São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Marcelo Leite

O valor da face


O rubor escapa aos meandros insondáveis da psicologia subjetiva

Nada como uma boa pergunta.
De preferência, simples. Na edição desta semana da revista britânica "New Scientist", o primatólogo holandês Frans de Waal apareceu com uma questão antológica: por que ruborizamos?
A revista, na realidade, havia pedido a 14 personalidades da área de biologia que respondessem a uma outra pergunta: quais são as maiores lacunas que restam na teoria da evolução?
A peça resultante faz parte de uma série sobre os 200 anos do nascimento de Charles Darwin (1809-1882), que se comemoram dentro de 11 dias.
Há respostas de darwinistas convictos e militantes, como Richard "Deus, Um Delírio" Dawkins e Steven "Como a Mente Funciona" Pinker. Frans "Eu, Primata" de Waal reagiu assim: "Por que os humanos enrubescem?
Somos os únicos primatas que fazem isso em consequência de situações embaraçosas (vergonha), ou quando são apanhados na mentira (culpa). Ficamos nos perguntando por que, afinal, precisamos de um sinal tão óbvio para comunicar esses sentimentos de autoconsciência. O rubor interfere na manipulação inescrupulosa de outros humanos. Estiveram os primeiros humanos sujeitos a pressões seletivas para se manterem honestos? Qual era o seu valor de sobrevivência?"
São questões darwinistas, na medida em que perguntam pela gênese adaptativa de um comportamento à primeira vista inexplicável. Mais: seguem de perto o estilo interrogativo da chamada psicologia evolucionária, herdeira da estigmatizada sociobiologia dos anos 1970 que, como aquela, almeja reduzir os comportamentos à sua utilidade para a sobrevivência ou a reprodução de indivíduos num passado indeterminado da espécie.
Quem leu os livros de Pinker conhece tanto o potencial quanto as limitações desse método, ou estilo, de explicação. O finado Stephen Jay Gould implicava com as historinhas criadas para elucidar -na sua crítica, justificar- coisas como características femininas e masculinas.
Como ninguém mais se lembra de Gould, esse raciocínio que já foi com razão desqualificado como "falácia naturalista" (o que é natural é correto) se espraia por toda parte, inclusive na pena de ensaístas conservadores. Mas isso não elimina a legitimidade das perguntas. Antes, eleva a barra das exigências teóricas e empíricas para as respostas que suscitarem.
O rubor facial é um ponto de partida propício para a interrogação. Exclusivo de seres humanos, como assinala Waal, é também fisiologia à flor da pele. Em grande medida involuntário, escapa aos meandros insondáveis da psicologia subjetiva. Ao mesmo tempo, possui função apenas no domínio interpessoal -afinal, só prejudica aquele que enrubesce e só favorece seus interlocutores.
Para ruborizar, é necessário que vasos capilares de uma região específica do corpo se dilatem, após a ativação de circuitos específicos de nervos e células. Todo um módulo de programas comportamentais precisa ser acionado, e isso em resposta a ocorrências puramente interiores e morais.
Por sua regularidade nos indivíduos e pela frequência populacional, é de supor que o módulo se encontre de alguma forma inscrito em genes. De outra maneira, não haveria como ser preservado pela seleção natural, transmitido de geração a geração.
Outra maneira de encarar a questão de Waal é dar-se conta de que ele está na pista de raízes biológicas do aparato ético da espécie, ou de valores fundamentais como a veracidade. Muita gente na área das humanidades não vai gostar -mais por hábito do que por reflexão.


MARCELO LEITE é autor de "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008) e de "Fogo Verde" (Editora Ática, 2009). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br



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