente da República em 1979.
Conforme descrito nos termos, as ordens para a destruição dos documentos eram determinadas por ofícios igualmente secretos. Diziam estar baseadas na lei em vigor, o "Regulamento para a Salvaguarda dos Assuntos Sigilosos".
Os atos de destruição eram testemunhados por dois militares de patentes inferiores.
A Folha localizou, por telefone, dois desses militares, o coronel reformado Ronaldo Rainho da Silva Carneiro, então chefe da Seção de Documentação e Pessoal do CSN, e seu substituto na função, o também coronel reformado Gustavo Manoel Fernandes Júlio.
"Não tenho mais nada a acrescentar, a não ser isso: eu era capitão, da área administrativa. Eram só assuntos administrativos. Era um órgão subordinado à Presidência", disse o coronel Rainho.
Sobre a destruição dos documentos, primeiro afirmou: "Nunca vi isso, no meu tempo não existia isso. Eu era muito jovem nisso. Não tenho o que acrescentar". Após a Folha ler um dos termos de destruição com sua assinatura, Rainho se lembrou: "Isso é rotina das unidades militares, isso acontece hoje em dia. Todo ministério, quando chega uma determinada época, pelo menos era assim, não se vai guardando tudo o que interessa, senão vira uma loucura. Hoje em dia, qualquer coisa, para ser feita, é feita em comissão. Não perca seu tempo nessa linha, não tenho nada a acrescentar".

Combate
O coronel Gustavo Manoel Fernandes Júlio disse, por telefone, que os atos de destruição de papéis ocorreram "num dos andares do antigo Estado-Maior das Forças Armadas, na Esplanada dos Ministérios". Júlio estava lotado na Secretaria Geral do CSN.
"A Secretaria Geral é que fazia os estudos para o presidente da República, tudo que era pedido ao presidente, ministros apresentavam anteprojeto de lei, qualquer coisa, o presidente mandava estudar na Secretaria Geral, que estudava o assunto e levava ao presidente uma solução ou duas ou três linhas de ação para o presidente decidir. Eu só recebia documentação e distribuía."
Sobre os termos em que seu nome aparece, Júlio disse serem atos burocráticos. "Isso aí, colocavam o nome da pessoa. A gente faz a incineração desse material, aí coloca-se o nome: "Olha, vou colocar o seu nome lá para servir como testemunha". Tudo bem, e a gente confiava, cada um confiava no outro", argumentou o coronel.
"Com toda sinceridade, não sei lhe dizer por que era feito. Às vezes documento que já perdia a validade, todo documento que perde a validade aparece outro documento que torna aquele sem valor, então a gente faz [a incineração]".
E qual era o conteúdo dos papéis queimados? "Tratava-se de tudo. Tudo que se falava, saía no jornal. Negócio de censura é conversa fiada. Eles podiam saber das coisas lá. Saía no jornal, havia repórteres que iam ao Palácio e tudo. Na secretaria acho que não, mas no Palácio sim. Então tinham conhecimento de tudo. Isso tudo já passou."
Pelo raciocínio de Júlio, Médici foi levado a um enfrentamento com a esquerda armada. "De todo esse período, o maior presidente, que aliás a história depois vai [reconhecer], chama-se Emílio Garrastazu Médici, que é injuriado só porque combateu esse pessoal de esquerda que só queria trazer o comunismo para o país. Ele não quis essa guerra. O país foi assolado por essa turma. Então ele teve que combatê-la. E acabou com a história."


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