São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 2006

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Entrevista da 2ª

Eleição expôs mudanças no Brasil

Intelectuais apontam diminuição das esperanças do eleitorado e do simbolismo de Lula, mas falam em consolidação da democracia

Jorge Araujo/Folha Imagem
O presidente em São Bernardo do Campo, após votar com a primeira-dama, Marisa; cumprimentou eleitores e deu entrevista


1 - Quais as diferenças de significado entre a eleição de Lula em 2002 e agora? O que esperar do 2º mandato?

2 - Qual o peso do passivo de acusações contra Lula? O sr. vê possibilidade de alguma espécie de "terceiro turno"?

PARA ANALISTAS ouvidos pela Folha a propósito da reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, há poucas mudanças a esperar de um segundo mandato do petista, embora muitos apontem transformações importantes na política e na sociedade brasileiras evidenciadas nas eleições encerradas ontem. O historiador Luiz Felipe de Alencastro, por exemplo, diz que Lula e o PT consolidaram uma base eleitoral social-democrata inédita no país e que o pleito representou a vitória da "periferia social" sobre o "centro".
Embora todos sejam unânimes em dizer que o conjunto de escândalos e acusações sofridos pelo presidente não deve vir a representar nenhuma ameaça política para o exercício do mandato, muitos afirmam que eles contribuíram para a diminuição das esperanças contidas na atual vitória do PT. Para Boris Fausto, houve um "decréscimo da legitimidade" de Lula. (RAFAEL CARIELLO E FLÁVIA MARREIRO)

CARLOS RANULFO

Oposição tem que rever seus rumos

"A primeira eleição de Lula teve o significado forte de um projeto de esquerda que chegava ao poder. Vinha com uma expectativa e uma esperança muito grandes. Nesta eleição, aquela carga de expectativas e o significado do governo Lula foram matizados pela realidade. Tanto pela impossibilidade de implementar mudanças rápidas quanto pelos problemas que o governo enfrentou. A eleição de agora perde muito do efeito simbólico."

 

"Não vai haver um terceiro turno. O país entra num momento em que a oposição tem ela também que pensar sobre seus rumos. Raciocina-se aí como se só o governo Lula estivesse sob fogo. Não. Há os casos do péssimo desempenho eleitoral do PFL e das dissidências internas do PSDB. É um outro jogo político que começa. Muito mais complicada que os escândalos será a relação do governo Lula com o Congresso. É um cenário mais complicado do que o do primeiro mandato."

CARLOS RANULFO é cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais

BORIS FAUSTO

Presidente perdeu legitimidade

"A eleição de Lula, em 2002, foi recebida por seus eleitores com grande entusiasmo e a esperança de profundas mudanças socioeconômicas, muitas delas ilusórias. De qualquer modo, o clima era este. A eleição de 2006 representou uma preferência por Lula, mas sem despertar entusiasmo entre a massa de votantes e até na militância do PT. Ela votou, mas pouco participou da campanha. Mesmo no caso da oposição, o respeito pela figura de Lula e de seu partido, que existiu na primeira eleição, desapareceu na atual. Mantidas as coisas como estão, acredito que o governo tratará de seguir basicamente os rumos e os descaminhos atuais, com ajustes aqui e ali."

 

"É preciso esclarecer o que significa "terceiro turno". Golpe? Dado por quem? Nenhuma pessoa de responsabilidade na oposição está falando nisso. Quem lançou campanha golpista no passado foram alguns membros da cúpula do PT, entre eles o atual ministro Tarso Genro, e alguns intelectuais, que entoaram o "fora FHC". Isso não significa que acusações e escândalos, com a amplitude que têm, não devam ser investigados e julgados. Esses fatos e a opinião pública vão contribuir para um decréscimo da legitimidade do segundo mandato."

BORIS FAUSTO , historiador, preside o Grupo de Conjuntura Internacional, da USP

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

A periferia social venceu o centro

"A novidade histórica desta eleição é a vitória da periferia social sobre o centro. Apesar dos escândalos, o núcleo do eleitorado de Lula formado pelos trabalhadores, pelos negros e pelas camadas mais pobres não se abalou. O avanço do governo Lula foi a constituição de uma base eleitoral social-democrata, cujo perfil é parecido com o do Partido Democrata americano dos anos 60. Os apelos de FHC à "refundação" do PSDB e o trecho de sua carta afirmando que o PSDB precisa "reatar os fios entre o partido e a sociedade, buscar o diálogo com os sindicatos e movimentos populares" são o reconhecimento de que a reeleição de Lula introduz uma mudança civilizadora na política. O desafio do segundo mandato é inscrevê-la na sociedade brasileira."

 

"FHC encerrou este assunto declarando que essa história de "terceiro turno" é "golpismo". Mas as soluções dos problemas do governo e do PT continuam pendentes. A vitória de Yeda Crusius no Sul pode enfraquecer o projeto de "refundação" do PT nacional a partir do núcleo partidário gaúcho. No plano governamental, paira a ameaça da reversão de uma conjuntura econômica internacional que foi favorável no primeiro mandato."

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é professor de história do Brasil na Universidade de Paris

ISABEL LUSTOSA

Esquerda volta a apostar em Lula

"A grande virada da eleição neste segundo turno foi a entrada em cena novamente da esquerda e de setores da classe média que tinham se desiludido com o governo a partir dos escândalos. A grande mudança foi o pacto que Lula teve de fazer -que quem o apoiou espera que ele respeite- com algumas propostas históricas da esquerda. De certa forma, essa virada tem a ver com uma nova aposta da esquerda neste novo mandato. O grande barato do primeiro mandato foi a importância da pequena economia. Uma pequena política de distribuição de renda já provocou uma mudança considerável na qualidade de vida da população. O próximo passo deve ser a criação de emprego, a inserção dos jovens no mercado de trabalho."

 

"Não há qualquer perspectiva de golpe. As ações serão institucionais. Pode ser que a oposição continue nessa campanha de desmoralização de velhas personalidades da esquerda. Houve um enfraquecimento porque provou-se, pela reação do eleitorado, que esse tipo de campanha de caráter udenista que foi feito durante esse mandato não resultou no mesmo produto de 1954. Quando o Getúlio [Vargas] foi se candidatar em 1949, o Carlos Lacerda disse aquela frase: "Não pode se candidatar. Se se candidatar, não pode se eleger, e se se eleger, vamos derrubar". De fato, foi isso que aconteceu. Foram quatro anos infernais nos quais todas as coisas menores palacianas foram exploradas e acabaram na tragédia da rua Tonelero. Não há clima para isso, até pela eleição de dois governadores do PSDB, Serra e Aécio. O próprio PSDB tem de se reestruturar."

ISABEL LUSTOSA é cientista política e historiadora da Casa de Rui Barbosa (RJ)

LUIZ WERNECK VIANNA

Com "passivo", mudar é um risco

"Em 2002, esperava-se a grande mudança, e ela não veio. Agora, não há quem a espere, mas ela pode vir -na margem. Mudanças pragmáticas, mas não uma variação súbita. Eles não querem fazer a mudança e, sobretudo, não podem. Se mudar de forma abrupta, sem prestar atenção nas circunstâncias, o tema institucional pode vir a aparecer. Mudança [radical] é um risco que esse governo não pode correr, por causa de seu passivo. Não há apoio na sociedade para segurar. Você não segura mudança com o pessoal do Bolsa Família."

 

"O risco de terceiro turno vocês levantaram, e vocês mesmos desqualificaram. Aécio e Serra serão âncoras. Além do mais, não se pode deixar de reconhecer que a institucionalidade política brasileira conheceu mais um momento do seu processo de consolidação nessas eleições. A Carta de 1988 não foi objeto de questionamento por nenhum candidato. Esse é outro elemento para que o tema do terceiro turno seja rebaixado, o que não quer dizer que o processo judicial vá se interromper -nem que deva. O império do direito tem de ser a verdade, e as contingências da política não podem abalá-lo."

LUIZ WERNECK VIANNA é cientista político e professor do Iuperj

SEDI HIRANO

Esperança de 2002 desapareceu agora

"Essa eleição não traz nenhuma esperança, ao contrário de 2002, que trazia esperança na ética, e de que o Brasil teria uma política de baixo para cima. Estamos vivendo em um Brasil extremamente paradoxal, onde os extremos -os mais excluídos e os mais incluídos- fazem uma espécie de aliança diabólica perversa. No segundo mandato, creio que a política econômica seguirá a mesma."

 

"Não creio em terceiro turno, mas acho que o processo político, a curto e médio prazo, vai ter de encontrar soluções alternativas dentro do sistema republicano. É preciso criar um conjunto de mecanismos democráticos para que haja o controle da corrupção."

SEDI HIRANO , sociólogo, é pró-reitor de Cultura e Extensão da USP

AMÉLIA COHN

Sociedade elitista deu as caras

"Esta eleição acentua algo traduzido na campanha e na relação da sociedade: está vindo à tona, por parte das elites, uma radicalização, uma ira de classes. As manifestações que antes eram mais tranqüilas, com relação ao Lula, de falta de preparo para governar, agora vêm acompanhadas da questão da falsidade, de que ele não é confiável -parece uma coisa e é outra-, onde fica subtendido que "pobre e operário é assim mesmo". É a consolidação de que a classe de baixo pode governar e governar bem, apesar de todos os percalços e desvios que houve na gestão. Por outro lado, acho que a reação desesperada está trazendo à tona de uma maneira mais forte algo que é um traço da nossa sociedade elitista, patrimonialista."

 

"Não creio em terceiro turno."

AMÉLIA COHN é socióloga e professora da USP

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA

Em tese, governo poderá recomeçar

"Não vejo a possibilidade de uma mudança radical do primeiro para o segundo mandato do governo Lula. Em tese, no entanto, em um novo governo há chances de recomeço. Quero ter esperança de que haverá mudanças na política econômica, de que vai haver mudanças de cunho social -de que os programas da área, embora já tenham sido importantes, saiam dessa dimensão assistencialista. Mais do que esperança, eu tenho uma exigência: que Lula se desprenda desses quadros lesivos à nação, que se envolveram em esquemas obscuros. No segundo mandato, Lula deverá enfrentar algumas questões, entre elas a de uma política de segurança."

 

"Não creio. Se isso estivesse no horizonte, já teria acontecido. As instituições se fortaleceram. E ninguém vai querer um trauma dessa ordem, de investir contra um presidente legitimado pela maioria. Isso seria golpismo."

MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA é professora de sociologia da USP


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