São Paulo, sábado, 01 de abril de 2006

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COMENTÁRIO

Convenção é um morto-vivo sem poder nem rumo

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Aconteceu no segundo dia de COP-8, mas podia ter sido em qualquer um. Os delegados que integravam o Grupo de Trabalho 2 elogiavam o "sorriso auspicioso" no rosto do presidente do grupo, Sem Shikongo, da Namíbia. Um conterrâneo sugeriu que o bom humor se devia ao fato de que os namibianos comemoravam 16 anos de independência naquele dia. Shikongo, porém, emendou logo: "Eles estão lá se divertindo e tomando cerveja, e nós aqui trabalhando".
Foi assim, como quem estava ali só de corpo presente, que se comportaram muitos dos representantes dos governos do mundo ao longo da conferência. A situação seria menos vergonhosa se ficasse restrita a esse humor capenga, na linha "a ONU segundo Monty Python", mas quem acompanhou as batalhas intermináveis em torno de uma vírgula sabe que foi muito pior que isso.
A COP-8 marca o triunfo do sarumanismo dentro da CBD (Convenção sobre Diversidade Biológica). "Sarumanismo", claro, exige explicação, mas a metáfora vale a pena. Saruman é o nome do mago renegado do romance "O Senhor dos Anéis", que começou como proponente de uma utopia tecnológica e acabou como tirano fracassado. Não que os delegados da COP-8 tenham pessoalmente o desagradável hábito sarumânico de alimentar fornalhas com árvores inteiras, mas numa coisa muitos deles são iguais: o divórcio entre palavra e ação (neste caso, mais inação do que qualquer outra coisa) que dominou o evento.
Que o diga o espetáculo triste dado pela delegada Felicity Buchanan, da Nova Zelândia, que deteve as conversas sobre o regime de acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios durante 60 preciosos minutos porque não queria uma menção a "derivativos" desses recursos no texto.
Detalhe: o texto estava muito longe de ser uma decisão final. Tratava-se apenas de uma recomendação para o grupo de especialistas que deve se reunir nos próximos anos para discutir a viabilidade de um certificado internacional de origem de produtos derivados da biodiversidade. Incluir "derivativos" nesse certificado (ou seja, produtos alterados em relação ao recurso genético original) obviamente não interessa à indústria dos países desenvolvidos. Argumento neozelandês: permitir essa discussão equivaleria a transferir decisões políticas para um grupo técnico. Então tá.

Convenção sem poder
A situação é mero sintoma do problema maior que é a CBD, um amontoado de boas intenções sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é mais importante, poder de fato para implementar suas decisões -isso, é claro, se elas fossem mais específicas que o pedido para reduzir de forma "significativa" a perda de biodiversidade até 2010.
Também é sintoma das dificuldades do sistema multilateral da ONU, incapaz de fazer as nações enxergarem um problema realmente global e fazer alguma coisa a respeito sem colocar seu interesse próprio de curto prazo na frente de todo o resto. Enquanto a ciência diz há pelo menos 15 anos que a Terra está entrando numa fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são necessários. Atiram pela janela o princípio da precaução, segundo o qual ninguém precisa de todas as informações do mundo para agir contra uma catástrofe.
Dito desse jeito, parece que a culpa é só da CBD e da ONU. Não é. Também está sobre as cabeças de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por enquanto) e desviando energia do essencial. Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel das "sementes suicidas" Terminator, a farsa continuava.
Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD, repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa [nasceu na Eco-92, no Rio] para ganhar vida nova". O que se viu ali, porém, foi um morto-vivo.


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