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A hélice dupla e as duas culturas
Debate sobre "Promessas do Genoma", de Marcelo Leite, aponta hiato entre cientistas sociais e biólogos moleculares
DA REDAÇÃO
Bem que o filósofo da
ciência Hugh Lacey,
o terceiro a ter a palavra no debate sobre o PGH (Projeto
Genoma Humano) na terça-feira, na Folha, avisou.
"A retórica da legitimação do
enorme financiamento público
e dos investimentos privados
em projetos genoma, e agora
também em outros estudos de
biologia molecular, tem dois
componentes principais."
Um deles seria metafísico (o
determinismo genético e a proposta de que o seqüenciamento
implica no entendimento do
Livro da Vida). O outro, disse
Lacey, foi a promessa de que a
soletração do DNA do Homo
sapiens traria grandes benefícios sociais e médicos.
O debate, feito por ocasião do
lançamento do livro "Promessas do Genoma", de Marcelo
Leite, colunista da Folha, serviu para sedimentar aquilo que
o próprio Leite já havia mencionado em sua fala -e, também, escrito em sua mais recente obra, fruto de uma tese
de doutorado em ciências sociais na Unicamp.
Ficou claro o abismo que
existe entre os "humanistas"
(como Lacey) e os "cientistas
naturais" (representados no
debate pela geneticista Mayana
Zatz, da USP, e pelo biólogo
molecular Gonçalo Pereira, da
Unicamp), ao qual o escritor
britânico Charles Percy Snow
se referiu como o hiato entre
"as duas culturas".
A advertência do filósofo da
ciência sobre a retórica vem
bem a calhar. De forma inconsciente até, os biólogos moleculares presentes ao evento se
omitiram de um debate aberto.
Enquanto Lacey entrelaçou
a retórica da legitimação do
PGH ao enfraquecimento da
ciência, porque o discurso usado pelos grandes nomes internacionais do genoma, disse o filósofo, não foram embasados
na própria ciência, o segundo
grupo mostrou a dificuldade de
fazer uma reflexão desse processo recente da biologia.
Não que ambos os cientistas
sejam apenas retóricos, não
que ambos sejam "deterministas". Mas o sentido social e até
ético da função deles era levado
sempre para o individual.
"Quem coloca a mão na massa sabe quais são as limitações.
Às vezes, você realmente tem
de vender o peixe quando precisa de financiamento. Não
adianta você dizer: "Olha, vou
ficar 20 anos seqüenciando para talvez chegar a um resultado". A gente tenta dourar um
pouquinho a pílula. Mas sabemos que as limitações são
enormes e temos um longo caminho pela frente", disse Zatz.
Para ela, a tese de que os genes são os causadores de tudo
também precisa cair. O ambiente -com o que todos os debatedores concordaram- também tem um papel fundamental nos processos biológicos.
A única convergência no
evento foi essa. De resto, nenhuma outra ponte parece estar sendo construída para que o
hiato possa ser preenchido.
Leite, enquanto cientista social, defendeu uma reconfiguração das metáforas genéticas
que, por si só, encerram o conceito determinístico dos genes.
Zatz e Pereira preferiram
fincar pé em seus terrenos firmes. "A sobrevivência na face
da Terra depende totalmente
do conhecimento que teremos
da biotecnologia", disse Pereira. "Reduzir o sensacionalismo
é algo para o jornalista fazer."
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