São Paulo, sábado, 30 de dezembro de 2006

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A PESSOA

O "sapo barbudo" que "as elites" iam "ter que engolir" foi uma imagem elaborada em mais de 20 anos por uma linha reta, clara e original de vida pública. Ditada por boa dosagem de intuição, inteligência e justificado ressentimento, não por ideologia, e sem partidarismo até lançar o seu próprio partido. Quando o "Lulinha paz e amor" superou o "sapo barbudo", transpondo obstáculos que barraram a chegada do outro ao poder, não se podia dizer que a inovação na forma correspondesse a uma transformação de fundo. No essencial, nada de novo. E, nos modos e meios, tudo indicava tratar-se da percepção dos caminhos para as inovações - "as mudanças" - sem conflito. Não parecia que "Lulinha paz e amor" significava, além da substituição dos confrontos por consensos políticos, a substituição dos velhos por novos amores.
Passada primeira semana de governo, Lula mostraria outra novidade que vinha para ficar. Levou uma caravana de 28 ministros "para ver a pobreza" no Nordeste, como se alguém no Brasil não soubesse como e onde é a vida de miséria. Era o Lula demagogo que se apresentava ao país. E, com discursos típicos de candidato, já nesse décimo dia de presidente dava início à sua atividade mais intensa nos quatro anos que se seguiriam: a campanha pela reeleição.
O primeiro mês de governo foi um choque. Não no sentido da "mudança" que Lula defendera por 20 anos, com mais agressividade do que ninguém naquele período. O choque atingia os eleitores em geral com o mesmo pasmo. Uns, por sentimentos tumultuosos; outros, por alívio. Ambos, por constatarem que a mudança era em Lula. A esperança e o medo trocavam de lado.
Antes que o primeiro mês terminasse, Lula, Antonio Palocci, José Dirceu e José Genoino decidiam "endurecer com os dissidentes", ou seja, com os petistas que não renegavam o partido nem os compromissos eleitorais de Lula. Logo a senadora Heloísa Helena era objeto de "advertência pública", por faltar à eleição do aliado José Sarney para a presidência do Senado, e Dirceu e Genoino começavam a articular no PT o expurgo de inconformados. Os deputados João Fontes e Luciana Genro serviram de antepasto do canibalismo partidário, por divulgarem um discurso em que Lula acatava alterações na Previdência que, chegado ao poder, se tornavam a sua primeira proposta de "reforma".
A fidelidade que faltou em relação a 20 anos de pregação e às promessas eleitorais mostrou-se impecável, nos últimos 47 meses, ao que o novo Lula prenunciou no primeiro mês. Com uma ressalva: Lula passou a figurar entre os discursadores de Brasília que menos ferem a gramática, e hoje domina um vocabulário, inclusive técnico, muito acima da média nos partidos. Mas o deslumbramento com as maravilhas do Poder não parou de se agravar. A vaidade explodiu em proporções fernandianas. E a ética pessoal foi-se.
Lula tornou-se capaz das afirmações mais contraditórias e inverossímeis, quando não inverdades com evidente consciência de que o são. A um discurso para banqueiros e outros grandes empresários, louvando-os e às políticas que os alegram, segue-se, com toda a naturalidade, um discurso suarento de ferozes ataques aos banqueiros e grandes empresários, a "elite deste país". A idealização do operário-presidente chocou-se com ambições e satisfações pessoais que identificam os governantes mais convencionais em nossa planície política.
O Lula inconformado e exigente transfigurou-se, uma vez revestido do Poder, em um Lula passivo, periférico do Poder, pouco interessado nos problemas. Foi esse o espírito que transmitiu ao governo, com exceção de poucos recantos, o imobilismo e o conformismo conservador.


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