São Paulo, sábado, 31 de agosto de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

O brilho da lua nas noites de agosto

MARCELO COELHO

A seriedade quase fúnebre, a calva, as olheiras, os olhos enormes como lâmpadas atarraxadas no soquete. José Serra tem um ar de "família Addams" que, sem dúvida, dificulta a sua candidatura. A propaganda do candidato tucano sabe disso, e trata com cuidado estratégico da tonalidade de sua maquiagem facial. Na televisão, Serra aparece sorrindo, é claro, enquanto transita pelas fileiras de populares e de apaniguados; em momentos de maior descontração, é quase possível vê-lo ensaiar o simpático gesto do "barra-limpa".
Mas esse esforço não se sustenta muito. Nos primeiros programas, Serra apresentava o seu projeto de combate ao desemprego. Alguém decidiu que o nome desse projeto seria "Segunda-Feira". Existe algo mais enfarruscado, mais paulistano, mais impopular do que uma segunda-feira?
Ah, não faz mal. O candidato sabe desse problema, e prevê a objeção do eleitor. Diz algo do tipo: sabemos, claro, que segunda-feira é um negócio chato, mas será de alegria para toda pessoa que está procurando emprego e não consegue. O eleitor fica, assim, esclarecido. Mas nada indica que também fique convencido -muito menos interessado ou empolgado.
De alguma forma, o discurso eleitoral de Serra segue um modelo racional-argumentativo. Não sei, é claro, se há lógica ou consistência na promessa de criar 8 milhões de novos empregos. Mas o caso do "projeto segunda-feira" exemplifica, a meu ver, um jeito "acadêmico" de raciocinar: o discurso como que absorve a própria crítica. "Sim, segunda-feira talvez não seja um bom nome, mas mesmo assim decidimos utilizá-lo, já que... etc. etc."
Imagino que então surge, entre os luas-pretas de Serra, o grito de alerta: temos de emocionar o público, minha gente! Não viram o Lula chorando? Não viram o Lula abraçado a uma estrela de plástico inflável? Não viram o encontro entre Lula e Sarney, como se fosse um trailer de desenho da Disney, aqueles de bichos? Algo como o encontro da marmota esperta com o ursinho cordial? Emoção, meu povo!
Veio então a propaganda de Serra sobre a violência. Foi de assustar. Parentes de vítimas choravam, contando casos trágicos, hediondos, revoltantes.
Qualquer pessoa se solidariza com esses relatos sinceros de sofrimento. Vê-los, entretanto, num programa eleitoral... não será uma tremenda apelação? Mesmo que fosse das próprias vítimas de violência a iniciativa de recorrer a Serra -o marketing foi longe demais.
E foi, de novo, para o ponto de partida: para o visual tenebroso, para o clima de sexta-feira, de uma candidatura sob o influxo de luas-pretas, luas cheias, gritos de arapongas, traições soturnas, paredes que ouvem e punhaladas pelas costas.
Em seu aspecto mórbido, a candidatura do ex-ministro da saúde aponta para um problema. Revela, com honestidade involuntária, uma dificuldade que todos os marqueteiros têm de enfrentar.
É óbvio que nenhum candidato pode ignorar o desemprego, a miséria, a violência. Como conciliar esse diagnóstico com aquilo que se vê no horário eleitoral? As cançõezinhas idiotas, as cenas de infantilização sentimental, a fotogenia flutuante, a câmera lenta mostrando invariavelmente um povo esperançoso e feliz? As sombras não podem ser ignoradas.
E de fato, quem surge depois dessas imagens de sonho é Tuma, é Quércia, é Sarney, e mesmo Médici e Geisel, cujo desassombro no planejamento econômico foi elogiado por Lula. Melhor bater na madeira.


MARCELO COELHO, colunista da Folha, escreve aos sábados



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