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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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ESQUERDA NO DIVÃ

Contrariados com os rumos do governo, intelectuais oscilam entre a decepção aberta e a ponta de esperança

Lula provoca mal-estar na intelligentsia

FLÁVIA MARREIRO
GUILHERME BAHIA
DA REDAÇÃO

Ao apelo por "tensão ideológica" na academia e por compromisso com os rumos do país feito na última semana pelo ministro da Educação, Cristovam Buarque, Luiz Werneck Vianna devolveu uma provocação:
"O ministro não precisa se preocupar. O pensamento vai se radicalizar muito rapidamente no Brasil. Há muita desesperança no ar", disse o cientista político presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que até há pouco engrossava as fileiras dos intelectuais ligados à esquerda, que, mesmo com críticas, apoiavam o governo Lula.
O Orçamento 2004 e as declarações de que a política econômica não deve mudar azedam ainda mais a relação da "intelligentsia" petista com o governo às vésperas de completar um ano de gestão.
Há duas semanas, o mal-estar ganhou impulso com a ameaça de interpelação judicial do ministro da Casa Civil, José Dirceu, contra o sociólogo Francisco de Oliveira, um dos principais teóricos de esquerda do país e fundador do PT.
Dirceu se sentiu ofendido com a declaração de Oliveira em um seminário na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O sociólogo se referiu ao ministro como um "espertalhão" da política.
No lançamento do segundo número da revista "Margem Esquerda" (Boitempo Editorial), na última quarta-feira na USP, o assunto povoou todas as falas. "Não vou citar o nome do presidente porque posso ser processado", brincou Oliveira, que relançava também no evento o livro "A Crítica da Razão Dualista", acrescido do posfácio "O Ornitorrinco", no qual descreve a cúpula do PT como gestores de fundos de pensão mais empenhados em seguir modelos de gestão financeira do que em representar trabalhadores.
"Esqueça o PT, esqueça governo federal", convocou o filósofo Paulo Arantes no lançamento, ao defender que a esquerda na América Latina comece do zero a pensar uma agenda pós-neoliberalismo.
"É um vazio ideológico que está sendo preenchido por uma fraseologia nova, por um desenvolvimentismo requentado, por idéias requentadas de projeção nacional", disse Arantes em referência à política externa, uma das poucas áreas em que o governo arranca elogios na esquerda.

Reuniões periódicas
Oliveira e Arantes fazem parte, porém, de um grupo crítico do governo desde os primeiros passos do paloccismo. Mas outros sinais do desconforto também são visíveis, como no texto do último boletim da Fundação Perseu Abramo, do PT, que acende "sinal amarelo" para o presidente Lula.
A socióloga Maria Victoria Benevides, espécie de porta-voz dos intelectuais de esquerda que têm se reunido periodicamente com Lula e com a cúpula do governo, diz que há em todos os que fazem parte do grupo, em maior ou menor grau, um desconforto com a política econômica.
"O mal-estar está instalado", confirma a filósofa Olgária Matos, professora da USP. Com a ressalva: "Talvez ainda um mal-estar minoritário. Não é de uma hora para outra que se abandona um presidente. Agora, que existe um desconforto, existe". "Mas nós não perdemos a crença no governo", diz Maria Victoria.
Entre o grupo, há o sentimento de que a pressão dos movimentos sociais pode desviar o governo do "modelo neoliberal" e de que o canal para isso é propiciado pelo próprio governo. "Quando se verificou que Lula ia ganhar as eleições, o governo ficou um governo misto, com todos os segmentos representados, desde o grande capital até o MST", diz Olgária.
Embora creia que a contestação seja o motor que pode fazer o governo dar uma guinada à esquerda, "às vezes o pessoal não aceita críticas", diz o também filósofo Wolfgang Leo Maar, da Universidade Federal de São Carlos. "Mas essas críticas são boas. São fundamentais para que se evite aquele modelo fiscalista", acrescenta. Parece contraditório? Maar responde: "Há contradições no governo, e elas se resolvem na direção em que há mobilização social".
O momento atual é visto como de indefinição. Nada garante que a pressão social fará o governo se afastar da ortodoxia econômica. "É um impasse", descreve Olgária Matos. "Uma difícil travessia", define Maar. Maria Victoria aposta que as mudanças virão, "em menor ritmo do que esperávamos, mas virão". Outro participante do grupo, o filósofo Renato Janine Ribeiro, também critica a demora para mudar: "O PT sempre foi o partido da impaciência".
A heterogeneidade de pensamento, que o grupo de Maria Victoria vê como qualidade, para o economista Reinaldo Gonçalves, da UFRJ, significa que o governo "não tem muita estratégia, fica respondendo às circunstâncias". Segundo ele, isso mostra que o PT "não tem um projeto de sociedade, só um projeto de poder."
Paulo Arantes evoca o processo de formação do partido para explicar: "Ele [o PT] pautou seu crescimento pela indefinição estratégica e ideológica de um programa partidário".
Irônico, Gonçalves diz que não está decepcionado. "Só se decepciona quem tinha ilusão. Como eu não tinha ilusão, também não me decepciono."



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