São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2008

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JANIO DE FREITAS

Ameaças vazias


Ameaça e democracia não podem ser aproximadas em vão, sem a companhia de fundamentações ainda que polêmicas

PASSADO O LONGO período de umas 48 horas sem aparecer em nenhum meio de comunicação, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, aponta ameaças à nossa democracia na ocasião mesma em que seu parceiro, o ministro da Defesa, é abatido por suas próprias forças com um desmentido definitivo. Nem o promissor carimbo de "confidencial", pespegado no documento que Nelson Jobim entregou à CPI das Escutas Telefônicas, poupou-o da divulgação de que foi inverdadeiro nos depoimentos à CPI. Mais: também nas contestações ácidas ao ministro da Segurança Institucional, general Jorge Felix. E ainda: na indução ao presidente da República para afastar, por suspeitas extremas, o delegado Paulo Lacerda e outros diretores da Abin. O laudo final do Exército assegura que os equipamentos da Abin não poderiam ter gravado Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres.
A partir da indução precipitada por Jobim, tudo a respeito daquela escuta concentrou-se na hipotética maleta da Abin, em detrimento da investigação de "grampeadores" particulares, a soldo de interessados, e mesmo como um dos desmandos decorrentes da Operação Satiagraha. Pouco depois de uma visita de José Dirceu à sua casa às 8 da manhã, Nelson Jobim chegou a exibir na CPI um comprovante documental de suas afirmações. Voltava lá porque um laudo do Instituto de Criminalística da PF refutara-lhe as contestações ao general Felix e ao delegado Paulo Lacerda.
Jobim mostrou e entregou o prospecto do que seria a maleta, por ele apontada, capaz da gravação feita. Era, de fato, apenas a reprodução de um prospecto encontrável na internet. Impressionou muito, com a junção do papel à ênfase. E com o prestígio pessoal, ao explicar a visita matinal de Dirceu para lhe "levar charutos". Não foi só o que lhe levou José Dirceu, hoje tão dedicado à internet quanto à idéia de que o verdadeiro objetivo da Satiagraha e do delegado Paulo Lacerda era prendê-lo.
Ao enredo sintetizado na falsa associação de determinada maleta a determinada escuta, o ministro Gilmar Mendes junta um ingrediente inesperado: "o projeto institucional que estava por trás disso" [a gravação de sua conversa com o senador], "acho que era extremamente perigoso para a democracia. Uma mente perversa pensou isso".
Da escuta e difusão de uma conversa sem riscos pessoais, deduzir a existência de um projeto ameaçador para a democracia é mais do que um passo excessivo. É o mergulho em uma responsabilidade que o país e a democracia merecem ver justificada, tanto mais que é também a responsabilidade de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Ameaça e democracia não podem ser aproximadas em vão, sem a companhia de fundamentações ainda que polêmicas.
O conceito de democracia, aliás, não fica bastante claro na preocupação exposta pelo ministro. Eis outro trecho seu: "quando a questão [de escutas e vazamentos] se alçou a esse plano de ouvir senadores, ministros do Supremo, e isso se comprovou, então isso chamou a atenção da sociedade e atingiu aquele ponto limite no qual é preciso dizer basta".
Não consta, nos termos da Constituição democrática, que entre os cidadãos em geral e, de outra parte, os senadores e ministros do Supremo haja "pontos de limite" diferentes para os atos que atinjam os seus respectivos direitos. Os quais, nos termos da Constituição democrática, nem são respectivos, mas iguais na cidadania. Senador e ministro do Supremo são funções com direitos de cidadania iguais ao do servidor que recolhe o lixo de ministros e senadores. A idéia de "pontos de limite" de tolerância para uns é essencialmente incompatível com a democracia -para não dizer que também a ameaça.
A defesa de uma reforma política urgente, de dar-se caráter impositivo a parte do Orçamento do governo e a recusa à proposta de miniconstituinte, feitas por Gilmar Mendes, são necessidades reais e coerentes. A de apontar com clareza ao país o que o ameaça, também é.


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