São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 2000


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ELIO GASPARI
Bier, o homem que mata os feridos

O tucanato deve desculpas ao economista Andrea Calabi. Quem tem memória lembra. Em fevereiro, o ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias, passou-lhe a faca e obteve de FFHH sua demissão da presidência do BNDES. O governo explicou que ele vinha se desentendendo com seu superior hierárquico. Pior: falava demais. Na ocasião, o ministro do Desenvolvimento deu uma famosa declaração: "Quando não aprovo algo, chamo a pessoa e digo o que está me desagradando e o que deve ser feito para mudar. Dou duas oportunidades; na terceira, demito".
Fazendo-se de conta que o governo não está dividido em facções, Calabi não divergiu de Tápias em coisas essenciais. Discordavam na bijuteria.
O governo deve desculpas a Calabi porque o que acaba de fazer o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Amaury Bier, foi muito além daquilo que o pior inimigo do ex-presidente do BNDES seria capaz de imaginar.
O doutor Bier simplesmente anunciou que o governo deveria tungar os 40% da multa que é aplicada sobre o valor do FGTS dos trabalhadores em casos de demissão sem justa causa. Faz tempo que a ekipekonômica está de olho nesse dinheiro. Ao final de 1997 patrocinou uma pequena ofensiva acadêmica em torno do tema, mas abandonou o debate para ir cuidar da crise cambial.
A proposta de Bier apareceu dias depois de o governo ter legislado sobre a tolice da proibição da publicidade de suas divergências internas. O secretário-executivo do Ministério da Fazenda viu-se desautorizado pelo Planalto, pelo ministro do Trabalho e pelo líder do governo na Câmara. Se Calabi tivesse feito uma coisa dessas, Tápias o teria jogado pela janela e o Planalto diria que seu caso deveria ser tomado como um alerta. (Como fez com o camponês paranaense assassinado em maio, no Paraná.)
Bier colocou-se na condição que o jornalista americano Murray Kempton atribuiu aos editorialistas: "São as pessoas que depois da batalha descem ao campo para matar os feridos".
Ele quer criar um empréstimo compulsório para os desempregados. Ilustra-se a proposta com um exemplo:
Imagine-se um trabalhador que ganha R$ 700 numa firma e nela trabalha há três anos. Ao ser mandado embora, tem direito a um mês de aviso prévio mais o FGTS (equivalente a algo como um salário por ano trabalhado) e a multa de 40% sobre o seu valor. Na melhor das hipóteses, vai para a rua com um pouco mais de R$ 3.500 no bolso. Uma fortuna. Levando-se em conta que o tempo médio de procura de emprego está em 20 semanas, verifica-se que o desemprego custará a esse trabalhador a torrefação de seu pecúlio social.
O doutor Bier acha que isso é pouco. Pretende tungar-lhes a multa (pouco mais de R$ 800, no exemplo), acorrentando-a à sua conta do fundo.
O governo quer fazer caixa, mas não lhe passa pela cabeça ir buscá-la no bolso daqueles a quem ceva com a taxa de juros real mais alta do mundo.
Pelo contrário. Em matéria de construções fiscais, quer isentar da CPMF o movimento de dinheiro nas Bolsas de Valores.
De acordo com o gogó tucano, uma vez desautorizado, Bier deveria ser demitido. É difícil que isso aconteça e, se acontecer, será uma injustiça. Primeiro, porque é um funcionário competente (à maneira do governo).
Segundo, porque a proposta não teve nada de pessoal. É assim que pensa a ekipekonômica e é assim que pensa o lado da cabeça de FFHH que com ela funciona em regime de comodato.
A tunga dos 40% do FGTS só não ocorreu porque faltou ao governo a oportunidade política para o bote. Recolhido depois do fracasso da primeira ofensiva, ele não é louco de apoiá-la agora, perto de uma eleição.
Houve uma época em que o rei da Itália tinha o monopólio do sal e a choldra estava proibida de pegar água no mar (com a salinidade certa para ferver a pasta). Hoje, a lembrança dos fiscais de oceano é uma vinheta na história do macarrão.
Algum dia alguém ilustrará o mandarinato tucano com a proposta de Bier. Com 1,6 milhão de desempregados na Grande São Paulo, o governo quer isentar os negócios da Bolsa de um imposto, ao mesmo tempo em que um de seus sábios quis arrancar aos desocupados um empréstimo compulsório sobre o seu pecúlio.
O doutor Bier deve continuar onde está, para sempre. É um tipo inesquecível.


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