São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

ADRIANA PISCITELLI

Antropóloga que estudou casos em Fortaleza e na Itália diz que relações não se resumem à prostituição

Turismo sexual envolve amor, sonho de casamento e ascensão

MAYRA STACHUK
DA REPORTAGEM LOCAL

Exploração, prostituição, pedofilia, tráfico de mulheres. O turismo sexual internacional no Brasil está cercado de estigmas que, para a antropóloga Adriana Piscitelli, da Unicamp, são simplistas demais para o que, na prática, isso realmente representa.
Piscitelli passou nove meses em campo para entender o que permeia as relações entre jovens brasileiras e turistas estrangeiros. A cidade escolhida foi Fortaleza, uma das principais rotas desse tipo de turismo no país, junto com Recife, Salvador, Natal e Rio de Janeiro. Entrevistou 75 pessoas, entre garotas, estrangeiros e agentes vinculados ao turismo ou à prostituição no local, e concluiu que o tema é complexo a ponto de envolver amor, sonho de casamento e oportunidades melhores.
A antropóloga fez parte da pesquisa na Itália, região da qual vem parte importante dos turistas sexuais e onde, durante dois meses, acompanhou a vida de garotas que migraram com estrangeiros.
O resultado da pesquisa da antropóloga vai virar um livro em breve, sob o título "Circuitos do Desejo", com previsão de lançamento para este semestre. Leia abaixo trechos da entrevista.

Folha - Qual a diferença entre turismo sexual e prostituição?
Adriana Piscitelli -
No Brasil, há uma tendência a considerar o turismo sexual o mesmo que prostituição e abuso sexual de crianças, pedofilia. É uma maneira muito simplista de se referir ao tema. Na verdade, o turismo sexual não pode ser vinculado exclusivamente à prostituição. As práticas se cruzam em um certo ponto, mas o turismo sexual a extrapola.

Folha - Então exatamente o que é o turismo sexual?
Piscitelli -
Os viajantes à procura de sexo querem mulheres que façam programa e também mulheres que não façam. Não é apenas troca de sexo por dinheiro. Há uma romantização, há um jogo de conquista e, às vezes, até sentimentos. A pesquisa me levou a questionar o conteúdo que nós damos à palavra prostituição. Por exemplo, uma moça de classe média que se relaciona com um estrangeiro e é convidada por ele a visitá-lo na Europa, ganha a passagem e um celular, nós não pensamos que está fazendo prostituição. Mas uma garota, por exemplo uma garçonete que recebe presentes de um estrangeiro, é imediatamente vista como uma garota de programa. Então exatamente o que é prostituição? É a troca de sexo por dinheiro? E por que troca de sexo por dinheiro de maneira não imediata para a classe média não é visto como prostituição e para a classe baixa sim?

Folha - Você chegou a essa resposta com a pesquisa?
Piscitelli -
Não. Mas acho importante levantar esse questionamento. No campo que pesquisei, definitivamente não há apenas a prostituição profissional. Para trabalhar de maneira analítica, fiz uma delimitação entre as moças que faziam programa no sentido de contrato explícito e as que não faziam programa. Dizer que as meninas de camadas baixas que aceitavam presentes ou viagens estavam fazendo prostituição oculta seria uma barbaridade quando se tem o mesmo nas camadas médias.

Folha - Existe um perfil mais comum de garotas que se envolvem com estrangeiros?
Piscitelli -
A maioria é jovem, entre 20 e 30 anos, de classe média baixa e classe baixa. Encontrei algumas com 16, 17, e carteira de identidade falsa de 18 anos, mas são minoria na região em que pesquisei.

Folha - Qual o perfil dos turistas sexuais que vêm ao Brasil?
Piscitelli -
Em Fortaleza, a maioria é heterossexual e mais jovem, na casa dos 20, 30 anos. Há os mais velhos e há os pedófilos, mas estes são minoria. Italianos são a maioria daqueles que convidam as garotas locais para viajar com eles, mas há também portugueses, holandeses e americanos. A globalização e a "transnacionalização" dos vôos modificaram a geografia da sexualidade.

Folha - Que tipo de sonhos elas têm em relação aos estrangeiros?
Piscitelli -
As diferenças, em termos das motivações pelas quais elas se relacionam com os estrangeiros, variam de acordo com a classe social e a idade das mulheres. Mas o sonho de casar com estrangeiros é uma idéia geral do universo feminino de todas as classes sociais. É uma idealização do estrangeiro e uma desmoralização do homem local.

Folha - Que tipo de desmoralização?
Piscitelli -
Dizem que os estrangeiros são mais românticos, mais generosos, mais fiéis. Na verdade, tudo o que elas dizem que eles fazem eles fazem mesmo. Mandam flores, presentes, preparam café da manhã, assim como qualquer homem que quer conquistar. O que não deixa de ser uma atitude de sedução para obter sexo.

Folha - Você foi à Itália no ano passado entrevistar o mesmo grupo de garotas com quem havia falado em Fortaleza. Essa visão continuou lá? Qual a realidade dessas moças na Itália?
Piscitelli -
O contexto muda completamente. Aquela visão romantizada não existia mais. Eles não eram mais tão bonitos como eram aqui, nem tão ricos quanto pareciam. Muitos são de classe média. As moças que entrevistei na Itália, que eram de Fortaleza, se ocupam de praticamente de todos os trabalhos domésticos sozinhas, com exceção do supermercado. E, além disso, trabalham fora para poderem mandar dinheiro para o Brasil, para a família. Todas as que conheci de camadas média baixa e baixa têm uma interação intensa com o Brasil e muito desejo de ter uma mobilidade social aqui. Então fazem todos os esforços para isso, para, quando vierem para cá, poderem mostrar que "deram certo" lá.

Folha - A maioria das que foram conseguiram se casar e formar família?
Piscitelli -
Do universo com o qual eu trabalhei, sim. Entrevistei moças que tinham conhecido italianos em Fortaleza e os visitaram como se estivessem fazendo programa por um determinado tempo e depois voltavam trazendo dinheiro. Outras que conseguiam apenas presentes e roupas de grife e voltaram sem dinheiro nenhum. As que ficaram lá formaram família. Apenas uma afirmou que amava o marido, e isso era visível. As outras disseram ter carinho, gratidão. Quando elas não conseguem casar, geralmente voltam. Por isso digo que nem todo o universo vinculado ao turismo sexual pode ser considerado prostituição e nem prostituição profissional. Na viagem que fiz à Espanha, no fim do ano passado, para um alargamento dessa pesquisa, falei com moças que já faziam programas aqui e foram para lá para continuar fazendo nas mesmas condições, mas para ganhar em euro. É diferente.

Folha - E as que casaram? Que vida têm na Itália?
Piscitelli -
Elas têm um controle enorme em cima delas, pairando sempre o estigma de que podem ter sido prostitutas, principalmente para a família dos maridos. O controle acontece de todos os lados. Elas têm de trabalhar, mas é sempre na loja da família, no supermercado de um amigo, sempre sendo vigiadas. O policiamento corporal também é forte, decotes são censurados. As brasileiras são valorizadas de maneira positiva como sensuais, bonitas, carinhosas. Mas há fantasmas que anulam essa valorização. Um deles é o da exploração econômica e outro, o da infidelidade.

Folha - E mesmo assim elas ficam?
Piscitelli -
Elas me explicaram que muitas vezes se tem uma idéia romantizada da autonomia e da liberdade. Morando em Fortaleza, elas eram mais livres, mas às vezes passavam a noite inteira trabalhando e acabavam na cama com alguém por uma pizza. Não tinham a possibilidade de fazer projetos para o futuro e isso é o que elas mais prezam lá. Então elas ponderam: a liberdade que tinham aqui valia exatamente o quê?

Folha - Esse tipo de turismo sexual que você observou é recente?
Piscitelli -
Passo os verões em Fortaleza desde 1985 e fui acompanhando a transformação da cidade em termos turísticos nesses anos. Eu via muito mais cenas de turistas estrangeiros com crianças no início dos anos 90. Hoje, isso diminuiu. Mas não há outra pesquisa acadêmica sobre o tema que possa gerar uma comparação.

Folha - O que você pensa do turismo sexual? Deve ser combatido? De que maneira?
Piscitelli -
Acho que é muito importante problematizar as questões do turismo sexual, da prostituição, da exploração infantil e enxergá-las com a complexidade que realmente têm. Não são apenas turistas malvados que vêm atrás dessas mulheres. Eles são recebidos, quando não se trata de pedófilos, claro, de braços abertos, e eu acho que essa é a parte que é necessário entender. O que leva a essa oferta?

Folha - E as campanhas de prevenção contra o turismo sexual? São efetivas?
Piscitelli -
As campanhas são importantes, sobretudo, quando se quer proteger a população infanto-juvenil. Mas querer prevenir o turismo sexual, pensando que é apenas prostituição, está errado. Oferecer treinamento como manicure não é suficiente. A maioria das entrevistadas de camada média baixa já eram manicures, cabeleireiras, garçonetes e o máximo que ganhavam era R$ 500, o que consideravam insuficiente.


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