|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
Convenção é um morto-vivo sem poder nem rumo
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Aconteceu no segundo dia de
COP-8, mas podia ter sido em
qualquer um. Os delegados que
integravam o Grupo de Trabalho
2 elogiavam o "sorriso auspicioso" no rosto do presidente do grupo, Sem Shikongo, da Namíbia.
Um conterrâneo sugeriu que o
bom humor se devia ao fato de
que os namibianos comemoravam 16 anos de independência
naquele dia. Shikongo, porém,
emendou logo: "Eles estão lá se
divertindo e tomando cerveja, e
nós aqui trabalhando".
Foi assim, como quem estava ali
só de corpo presente, que se comportaram muitos dos representantes dos governos do mundo ao
longo da conferência. A situação
seria menos vergonhosa se ficasse
restrita a esse humor capenga, na
linha "a ONU segundo Monty
Python", mas quem acompanhou
as batalhas intermináveis em torno de uma vírgula sabe que foi
muito pior que isso.
A COP-8 marca o triunfo do sarumanismo dentro da CBD (Convenção sobre Diversidade Biológica). "Sarumanismo", claro, exige explicação, mas a metáfora vale
a pena. Saruman é o nome do mago renegado do romance "O Senhor dos Anéis", que começou
como proponente de uma utopia
tecnológica e acabou como tirano
fracassado. Não que os delegados
da COP-8 tenham pessoalmente o
desagradável hábito sarumânico
de alimentar fornalhas com árvores inteiras, mas numa coisa muitos deles são iguais: o divórcio entre palavra e ação (neste caso,
mais inação do que qualquer outra coisa) que dominou o evento.
Que o diga o espetáculo triste
dado pela delegada Felicity Buchanan, da Nova Zelândia, que
deteve as conversas sobre o regime de acesso a recursos genéticos
e repartição de benefícios durante
60 preciosos minutos porque não
queria uma menção a "derivativos" desses recursos no texto.
Detalhe: o texto estava muito
longe de ser uma decisão final.
Tratava-se apenas de uma recomendação para o grupo de especialistas que deve se reunir nos
próximos anos para discutir a viabilidade de um certificado internacional de origem de produtos
derivados da biodiversidade. Incluir "derivativos" nesse certificado (ou seja, produtos alterados
em relação ao recurso genético
original) obviamente não interessa à indústria dos países desenvolvidos. Argumento neozelandês:
permitir essa discussão equivaleria a transferir decisões políticas
para um grupo técnico. Então tá.
Convenção sem poder
A situação é mero sintoma do
problema maior que é a CBD, um
amontoado de boas intenções
sem coordenação interna, financiamento adequado ou, o que é
mais importante, poder de fato
para implementar suas decisões
-isso, é claro, se elas fossem mais
específicas que o pedido para reduzir de forma "significativa" a
perda de biodiversidade até 2010.
Também é sintoma das dificuldades do sistema multilateral da
ONU, incapaz de fazer as nações
enxergarem um problema realmente global e fazer alguma coisa
a respeito sem colocar seu interesse próprio de curto prazo na frente de todo o resto. Enquanto a
ciência diz há pelo menos 15 anos
que a Terra está entrando numa
fase de extinções em massa causadas pela mão humana, os delegados acham que mais estudos são
necessários. Atiram pela janela o
princípio da precaução, segundo
o qual ninguém precisa de todas
as informações do mundo para
agir contra uma catástrofe.
Dito desse jeito, parece que a
culpa é só da CBD e da ONU. Não
é. Também está sobre as cabeças
de boa parte das ONGs que encheram o evento de Curitiba com
protestos barulhentos, alimentando a velha paranóia em relação
aos transgênicos (até onde se sabe, injustificada, pelo menos por
enquanto) e desviando energia do
essencial. Enquanto elas cerravam fileiras contra o tigre de papel
das "sementes suicidas" Terminator, a farsa continuava.
Ahmed Djoghlaf, o recém-empossado secretário-geral da CBD,
repetia o tempo todo que a convenção havia "voltado para casa
[nasceu na Eco-92, no Rio] para
ganhar vida nova". O que se viu
ali, porém, foi um morto-vivo.
Texto Anterior: Acordo sobre recurso genético fica para 2010 Próximo Texto: Medicina: Oração de estranhos não ajuda cardíacos, diz estudo Índice
|