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ARTIGO/ PELA CASSAÇÃO
Pisavam nos astros, distraídos...
CÉSAR BENJAMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Leio na coluna de Eliane
Cantanhêde, publicada em
25 de novembro, que "Brasília está em pé de guerra". Sinto, mais
uma vez, o abismo que separa, de
um lado, o caráter épico do nosso
noticiário político, recheado de
metáforas militares -ofensiva,
defensiva, mobilização, fogo cruzado, recuo, contra-ataque-, e,
de outro lado, a absoluta desimportância da política brasileira
atual, quando julgada à luz dos
grandes problemas nacionais.
A Amazônia queima, as escolas
continuam a despejar nas ruas legiões de analfabetos funcionais, o
Brasil perde posições no mundo
(já fomos a oitava, somos hoje a
décima quarta economia industrial). Mas há meses, na capital da
República, não se faz outra coisa
senão um imenso acerto de contas entre grupos que disputam e
compartilham o poder. A política
brasileira ficou insuportavelmente pequena. Os políticos, cada vez
mais, fazem teatro e governam a si
próprios. O Brasil está à deriva.
Um governo deve ser julgado
não só pelo que faz, mas pela
agenda de questões que propõe e
transmite ao país. Debateu-se
muito, no segundo governo Vargas, a criação da Petrobras e do
BNDE (hoje BNDES). O Plano de
Metas e a construção de Brasília
produziram grande polêmica, sob
JK. Jango foi derrubado pelas reformas de base que se propunha
fazer.
O grande debate que o governo
do PT legou à nação, e que nos paralisará por mais um ano, é se Lula e José Dirceu conheciam o
"mensalão".
Eles juram que não. Os esquemas eram coisa do doutor Delúbio. Não tenho como desmentir
essa afirmação. Porém, se Delúbio captava o dinheiro sozinho,
por sua conta e risco, então tinha
de decidir sozinho como gastá-lo.
Pois ninguém pode ser chamado
a opinar sobre o uso de recursos
cuja existência desconhece.
O que Lula e Dirceu estão dizendo é que nunca foram informados
sobre essas dezenas ou centenas
de milhões de reais que transitavam pela instituição que dirigiam,
ou imaginavam dirigir. Nunca
desconfiaram que esses milhões
existiam. Talvez seja uma boa estratégia de defesa nos tribunais.
Porém, convenhamos: é humilhante.
Há inúmeras confissões, vindas
de gente que não se conhecia, todas ligadas, de uma forma ou de
outra, ao próprio PT. Elas falam
de acontecimentos separados no
espaço e no tempo, mas complementares e coerentes entre si. Há
verossimilhança entre essas confissões e fatos já apurados. Há rastreamento de contas bancárias.
Mas Lula e Dirceu insistem que
não há provas. O artifício é o mesmo usado por Paulo Maluf: negação infinita, associada à exigência,
sempre renovada, de um nível cada vez mais alto de prova, até a
prova absoluta, que se sabe, de
antemão, jamais será obtida.
Nenhuma afirmação que se refira a fatos pode situar-se além de
qualquer dúvida, pois a realidade
nunca pode ser completamente
exaurida. É uma limitação da nossa condição humana e de como se
organiza o universo em que vivemos. Verdade plena e incontroversa só existe, se existir, no mundo abstrato da lógica, que nós inventamos com a imaginação.
A versão de que os líderes do PT
eram apenas gente distraída se insere em uma seqüência de argumentos pueris usados pelos intelectuais lulistas.
Eles repetem acusações genéricas contra a imprensa, que servem para sustentar um raciocínio
circular: se nada for denunciado,
é porque o governo é honesto; se
houver alguma denúncia, é porque a imprensa burguesa é um
antro de conspirações. Reivindicam assim, implicitamente, que a
esquerda ocupe uma posição intocável, acima da opinião pública
e da lei.
Na defesa do governo Lula destacam, antes de tudo, o que ele
não fez: não privatizou a Petrobrás, não assinou o tratado da Alca e assim por diante. Trata-se de
um critério infinitamente elástico
e, por isso, ilegítimo: sempre haverá algo ruim que um governo
(ou uma pessoa) não fez. Fernando Henrique também não privatizou a Petrobrás, o governo Bush
não invadiu a Venezuela e Fernandinho Beira-Mar não matou
Dana de Teffé.
Discursam sobre a luta do bem
contra o mal, anunciando coisas
escatológicas se o PT perder o poder. Usam a mesma argumentação, ao avesso, que os tucanos
usaram durante anos contra o
próprio PT: se eles vencerem, será
o caos. Não é verdade. Será apenas a continuidade do que aí está,
pois PT e PSDB têm o mesmo
projeto para o Brasil; a falsa polarização serve muitíssimo bem aos
dois lados. A mancebia, sabemos
hoje, chegou ao ponto de ambos
os grupos compartilharem os
mesmos esquemas de corrupção.
(Foi Leibniz quem enunciou o
princípio da unidade dos indiscerníveis, que tem a simplicidade
das verdades profundas: se não
podemos estabelecer diferenças
entre duas coisas quaisquer, devemos admitir que elas são uma só.)
Estamos assistindo ao ocaso de
uma operação política iniciada há
cerca de 15 anos, quando Lula e
José Dirceu começaram a esvaziar
o potencial militante do PT para
transformar o partido em uma
máquina eleitoral tão formidável
quanto inofensiva. Lula precisava
disso para realizar o seu sonho:
chegar ao poder apoiado pelas elites, e não contra elas, como finalmente ocorreu em 2002.
Nesse processo, Dirceu mostrou habilidade negociadora, capacidade de liderança e disposição para o trabalho, além de falta
de escrúpulos. Cercou-se de "operadores" e, até recentemente,
nunca deixou margem a dúvidas
sobre quem exercia o comando.
Sua atuação encontrou campo
fértil entre milhares de pessoas
que passaram a ver nesse projeto
uma oportunidade de ascensão
social por meio da política. Dirigir
o PT, nos últimos anos, foi gerenciar ambições. Lula e Dirceu se especializaram nisso e consolidaram a burocracia petista.
Não ficarei feliz se José Dirceu
vier a ser cassado. Por ele mesmo,
que não é uma pessoa medíocre e,
até onde posso ver, não enriqueceu; pela nossa geração; pelos sonhos que um dia sonhamos juntos. Mas reconheço que esse desenlace, se ocorrer, terá sido uma
conseqüência das opções que fez e
da trajetória que escolheu. Uma
trajetória baseada na truculência,
na esperteza e no marketing, armas históricas dos nossos adversários, que desassociaram a luta
pelo poder e a luta coletiva, consciente, compartilhada, pela transformação da sociedade em que vivemos.
Quando me opus a esse caminho fui chamado, pejorativamente, de idealista. Fazer esse jogo, dizia-se, era essencial para chegar lá.
Anos depois, quando eles finalmente triunfaram, já não queriam
nem podiam transformar mais
nada. A vida os transformara em
outra coisa, e a teia de compromissos já era grande demais. Como eu defendia, o êxito dessa estratégia era, ao mesmo tempo, o
fracasso da nossa proposta.
Lula e Dirceu lançaram a esquerda brasileira na maior crise
da sua história, esvaziando-a de
utopia. Luto para que a esquerda
sobreviva a essa tragédia e, se possível, aprenda com ela. Burrice e
hipocrisia podem ser um lenitivo
para almas ingênuas, mas só preparam novas derrotas. É preciso
pensar com seriedade e encarar a
verdade.
César Benjamin é editor e autor de "A
opção brasileira" (Contraponto, 1998,
nona edição) e "Bom combate" (Contraponto, 2004)
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