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INCONSCIENTE ELEITORAL
O brilho da lua nas noites de agosto
MARCELO COELHO
A seriedade quase fúnebre,
a calva, as olheiras, os olhos
enormes como lâmpadas atarraxadas no soquete. José Serra tem
um ar de "família Addams" que,
sem dúvida, dificulta a sua candidatura. A propaganda do candidato tucano sabe disso, e trata
com cuidado estratégico da tonalidade de sua maquiagem facial.
Na televisão, Serra aparece sorrindo, é claro, enquanto transita
pelas fileiras de populares e de
apaniguados; em momentos de
maior descontração, é quase possível vê-lo ensaiar o simpático
gesto do "barra-limpa".
Mas esse esforço não se sustenta
muito. Nos primeiros programas,
Serra apresentava o seu projeto
de combate ao desemprego. Alguém decidiu que o nome desse
projeto seria "Segunda-Feira".
Existe algo mais enfarruscado,
mais paulistano, mais impopular
do que uma segunda-feira?
Ah, não faz mal. O candidato
sabe desse problema, e prevê a objeção do eleitor. Diz algo do tipo:
sabemos, claro, que segunda-feira
é um negócio chato, mas será de
alegria para toda pessoa que está
procurando emprego e não consegue. O eleitor fica, assim, esclarecido. Mas nada indica que também fique convencido -muito
menos interessado ou empolgado.
De alguma forma, o discurso
eleitoral de Serra segue um modelo racional-argumentativo. Não
sei, é claro, se há lógica ou consistência na promessa de criar 8 milhões de novos empregos. Mas o
caso do "projeto segunda-feira"
exemplifica, a meu ver, um jeito
"acadêmico" de raciocinar: o discurso como que absorve a própria
crítica. "Sim, segunda-feira talvez
não seja um bom nome, mas mesmo assim decidimos utilizá-lo, já
que... etc. etc."
Imagino que então surge, entre
os luas-pretas de Serra, o grito de
alerta: temos de emocionar o público, minha gente! Não viram o
Lula chorando? Não viram o Lula
abraçado a uma estrela de plástico inflável? Não viram o encontro
entre Lula e Sarney, como se fosse
um trailer de desenho da Disney,
aqueles de bichos? Algo como o
encontro da marmota esperta
com o ursinho cordial? Emoção,
meu povo!
Veio então a propaganda de
Serra sobre a violência. Foi de assustar. Parentes de vítimas choravam, contando casos trágicos, hediondos, revoltantes.
Qualquer pessoa se solidariza
com esses relatos sinceros de sofrimento. Vê-los, entretanto, num
programa eleitoral... não será
uma tremenda apelação? Mesmo
que fosse das próprias vítimas de
violência a iniciativa de recorrer
a Serra -o marketing foi longe
demais.
E foi, de novo, para o ponto de
partida: para o visual tenebroso,
para o clima de sexta-feira, de
uma candidatura sob o influxo de
luas-pretas, luas cheias, gritos de
arapongas, traições soturnas, paredes que ouvem e punhaladas
pelas costas.
Em seu aspecto mórbido, a candidatura do ex-ministro da saúde
aponta para um problema. Revela, com honestidade involuntária,
uma dificuldade que todos os
marqueteiros têm de enfrentar.
É óbvio que nenhum candidato
pode ignorar o desemprego, a miséria, a violência. Como conciliar
esse diagnóstico com aquilo que
se vê no horário eleitoral? As cançõezinhas idiotas, as cenas de infantilização sentimental, a fotogenia flutuante, a câmera lenta
mostrando invariavelmente um
povo esperançoso e feliz? As sombras não podem ser ignoradas.
E de fato, quem surge depois
dessas imagens de sonho é Tuma,
é Quércia, é Sarney, e mesmo Médici e Geisel, cujo desassombro no
planejamento econômico foi elogiado por Lula. Melhor bater na
madeira.
MARCELO COELHO, colunista da Folha,
escreve aos sábados
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