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+ ciência
PESQUISADORES TENTAM DESVENDAR O MECANISMO MISTERIOSO DE ARMAZENAMENTO
DE LEMBRANÇAS NO CÉREBRO E SUA RELAÇÃO COM FENÔMENOS COMO VONTADE E SON
Memória dura
Divulgação
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Detalhe de
obra de Beth Moysés
que integrou
a mostra
"Memória do
Afeto" em São
Paulo em outubro do ano passado
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Os gregos sabiam do que estavam falando
quando fizeram de sua deusa Mnemósine, a
Memória personificada, a mãe das Musas e,
portanto, a raiz de todas as artes humanas, da
história à astronomia. Entre os escandinavos, nem o
deus supremo Odin podia se dar ao luxo de fazer qualquer coisa sem o par de corvos gêmeos, Hugin (Pensamento) e Munin (Memória), que se empoleiravam em
seus ombros. A capacidade de estocar eventos, coisas e
sensações na mente está entre as bases do raciocínio e
da criatividade de deuses e homens -e entre os mais
duradouros enigmas da ciência.
Depois de décadas analisando as interações moleculares entre células nervosas em animais e seres humanos,
os cientistas conseguiram aprender muito sobre como
as conexões entre neurônios nascem e desaparecem,
mas relativamente pouco sobre o processo físico de armazenamento (ou descarte) de memórias. O desafio
agora, avaliam neurocientistas, é compreender como o
quebra-cabeças da ligação entre cada um dos cerca de
100 bilhões de neurônios se organiza em unidades
maiores para armazenar ou alterar as memórias.
Freud revisitado
Um dos últimos avanços nessa visão integradora dos processos da memória não tem nada a ver com sinapses e neurotransmissores (respectivamente as conexões entre as células nervosas e os
mensageiros químicos do cérebro). O trabalho, publicado na revista americana "Science" (www.sciencemag.org) no dia 9 do mês passado, acha um mecanismo
cerebral que poderia explicar o conceito de repressão,
desenvolvido por ninguém menos que o psicanalista
austríaco Sigmund Freud (1856-1939).
Malhado incessantemente pelos neurobiólogos nas
últimas décadas, Freud teorizava que memórias poderiam ser apagadas, voluntária ou involuntariamente,
mesmo depois de adquiridas. Há quem trace uma distinção entre repressão (inconsciente) e supressão
(consciente), mas os autores do trabalho na "Science"
afirmam que essa distinção de terminologia foi, na verdade, introduzida pela interpretação de Anna Freud, filha do psicanalista.
Seja como for, o trabalho de John Gabrieli e seus colegas da Universidade Stanford, na Califórnia (EUA),
mostrou que a supressão consciente é um fato neurológico. Gabrieli pediu que um grupo de pessoas memorizasse uma série de pares de palavras, de forma que a
menção de uma delas evocasse a outra. O pesquisador
monitorou então o cérebro dos participantes usando
ressonância magnética funcional, que permite visualizar os grandes compartimentos do cérebro em ação,
enquanto lhes dizia uma das palavras e pedia que recordassem, ou esquecessem, a outra.
Os resultados mostraram que, além do desempenho
pior quando se pedia às pessoas para esquecer, havia
uma significativa diminuição de atividade no hipocampo -uma região enovelada no meio do cérebro, que há
tempos está relacionada ao fortalecimento de memórias. "É a primeira vez em décadas que um artigo nas revistas de topo de linha começa e termina citando Freud
sem descer o sarrafo no velho", brinca o neurobiólogo
brasiliense Sidarta Ribeiro, que faz pós-doutorado na
Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA). "O trabalho de Gabrieli aponta uma direção muito interessante, que é o papel do eu consciente na consolidação
das memórias. Ou seja, esquecer é tão importante
quanto lembrar, e o cérebro faz isso ativamente", avalia.
Príons e príons
Apesar da necessidade de conhecer o
cérebro como sistema, novos atores moleculares da memória continuam a aparecer. Um deles pode ser o príon
celular, versão normal da proteína que causa o temido
mal da vaca louca. Iván Izquierdo e seus colegas da
UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e
do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São
Paulo, demonstraram que a proteína desempenha um
papel importante (embora ainda um tanto misterioso)
nos processos da memória.
Em camundongos e ratos que tinham a produção de
proteína impedida pelos pesquisadores, tanto a memória de curto prazo quanto a de longo prazo se mostrou
danificada quando a equipe tentou ensinar aos camundongos diversas tarefas. Os bichos também se moviam
menos, mostrando-se menos desenvoltos (até defecavam menos) em ambientes abertos.
Daí a saber qual o mecanismo bioquímico ligando a
falta de príon celular a esses vários comportamentos vai
uma bela distância. Já se sabe que a molécula influencia
a formação dos axônios, os terminais que ligam as células nervosas. "A formação de novos terminais axônicos
e a ramificação dos existentes podem ser um ótimo mecanismo. Mas pode haver além -ou em vez- disso
outros mecanismos", acautela-se Izquierdo.
Outra possibilidade, levantada pelo Prêmio Nobel
Eric Kandel e seus colegas da Universidade Columbia,
nos EUA, é a de que moléculas parecidas com o príon
versão malévola (capaz de induzir a alteração da forma
do príon normal) sejam um dos mecanismos por trás
do armazenamento de memórias. A molécula na berlinda é a CPEB, presente nas sinapses da aplísia, espécie
de lesma marinha muito usada nas pesquisas de neurobiologia. O pulo-do-gato é que a versão "priônica" da
CPEB é extremamente estável, o que permitiria usar a
molécula, segundo Kandel, para cimentar as memórias.
"A relação entre CPEB e plasticidade sináptica é ainda
especulativa", afirma Izquierdo. "Os mecanismos do
armazenamento são desconhecidos. Acredita-se que
dependam de alguma modificação nas sinapses usadas
para adquirir uma memória, mas na maioria dos casos
não fazemos a menor idéia de quais sejam essas sinapses", avalia o bioquímico da UFRGS.
Seja como for, os cientistas parecem concordar que é
hora de pensar em relações muito mais amplas entre os
grandes "órgãos" do cérebro, como o hipocampo e as
várias regiões do córtex. "Acho que o grande nó, o grande desafio para entender como funciona a formação e a
expressão de memórias de longo prazo, é a neurobiologia de sistemas. Mas vai demorar um pouquinho: a máquina é finita, mas é bastante complicada", diz Ribeiro.
"Os paradigmas mais reducionistas já cumpriram sua
função, em grande parte. Ainda não foram capazes de
explicar por que me lembro de certo sorriso dos meus
netos, sob certo ângulo e com certa luz, em determinado dia, a certa hora", afirma Izquierdo.
É bom lembrar essas palavras.
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