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Patologia desafinada
Infecção de violoncelista no escroto, doença ocupacional falsa, enganou ciência médica por 34 anos
da Sala São Paulo, na capital, espaço dedicado a concertos
BERNARDO ESTEVES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Chegou ao fim um embuste que durava 34
anos na medicina. Ao
publicar no fim de janeiro último uma
carta assinada pela baronesa
Elaine Murphy e por seu marido, o vetusto BMJ -a revista
médica "British Medical Journal"- reconheceu a inexistência de uma doença que ele próprio ajudara a colocar na literatura médica. O reconhecimento da fraude devolvia à esfera
da fantasia a suposta infecção
que acometeria a região genital
de violoncelistas profissionais.
A origem da impostura remonta a abril de 1974, quando
o BMJ publicou uma carta do
médico P. Curtis, de Winchester, relatando o caso de três jovens mulheres acometidas por
uma inflamação cutânea em
um dos seios. As garotas estavam aprendendo a tocar violão
clássico, e a fricção continuada
do instrumento com o corpo
estava causando o que o autor
batizou de "mamilo de violão".
Quando leu o relato, Elaine
-que ainda não era baronesa e
trabalhava como professora do
hospital Guy's & St. Thomas,
em Londres- não acreditou.
Aquilo não podia ser sério.
Naquela época, publicar no
BMJ (hoje o sétimo periódico
mais influente do meio médico) era um sonho longínquo
para ela, então com 27 anos. Se
a revista publicara um relato
como aquele, ela também poderia emplacar a descrição de
uma doença fictícia ridícula.
Para isso, era fundamental
um conluio com seu marido
John, que teria menos a perder
caso a fraude fosse desmascarada, já que era químico teórico. Foi ele quem assinou a carta
que o BMJ publicou na edição
de 11 de maio de 1974.
Seu relato elegante, de apenas nove linhas, comunicava
que ele nunca havia se deparado com o "mamilo de violão",
mas que havia, sim, presenciado o caso de um violoncelista
com uma infecção na bolsa testicular motivada por atrito com
o instrumento. As várias horas
diárias de prática foram, segundo o autor, determinantes
para o surgimento daquilo que
ele achou por bem chamar de
cello scrotum -em bom português, "escroto de violoncelo".
Para espanto do casal gaiato,
o periódico publicou o relato, a
despeito de qualquer verossimilhança anatômica. O leitor
que visualizar um violoncelo
facilmente intuirá que a fricção
continuada do instrumento
necessária para o surgimento
da infecção requer uma postura digna de um ginasta.
O violoncelista Ricardo Santoro, da Orquestra Sinfônica
Brasileira, atesta essa impossibilidade. "O único contato do
instrumento é com o peito e
com as pernas, na altura do joelho", explica ele. "Ainda que o
sujeito conseguisse chegar a essa posição, seria praticamente
impossível tocar o violoncelo!"
Sinfonia de doenças
Seja como for, fato é que o relato de John Murphy pôs o escroto de violoncelo no mapa da
medicina musical. A carta publicada em 1974 vem sendo citada bissextamente na literatura. O Institute for Scientific Information registrava 12 menções a ela até o fim de fevereiro.
É verdade que nem todos engoliram a farsa. Em abril de
1990, um artigo de P. E. Shapiro
no "Journal of the American
Academy of Dermatology" pôs
em questão a existência do escroto de violoncelo, mas não
abalou a crença na doença.
O mito sobreviveria incólume até a edição de Natal de
2008 do BMJ. Ali foi publicado
o artigo de revisão "Uma sinfonia de doenças", em que Sarah
Bache e Frank Edenborough
compilam várias patologias que
podem acometer músicos.
O trabalho reúne uma galeria
de doenças insuspeitas até para
alguns instrumentistas. Esse
universo está povoado de afecções como a síndrome de
Satchmo, mal que acomete
trompetistas e consiste na ruptura de um grupo de músculos
da boca. (Satchmo era o apelido
do jazzista Louis Armstrong.)
Na seção do artigo dedicada a
doenças dermatológicas, perdido entre o pescoço de violinista
e o queixo de flautista, estava o
temido escroto de violoncelo,
apresentado com certa ironia.
"A posição canhestra exigida
para o surgimento dessa doença faz dela uma raridade que
tem sido questionada", diziam.
Ali estava a deixa que Elaine
Murphy buscava há anos. À sua
revelia, aquela brincadeira juvenil tomara uma proporção
incômoda. Alguns amigos próximos do meio médico sabiam
da farsa. Ela diz ter negociado
com o ex-editor de outro periódico médico de prestígio, "The
Lancet", a forma mais conveniente de revelar a fraude. Mas
faltava um bom pretexto.
Com a publicação da "Sinfonia de doenças", Elaine tinha
agora o álibi para vir a público
fazer seu mea-culpa. Aos 62
anos, avaliou que tal revelação
não abalaria a sólida carreira
-nem seu título de nobreza e
seu assento vitalício na Câmara
dos Lordes. Junto com John, a
baronesa remeteu ainda em dezembro nova carta ao BMJ,
confessando serem eles os inventores do escroto de violoncelo. Jane Smith, editora-assistente do periódico, afirma que
"essa peça provavelmente teria
sido descoberta" nos dias de
hoje. "Raramente publicamos
relatos de casos como estes e,
quando acontece, são submetidos à revisão por pares."
Ao revelar o embuste, a baronesa Murphy tirou um peso das
costas. Em entrevista à BBC,
admitiu que não gostaria de
suscitar preocupações com a
doença que inventara. "Mas,
até onde eu saiba, não há qualquer caso de músico profissional que tenha exigido alguma
indenização por acidente de
trabalho resultante dessa infecção", reconhece, aliviada.
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