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O golpe inequívoco via telex
JANIO DE FREITAS
DO CONSELHO EDITORIAL
Em torno do meio-dia, era cedo
ainda para o encontro marcado
com o economista Gilberto Paim,
um dos tantos egressos do Partido
Comunista que, à época, ainda se
identificavam com várias das posições nacionalistas e, digamos,
progressistas. Nem havia muito o
que escolher, era um lado ou outro, por maiores que fossem as
ressalvas. Resolvi fazer hora conversando com Raimundo Wanderley Reis, era só entrar no Banco Nacional, ali mesmo na esquina de Ouvidor com Rio Branco, e
subir ao quarto andar. Os amigos
gostavam de saber as novidades
de minha ocupação naqueles meses -estava montando um novo
jornal. Encontrei Raimundo com
ares mais confidentes do que
nunca: me mostrou a cópia de
uma mensagem que o encarregado do telex lhe contrabandeara,
antes de mandá-la ao destinatário
na direção do banco.
À 1h, Paim e eu entrávamos no
Conselho de Segurança Nacional,
que era a instância central no sentido então muito amplo de segurança e de nacional. Desde algum
tempo, me interessara por estudar os processos
de comunicação
subliminar, ou seja, de apreensão
sem plena consciência da própria
apreensão, e, bem
a propósito, a
meio daqueles
dias tumultuosos
me soara um alarme. Espanhol que
por anos viveu no
Brasil e fizera algumas experiências de subliminar
nos estúdios da
(extinta) TV Rio,
meu amigo Carlos
Pedregal me procurara excitado
por um fato estranho: fora contatado por um certo
Enaldo Cravo Peixoto, que se mostrava interessado
no assunto da subliminar. Mais do
que integrante do
governo lacerdista
da Guanabara,
Enaldo era participante do círculo extremado de
Carlos Lacerda. Falei a algumas
pessoas de quanto isso me deixou
preocupado, e Gilberto Paim contatou um amigo do Conselho ao
qual sugeria que eu alertasse. Era
o caso, sem dúvida.
Fui sucinto e cauteloso. E não
precisava ser mais do que isso: o
coronel me ouvia com o misto de
suficiência e indiferença de quem,
autoridade, não tem a menor
idéia do que está ouvindo, sequer
parecia conhecer a palavra subliminar. Melhor assim, porque minha preocupação já era outra.
- E a rebelião em Minas, em
que pé está, coronel?
- Rebelião?
- É. Rebelião militar.
Tinha certeza de estar tudo calmo, mas fez um telefonema.
- Falei com a Segunda Seção
do Primeiro Exército [A Segunda
Seção é a de informações]. Não há
nada. Está tudo calmo.
- É melhor falar com outros
também, coronel, porque há, sim.
As tropas do Exército rebelaram-se em Belo Horizonte hoje de manhã e saíram dos quartéis.
Não imaginaria, jamais, ser necessário informar a principal instância da segurança nacional, o
cerne do tão falado "dispositivo
militar" do Jango, de que o país
estava sendo sublevado. Mas a caminho do elevador já levava todo
o dramático sentido do que me
dissera dias antes, melancólico e
tenso, o coronel Donato Machado, talvez o mais lúcido militar
dos que me tornei amigo: "Não há
dispositivo militar nenhum, o Assis Brasil não montou dispositivo
coisa nenhuma. A direita vai dar o
golpe. E ganha" [Assis Brasil, general chefe do gabinete militar da
Presidência, era dado como articulador de um dispositivo imbatível, que levava o seu nome e só esperava "a direita pôr a cabeça de
fora", como ele dizia].
O golpe estava lá, claro, determinado, inequívoco, no telex em
que Magalhães Pinto, governador
de Minas, comunicava ao sobrinho e diretor-regional do seu
banco, José Luiz Magalhães Lins,
que a rebelião começara e deviam
ser tomadas as providências convenientes. Semanas mais tarde,
quando os militares contrários ao
golpe começaram a sair da prisão,
tive dos coronéis Donato, Joaquim Ignácio Cardoso, Kardec
Leme e outros, a explicação para o
alheamento do Conselho no dia
31: os oficiais do golpe usaram de
diferentes artifícios para manter
os oficiais pró-governo ocupados
à distância de telefones, rádios e
de outros colegas, enquanto fosse
possível. Foi possível pela maior
parte do dia. Mas de nada adiantaria estarem informados, porque
o "dispositivo militar" de Jango
era só uma fantasia do general Assis Brasil, um militar de vida pacata que se deixara fascinar pelas
tentações fáceis
de Brasília.
A falta do "dispositivo" não
quer dizer que o
golpe fosse incontível. O coronel
Heitor Linhares,
que descera com
as tropas de Minas para o Rio, em
narrativas a José e
Maria Yedda Linhares e a mim,
contava que os
soldados debandaram, em pânico, pelas terras à
margem da estrada, e foi difícil recompor a ordem.
Tinham se apavorado com o aparecimento de nada
mais do que um
teco-teco da Líder
Taxi-Aéreo, emissário de Magalhães Pinto para
informá-lo da altura em que estavam os rebelados
a caminho do Rio.
Foi a constatação desse estado
da tropa, feita depois em um vôo a
jato, que levou o coronel Ruy Moreira Lima, comandante do 1º
Grupo de Caça, a uma proposta a
Jango, quando lhe levou no Palácio das Laranjeiras o relato de seu
vôo de observação: bastaria uma
bomba lançada na estrada, à frente da tropa, para acabar com a rebelião sem ferir ninguém. Comandante da 3ª. Zona Aérea no
Rio, o brigadeiro Francisco Teixeira, identificado como um dos
militares ligados ao Partido Comunista, convenceu Jango a recusar a sugestão. Segundo o coronel
Heitor Linhares, a soldadesca,
quase toda já à espera de dar baixa
do serviço militar, teria reagido
como Moreira Lima previra.
Depressa me convenci de que a
tese generalizada de mais uma intervenção rápida dos militares,
como as tantas anteriores, daquela vez estava errada. Eles queriam
ficar, portadores de uma carga de
ódio sem precedente. Senti o dever sufocante de convencer Mário
Wallace Simonsen (dono da TV
Excelsior, da Panair e de um jornal em São Paulo, "A Nação", que
Cláudio Abramo e Roberto Gusmão tentavam recompor) de que
não devíamos continuar com a
montagem do novo jornal. O prédio esplêndido foi vendido, máquinas foram vendidas ou tiveram interrompida sua aquisição.
Íamos associar a empresa de um
empreendedor avançado e uma
cooperativa de jornalistas, em torno de um jornal cujo modelo
mesmo hoje seria inovador. Essa,
porém, foi uma frustração insignificante, entre as tantas outras,
inclusive de vidas, que militares
facinorosos levariam sua ditadura
a causar.
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