São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 2005

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ENTREVISTA DE 2ª

BRYAN DREW

Para mentor do combate à violência no futebol inglês, corrupção de juízes afeta paz nos estádios

Clubes devem bancar polícia, defende xerife anti-hooligan

FÁBIO SEIXAS
DA REPORTAGEM LOCAL

Há 16 anos, o dia-a-dia do inglês Bryan Drew, 55, envolve paixão, vingança, grupos organizados, a imagem de seu país no exterior. Tudo isso, pano de fundo de uma indústria global, milionária e em crescimento acentuado: o futebol.
Policial de carreira, Drew dirige a Unidade de Policiamento de Futebol, órgão do Serviço Nacional de Inteligência do Ministério do Interior britânico. É o responsável pelo combate à violência entre torcedores ingleses, os hooligans, denominação que nas últimas décadas tornou-se sinônimo de bebedeira, mortes e muito medo.
Pavor que há exatos 20 anos privou os clubes ingleses de atuarem em competições internacionais.
Em 1985, 39 torcedores da italiana Juventus foram assassinados por hooligans do Liverpool na final da Copa dos Campeões, em Bruxelas. O episódio ficou conhecido como "a tragédia de Heysel", referência ao nome do estádio, e o banimento perdurou até 1990.
Embora o problema não esteja solucionado, a situação é bem diferente hoje. A última morte em confronto de torcidas na Inglaterra foi há três anos. As mais recentes estatísticas do Ministério do Interior britânico, referentes a 2003/2004, mostraram queda de 10% no número de prisões ligadas ao futebol em relação à temporada anterior. A próxima edição do relatório será publicada nesta semana indicando estabilidade: um torcedor detido para cada 10 mil.
Em entrevista à Folha, por telefone, Drew comentou a nova onda de violência no futebol brasileiro, que fez três mortos neste Nacional. Criticou as idéias sugeridas pelo Ministério Público. E defendeu a adoção de uma estratégia de sucesso usada na Inglaterra. Lá, os clubes pagam os policiais deslocados a seus estádios.

Folha - O futebol brasileiro registrou três mortes de torcedores logo após denúncias de corrupção na arbitragem. Na sua opinião, há relação entre uma coisa e outra?
Bryan Drew -
Eu li sobre esses problemas no Brasil, corrupção envolvendo juízes e acertos de jogos. Casos parecidos já aconteceram em alguns países na Europa. É um pouco difícil estabelecer um elo, mas compreendo que torcedores fiquem revoltados se seu time ganhou ou perdeu um jogo e vem uma ordem para remarcar a partida porque o juiz arranjou o resultado. Sim, a atuação dos juízes tem impacto no comportamento dos torcedores. Mas isso de nenhum modo é justificativa à violência, à agressão ou à morte.

Folha - Entre as sugestões apresentadas no Brasil, pelo Ministério Público, está a realização de jogos com apenas uma torcida nos estádios. O que o senhor acha disso?
Drew -
Um ambiente com torcedores de apenas uma equipe obviamente é um ambiente de mais segurança. Mas você precisa considerar... Você não pode punir todos os torcedores da outra equipe por causa do comportamento de alguns. Esse sentimento de injustiça também traz alguns riscos. Pode até funcionar, mas jogo com torcida de um time só certamente é a solução mais triste a ser adotada. Não é o tipo de cenário que agrade aos fãs do futebol.

Folha - Até porque boa parte dos confrontos entre torcidas ocorre nas ruas, fora dos estádios.
Drew -
Exatamente. Muitas brigas acontecem longe dos estádios, em bares, estações de trem, lugares assim. Então é preciso uma visão ampla, não se preocupar só com os estádios. Se dois grupos querem brigar, é relativamente fácil encontrar um local para isso.

Folha - Há uma outra proposta, de proibir os torcedores de vestirem as camisas dos clubes...
Drew -
Aqui fazemos o contrário. Na Inglaterra, encorajamos os torcedores a vestirem as camisas dos times. Porque outros países já tentaram proibir os uniformes, e o efeito colateral é pior. Os torcedores passaram a circular com camisetas nas cores dos times ou com referência aos clubes e começaram a criar seus próprios códigos. Uma coisa é um grupo de torcedores usando camisas com o escudo e os patrocinadores do time. Quando você proíbe isso, a torcida passa a criar seus próprios escudos, quase sempre belicistas. Eles podem, por exemplo, começar a usar roupas de uma mesma marca, algo que faziam aqui para tentar driblar a polícia.

Folha - E a inclusão de artigos na legislação lidando especificamente com esses casos?
Drew -
Esse é um dos caminhos. Em 1996, fizemos adendos à legislação que tratam especificamente do tema violência entre torcidas. Hoje, temos cinco ou seis artigos que tratam apenas do futebol. Não falam de críquete ou de rúgbi... Estão focados única e exclusivamente em jogos de futebol. Por exemplo, você não pode entrar em trens ou ônibus que vão para os estádios de futebol portando bebidas alcoólicas. Você poderia fazer isso se estivesse indo para outro evento esportivo, mas não para um jogo de futebol. E você não pode por causa do histórico do futebol. A lei tem seu papel na luta contra a violência associada ao futebol, mas não é uma panacéia. Nós reconhecemos isso e cada vez mais estamos convencidos de que os clubes têm um papel vital em estabelecer padrões de comportamento. Os juízes têm seu papel, o governo têm seu papel, a polícia tem o seu...

Folha - Na Inglaterra, são os clubes que pagam pelo policiamento nos jogos. Como isso funciona?
Drew -
O comando da polícia local analisa o histórico de relacionamento entre as duas torcidas e então toma sua decisão sobre quantos homens serão empenhados na partida. Essa conta é sempre feita com uma margem de segurança. O clube é consultado, dá seu parecer e às vezes discorda. Mas no fim das contas é a palavra da polícia que vale. Então, como o dinheiro sai do bolso dos clubes, torna-se interessante para os dirigentes trabalhar com a torcida para diminuir os transtornos e treinar melhor seus fiscais. Assim a polícia vai deslocar efetivos menores a seus estádios, e eles vão gastar menos. O que acontece hoje é que o número de policiais por jogo já vem caindo e os clubes também vêm usando pessoal próprio, cada vez mais experiente. Grandes clubes hoje têm até 5.000 pessoas trabalhando como fiscais em jogos importantes. Eles são treinados seguindo um padrão nacional, vestem uniformes... Os policiais estão lá para impor a lei. Os fiscais, para cuidar da segurança e orientar. Mas tenha em mente que aqui a maioria dos estádios é privada, e isso facilita muito a medida.

Folha - Quanto cada policial custa para um clube?
Drew -
Isso é difícil de dizer, porque trabalhamos com uma tabela que varia com a região. É claro que às vezes os clubes reclamam. Recentemente houve um problema com um clube chamado Wigan, promovido à primeira divisão. Esse time é de Manchester e estava sujeito aos mesmos preços pagos pelas outras equipes da cidade, o Manchester United e o Manchester City, que têm estruturas maiores. O problema é que eles não aceitavam negociar e ameaçaram dispensar a polícia. Dissemos que tudo bem, desde que eles abrissem mão também da torcida. Mas esse tipo de atitude é rara. É consenso neste país e é algo que eu defendo no combate à violência entre torcidas: pagar por serviços da polícia.

Folha - Como o senhor vê a relação entre torcidas e clubes?
Drew -
No Brasil e na América do Sul, essas gangues relacionam-se muito bem com os clubes ou com pessoas ligadas aos clubes, que as usam para seus objetivos. Eu não consigo visualizar um clube que ceda espaços para torcedores estocarem armas. Mesmo nos nossos piores momentos, isso nunca aconteceu.

Folha - E a relação entre a polícia e os torcedores?
Drew -
Nós nos encontramos regularmente para discutir reclamações ou assuntos que eles levantem. Isso é importante para que a gente possa melhorar o trabalho. É um efeito dominó... Se a polícia e os torcedores trabalharem juntos, haverá menos confrontos, mais gente poderá ir aos jogos e, com o tempo, o efetivo policial poderá ser reduzido, melhorando a nossa vida e diminuindo a pressão na torcida.

Folha - Extinguir as organizadas é uma solução?
Drew -
É difícil imaginar que elas deixariam de existir por decreto, porque já são parte da cultura do futebol de vocês. Não estou dizendo que as medidas que adotamos aqui funcionariam no Brasil. O que temos que fazer é trocar experiências, como já fizemos com o Marco Aurélio Klein [coordenador da Comissão Interministerial para a Paz no Esporte], como já fizemos na Itália, na Alemanha...
Podemos aprender uns com os outros. Claramente, nós, na Inglaterra, não toleraríamos saber que gangues de torcedores se reúnem para planejar desordem. A polícia tem um trabalho contínuo de inteligência para detectar e brecar qualquer iniciativa do gênero.

Folha - Por anos e anos, o Millwall, clube londrino que hoje disputa a segunda divisão, era considerado caso perdido devido aos seus hooligans. Hoje quase não há problemas. Como a polícia atuou nesse caso específico?
Drew -
A história deles é... É passado. Nos últimos anos, o clube trabalhou duro, a polícia trabalhou duro, os torcedores também trabalharam duro e hoje não representam mais o risco de ontem. O que quero dizer é que já conseguimos tratar cada clube e cada grupo de torcedores com base nas informações que colhemos no presente, e não mais olhando para trás. Não é porque um clube tem um histórico ruim que precisará de mil policiais para todo jogo. Se o Millwall e a polícia da região nos mostram dados comprovando que os torcedores estão mais pacíficos, que serão escoltados, que o clube mandará fiscais para o estádio visitante... Enfim, se nos mostram que há um trabalho sendo feito, isso nos ajuda bastante.

Folha - E os torcedores ingleses? Já têm outra imagem fora do país?
Drew -
Espero que sim. Mas tivemos um acidente de percurso... Na Eurocopa da Bélgica, cinco anos atrás, os torcedores da seleção se portaram mal, e os clubes ingleses chegaram a ser ameaçados de expulsão de torneios continentais. Por outro lado, isso fez o governo introduzir uma legislação, radical, de banimento dos desordeiros dos estádios. Depois disso, o comportamento em jogos da seleção tornou-se exemplar.

Folha - O senhor coordena nacionalmente as ações por segurança no futebol. Qual é a importância da centralização do trabalho?
Drew -
A centralização do trabalho contra a violência em estádios é tão importante que tornou-se um requerimento da União Européia. Todo país membro tem um órgão nacional para lidar com os assuntos internos e para trocar informações com seus pares sempre que há jogos internacionais. Na Inglaterra e no País de Gales, há 43 unidades policiais. Então é semelhante à questão dos Estados no Brasil. Se você tem 43 ou 27 unidades de polícia e não há uma coordenação, desenhando um quadro da situação nacional, como saber qual é o problema? Cada unidade tem o quadro de sua região, mas quem coloca isso junto?

Folha - Há relação entre injustiça social e violência no futebol?
Drew -
Sim, isso existe em vários países. É uma possibilidade que as pessoas menos favorecidas têm de se sentir parte de alguma coisa, alguma organização, algum movimento. Isso preenche um pouco a carência em outros setores.

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