São Paulo, domingo, 01 de março de 2009

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Patologia desafinada

Infecção de violoncelista no escroto, doença ocupacional falsa, enganou ciência médica por 34 anos

da Sala São Paulo, na capital, espaço dedicado a concertos

BERNARDO ESTEVES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Chegou ao fim um embuste que durava 34 anos na medicina. Ao publicar no fim de janeiro último uma carta assinada pela baronesa Elaine Murphy e por seu marido, o vetusto BMJ -a revista médica "British Medical Journal"- reconheceu a inexistência de uma doença que ele próprio ajudara a colocar na literatura médica. O reconhecimento da fraude devolvia à esfera da fantasia a suposta infecção que acometeria a região genital de violoncelistas profissionais.
A origem da impostura remonta a abril de 1974, quando o BMJ publicou uma carta do médico P. Curtis, de Winchester, relatando o caso de três jovens mulheres acometidas por uma inflamação cutânea em um dos seios. As garotas estavam aprendendo a tocar violão clássico, e a fricção continuada do instrumento com o corpo estava causando o que o autor batizou de "mamilo de violão".
Quando leu o relato, Elaine -que ainda não era baronesa e trabalhava como professora do hospital Guy's & St. Thomas, em Londres- não acreditou. Aquilo não podia ser sério.
Naquela época, publicar no BMJ (hoje o sétimo periódico mais influente do meio médico) era um sonho longínquo para ela, então com 27 anos. Se a revista publicara um relato como aquele, ela também poderia emplacar a descrição de uma doença fictícia ridícula.
Para isso, era fundamental um conluio com seu marido John, que teria menos a perder caso a fraude fosse desmascarada, já que era químico teórico. Foi ele quem assinou a carta que o BMJ publicou na edição de 11 de maio de 1974.
Seu relato elegante, de apenas nove linhas, comunicava que ele nunca havia se deparado com o "mamilo de violão", mas que havia, sim, presenciado o caso de um violoncelista com uma infecção na bolsa testicular motivada por atrito com o instrumento. As várias horas diárias de prática foram, segundo o autor, determinantes para o surgimento daquilo que ele achou por bem chamar de cello scrotum -em bom português, "escroto de violoncelo".
Para espanto do casal gaiato, o periódico publicou o relato, a despeito de qualquer verossimilhança anatômica. O leitor que visualizar um violoncelo facilmente intuirá que a fricção continuada do instrumento necessária para o surgimento da infecção requer uma postura digna de um ginasta.
O violoncelista Ricardo Santoro, da Orquestra Sinfônica Brasileira, atesta essa impossibilidade. "O único contato do instrumento é com o peito e com as pernas, na altura do joelho", explica ele. "Ainda que o sujeito conseguisse chegar a essa posição, seria praticamente impossível tocar o violoncelo!"

Sinfonia de doenças
Seja como for, fato é que o relato de John Murphy pôs o escroto de violoncelo no mapa da medicina musical. A carta publicada em 1974 vem sendo citada bissextamente na literatura. O Institute for Scientific Information registrava 12 menções a ela até o fim de fevereiro.
É verdade que nem todos engoliram a farsa. Em abril de 1990, um artigo de P. E. Shapiro no "Journal of the American Academy of Dermatology" pôs em questão a existência do escroto de violoncelo, mas não abalou a crença na doença.
O mito sobreviveria incólume até a edição de Natal de 2008 do BMJ. Ali foi publicado o artigo de revisão "Uma sinfonia de doenças", em que Sarah Bache e Frank Edenborough compilam várias patologias que podem acometer músicos.
O trabalho reúne uma galeria de doenças insuspeitas até para alguns instrumentistas. Esse universo está povoado de afecções como a síndrome de Satchmo, mal que acomete trompetistas e consiste na ruptura de um grupo de músculos da boca. (Satchmo era o apelido do jazzista Louis Armstrong.)
Na seção do artigo dedicada a doenças dermatológicas, perdido entre o pescoço de violinista e o queixo de flautista, estava o temido escroto de violoncelo, apresentado com certa ironia. "A posição canhestra exigida para o surgimento dessa doença faz dela uma raridade que tem sido questionada", diziam.
Ali estava a deixa que Elaine Murphy buscava há anos. À sua revelia, aquela brincadeira juvenil tomara uma proporção incômoda. Alguns amigos próximos do meio médico sabiam da farsa. Ela diz ter negociado com o ex-editor de outro periódico médico de prestígio, "The Lancet", a forma mais conveniente de revelar a fraude. Mas faltava um bom pretexto.
Com a publicação da "Sinfonia de doenças", Elaine tinha agora o álibi para vir a público fazer seu mea-culpa. Aos 62 anos, avaliou que tal revelação não abalaria a sólida carreira -nem seu título de nobreza e seu assento vitalício na Câmara dos Lordes. Junto com John, a baronesa remeteu ainda em dezembro nova carta ao BMJ, confessando serem eles os inventores do escroto de violoncelo. Jane Smith, editora-assistente do periódico, afirma que "essa peça provavelmente teria sido descoberta" nos dias de hoje. "Raramente publicamos relatos de casos como estes e, quando acontece, são submetidos à revisão por pares."
Ao revelar o embuste, a baronesa Murphy tirou um peso das costas. Em entrevista à BBC, admitiu que não gostaria de suscitar preocupações com a doença que inventara. "Mas, até onde eu saiba, não há qualquer caso de músico profissional que tenha exigido alguma indenização por acidente de trabalho resultante dessa infecção", reconhece, aliviada.


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