São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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ANÁLISE/POLÍTICA ECONÔMICA

A questão do PT é a transição, não a ruptura

VINICIUS TORRES FREIRE
EDITOR DE DINHEIRO

Já faz alguns meses, muito se discute se a palavra "ruptura" vai constar ou não do programa econômico do PT. Mas se fosse preciso prestar atenção a uma só palavra da nova carta de intenções econômicas do PT seria melhor perguntar o que o partido está chamando de "transição" para uma nova política econômica.
Aliás, trata-se de uma questão, a transição, para todos os partidos. Talvez seja aí que eles se diferenciem pois, em termos macroeconômicos, em linhas gerais todos propõem a mesma coisa, em conversas reservadas, em público ou em rascunhos de programas.

O tamanho do problema
A expressão "em termos macroeconômicos" quer dizer: o que fazer da dívida pública, do crescimento, da inflação, dos juros, das contas externas (quanto o país recebe e gasta em dólares).
A dívida pública (dos governos) cresceu muito nos anos de Fernando Henrique Cardoso, problema número um. Dois, hoje em dia, a economia brasileira, quando cresce, tende a produzir rapidamente uma diminuição do saldo comercial (as exportações diminuem, as importações aumentam). Mas o Brasil precisa de muitos dólares a fim de pagar juros da dívida externa, os lucros que as empresas estrangeiras remetem, a conta do cartão de crédito dos turistas, o frete dos navios que transportam nossas mercadorias, entre outras despesas.
Para tanto, é preciso exportar mais que importar e/ou conseguir investimentos estrangeiros e/ou empréstimos. Nos governos FHC, o país precisou cada vez mais de dólares e não aumentou sua capacidade autônoma de gerá-los em volume relevante.
Em economias abertas (em que o dinheiro entra e sai com relativa liberdade de um país), de governos muito endividados, muito dependentes de capital externo para fechar as contas e de pouca credibilidade (com histórico de calotes), como no Brasil, é difícil manter a dívida pública e as contas externas sob controle.
Mas é preciso que a dívida pública pareça "pagável" a quem empresta ao governo. E o país tem de parecer capaz de gerar dólares para pagar a dívida externa e a fim de poder trocá-los pelos reais de quem quer remeter lucros, por exemplo. Nessas economias precárias, na nossa, os juros em geral são altos. Juros altos também serve para manter o fluxo de dinheiro que financia nossos déficits interno e externo.

Dois palavrões famosos
O PT pretende resolver, ao mesmo tempo, o problema da volta do crescimento e da desigualdade social. Para tanto, seus dois eixos principais são o ataque à "vulnerabilidade externa" e a "criação de um mercado interno de massas".
O palavrão número um, "reduzir a vulnerabilidade externa", significa que o governo vai estimular ou executar programas que aumentem as exportações e diminuam as importações (fazendo os produtos aqui). São as chamadas políticas industrial, de competitividade ou comercial. O número dois, que o governo quer fazer que os mais pobres consumam mais, o que estimularia o crescimento sem criar problemas nas contas externas. O PT diz que "as massas" não consomem produtos exportáveis ou importáveis.
O PT fala em "medidas emergenciais" para melhorar as contas externas. Não se sabe como o PT o faria, mas tais políticas exigem, por exemplo, reforma tributária: redução de impostos de bens exportáveis, tornando-os mais baratos, concessão de subsídios, o que custa caro ao governo e leva tempo para implementar. Políticas menos custosas demoram a dar resultados, dois ou três anos, digamos. De resto, é bastante polêmico se vale a pena substituir certas importações (sairia mais caro fabricar aqui) e se é possível barrar importações por meios como impostos, por exemplo, o que pode violar tratados internacionais e impedir o acesso da empresa brasileira a bens mais baratos de tecnologia.
Políticas de aumento do consumo de massas (obras de saneamento e infra-estrutura, construção de casas populares, que dão mais emprego aos mais pobres) não pressionam de início as contas externas, mas a médio prazo aumentam o consumo geral da economia, o que pressiona, sim, as contas externas. De resto, exigem investimento público ou privado (via privatização do saneamento, por exemplo).

Dúvidas da transição
O problema é que tais políticas são necessárias para de fato dar um impulso ao crescimento econômico e tirar o país do círculo vicioso de dívida, déficit externo e juros altos. A questão é o "timing" ou a "consistência intertemporal", como dizem os economistas: como chegar a esses objetivos antes que a dívida estoure, os investidores fujam, o país quebre?
Ao menos num primeiro momento, o PT parece que vai propor o que quase todo macroeconomista recomenda para o país no ano que vem. Superávit fiscal (economia de despesas dos governos) igual ou maior que o de 2001, a fim de manter a confiança dos investidores e, talvez baixar os juros e retomar algum crescimento, o que conteria um pouco do aumento relativo da dívida.
Mas, num primeiro momento, se o crescimento volta, tende a haver menos saldo comercial e piora nas contas externas (mais importação, menos importação), pois as políticas industrial e comercial não fazem efeito no curto prazo, se é que de fato vai haver dinheiro, criatividade, competência e capacidade de negociação para fazê-las melhorar no médio prazo.
Alguma piora nas contas externas tende a pressionar o dólar e provavelmente a inflação, já pressionada pelos aumentos programados nos serviços públicos. Para conter a inflação nas metas estreitas de hoje, seria preciso conter o crescimento, o que piora a situação da dívida pública.
Enfim, por algum lado, nos dois primeiros anos do próximo governo, o problema estoura. Esse é o problema da transição: o que fazer enquanto as contas externas não melhoram e os juros não podem cair muito?
Uma pergunta imediata é: o PT vai manter superávits fiscais o tempo suficiente para controlar a dívida, baixar juros e reduzir o consumo nacional (o que também ajuda as contas externas)? Como e em que medida vai controlar a inflação, caso o crescimento volte de imediato? Com que tipo de metas de inflação?
Em um espaço de quinze dias, neste mês, três economistas do PT deram respostas diferentes para o problema das metas de inflação. Mesmo o governo FHC acaba de admitir que as metas fixadas são muito estreitas e exigem altas frequentes de juros, o que emperra a economia. Mas há divergências no PT sobre qual sistema adotar -e trata-se de uma questão crucial para garantir a credibilidade da política econômica. Diferenças sobre essas questões geraram uma crise interna entre os economistas e defecções na equipe do programa econômico.
De onde virá o financiamento para os investimentos que vão estimular o "consumo de massas"? Alguns dos economistas do PT falam em usar dinheiro dos bancos federais, que nos anos FHC viveram semiquebrados e na dependência dos escassos recursos públicos. Para manter a dívida estável e investir mais, o governo do PT reformaria a Previdência dos servidores públicos, a maior fonte de déficit público?
O problema crucial será essa transição do "malanismo", da política econômica de FHC, para um novo modelo. E é um problema de todos os candidatos.



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