São Paulo, quarta-feira, 30 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO/ PELA CASSAÇÃO

Pisavam nos astros, distraídos...

CÉSAR BENJAMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Leio na coluna de Eliane Cantanhêde, publicada em 25 de novembro, que "Brasília está em pé de guerra". Sinto, mais uma vez, o abismo que separa, de um lado, o caráter épico do nosso noticiário político, recheado de metáforas militares -ofensiva, defensiva, mobilização, fogo cruzado, recuo, contra-ataque-, e, de outro lado, a absoluta desimportância da política brasileira atual, quando julgada à luz dos grandes problemas nacionais.
A Amazônia queima, as escolas continuam a despejar nas ruas legiões de analfabetos funcionais, o Brasil perde posições no mundo (já fomos a oitava, somos hoje a décima quarta economia industrial). Mas há meses, na capital da República, não se faz outra coisa senão um imenso acerto de contas entre grupos que disputam e compartilham o poder. A política brasileira ficou insuportavelmente pequena. Os políticos, cada vez mais, fazem teatro e governam a si próprios. O Brasil está à deriva.
Um governo deve ser julgado não só pelo que faz, mas pela agenda de questões que propõe e transmite ao país. Debateu-se muito, no segundo governo Vargas, a criação da Petrobras e do BNDE (hoje BNDES). O Plano de Metas e a construção de Brasília produziram grande polêmica, sob JK. Jango foi derrubado pelas reformas de base que se propunha fazer.
O grande debate que o governo do PT legou à nação, e que nos paralisará por mais um ano, é se Lula e José Dirceu conheciam o "mensalão".
Eles juram que não. Os esquemas eram coisa do doutor Delúbio. Não tenho como desmentir essa afirmação. Porém, se Delúbio captava o dinheiro sozinho, por sua conta e risco, então tinha de decidir sozinho como gastá-lo. Pois ninguém pode ser chamado a opinar sobre o uso de recursos cuja existência desconhece.
O que Lula e Dirceu estão dizendo é que nunca foram informados sobre essas dezenas ou centenas de milhões de reais que transitavam pela instituição que dirigiam, ou imaginavam dirigir. Nunca desconfiaram que esses milhões existiam. Talvez seja uma boa estratégia de defesa nos tribunais. Porém, convenhamos: é humilhante.
Há inúmeras confissões, vindas de gente que não se conhecia, todas ligadas, de uma forma ou de outra, ao próprio PT. Elas falam de acontecimentos separados no espaço e no tempo, mas complementares e coerentes entre si. Há verossimilhança entre essas confissões e fatos já apurados. Há rastreamento de contas bancárias. Mas Lula e Dirceu insistem que não há provas. O artifício é o mesmo usado por Paulo Maluf: negação infinita, associada à exigência, sempre renovada, de um nível cada vez mais alto de prova, até a prova absoluta, que se sabe, de antemão, jamais será obtida.
Nenhuma afirmação que se refira a fatos pode situar-se além de qualquer dúvida, pois a realidade nunca pode ser completamente exaurida. É uma limitação da nossa condição humana e de como se organiza o universo em que vivemos. Verdade plena e incontroversa só existe, se existir, no mundo abstrato da lógica, que nós inventamos com a imaginação.
A versão de que os líderes do PT eram apenas gente distraída se insere em uma seqüência de argumentos pueris usados pelos intelectuais lulistas.
Eles repetem acusações genéricas contra a imprensa, que servem para sustentar um raciocínio circular: se nada for denunciado, é porque o governo é honesto; se houver alguma denúncia, é porque a imprensa burguesa é um antro de conspirações. Reivindicam assim, implicitamente, que a esquerda ocupe uma posição intocável, acima da opinião pública e da lei.
Na defesa do governo Lula destacam, antes de tudo, o que ele não fez: não privatizou a Petrobrás, não assinou o tratado da Alca e assim por diante. Trata-se de um critério infinitamente elástico e, por isso, ilegítimo: sempre haverá algo ruim que um governo (ou uma pessoa) não fez. Fernando Henrique também não privatizou a Petrobrás, o governo Bush não invadiu a Venezuela e Fernandinho Beira-Mar não matou Dana de Teffé.
Discursam sobre a luta do bem contra o mal, anunciando coisas escatológicas se o PT perder o poder. Usam a mesma argumentação, ao avesso, que os tucanos usaram durante anos contra o próprio PT: se eles vencerem, será o caos. Não é verdade. Será apenas a continuidade do que aí está, pois PT e PSDB têm o mesmo projeto para o Brasil; a falsa polarização serve muitíssimo bem aos dois lados. A mancebia, sabemos hoje, chegou ao ponto de ambos os grupos compartilharem os mesmos esquemas de corrupção.
(Foi Leibniz quem enunciou o princípio da unidade dos indiscerníveis, que tem a simplicidade das verdades profundas: se não podemos estabelecer diferenças entre duas coisas quaisquer, devemos admitir que elas são uma só.)
Estamos assistindo ao ocaso de uma operação política iniciada há cerca de 15 anos, quando Lula e José Dirceu começaram a esvaziar o potencial militante do PT para transformar o partido em uma máquina eleitoral tão formidável quanto inofensiva. Lula precisava disso para realizar o seu sonho: chegar ao poder apoiado pelas elites, e não contra elas, como finalmente ocorreu em 2002.
Nesse processo, Dirceu mostrou habilidade negociadora, capacidade de liderança e disposição para o trabalho, além de falta de escrúpulos. Cercou-se de "operadores" e, até recentemente, nunca deixou margem a dúvidas sobre quem exercia o comando. Sua atuação encontrou campo fértil entre milhares de pessoas que passaram a ver nesse projeto uma oportunidade de ascensão social por meio da política. Dirigir o PT, nos últimos anos, foi gerenciar ambições. Lula e Dirceu se especializaram nisso e consolidaram a burocracia petista.
Não ficarei feliz se José Dirceu vier a ser cassado. Por ele mesmo, que não é uma pessoa medíocre e, até onde posso ver, não enriqueceu; pela nossa geração; pelos sonhos que um dia sonhamos juntos. Mas reconheço que esse desenlace, se ocorrer, terá sido uma conseqüência das opções que fez e da trajetória que escolheu. Uma trajetória baseada na truculência, na esperteza e no marketing, armas históricas dos nossos adversários, que desassociaram a luta pelo poder e a luta coletiva, consciente, compartilhada, pela transformação da sociedade em que vivemos.
Quando me opus a esse caminho fui chamado, pejorativamente, de idealista. Fazer esse jogo, dizia-se, era essencial para chegar lá. Anos depois, quando eles finalmente triunfaram, já não queriam nem podiam transformar mais nada. A vida os transformara em outra coisa, e a teia de compromissos já era grande demais. Como eu defendia, o êxito dessa estratégia era, ao mesmo tempo, o fracasso da nossa proposta.
Lula e Dirceu lançaram a esquerda brasileira na maior crise da sua história, esvaziando-a de utopia. Luto para que a esquerda sobreviva a essa tragédia e, se possível, aprenda com ela. Burrice e hipocrisia podem ser um lenitivo para almas ingênuas, mas só preparam novas derrotas. É preciso pensar com seriedade e encarar a verdade.


César Benjamin é editor e autor de "A opção brasileira" (Contraponto, 1998, nona edição) e "Bom combate" (Contraponto, 2004)


Texto Anterior: Cassação pode ser votada hoje, após 3 adiamentos
Próximo Texto: Escândalo do "mensalão"/A hora de Dirceu: Escritor bate em Dirceu com bengala
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.