São Paulo, sexta-feira, 01 de junho de 2001

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BIOÉTICA

Para Jacques Cohen, que ajudou a desenvolver injeção de citoplasma contra infertilidade, bebês não são "transgênicos"

Alterar óvulo não é engenharia, diz médico

Divulgação
O médico Jacques Cohen


FREE-LANCE PARA A FOLHA

O médico Jacques Cohen esteve no Brasil para participar do 2º Simpósio Internacional de Novos Desenvolvimentos em Reprodução Assistida, realizado nos dias 25 e 26 de maio, em São Paulo. Em entrevista por e-mail após sua volta aos EUA, Cohen negou que as crianças nascidas por meio da técnica de transferência citoplasmática sejam transgênicas, ou que esta implique modificação genética transmissível para descendentes: "Não classificamos transferência citoplasmática como sendo um modo em potencial de alteração do código genético da linhagem germinativa".
O artigo que publicou em março na revista "Human Reproduction", com outros médicos da clínica Saint Barnabas (Nova Jersey, EUA), no entanto, dizia: "Este relato é o primeiro caso de modificação de células germinativas humanas que resultou em crianças saudáveis". O pesquisador e sua equipe têm sido alvo de críticas desde a publicação de um editorial na revista "Science". Segundo Cohen, elas decorrem de um entendimento equivocado da ciência por especialistas em ética.
Leia abaixo a íntegra da entrevista. (FLÁVIA NATERCIA)

Folha - Essa foi a primeira vez que a transferência de citoplasma foi tentada em humanos? Quais foram as principais dificuldades técnicas que sua equipe teve de superar?
Jacques Cohen -
A técnica tem sido testada desde 1995. O primeiro bebê nasceu em 1997.

Folha - O sr. acredita que não haja preocupação ética com esse tipo de experiência? Existe uma má compreensão da ciência envolvida?
Cohen -
Tem havido muita publicidade a respeito disso no passado, mas é a primeira vez que fomos criticados de forma tão pública. Existem, penso, dois motivos pelos quais ela subitamente foi tão criticada.
Em primeiro lugar, especialistas em ética nos EUA formaram uma opinião baseada em uma baixa compreensão da ciência. Eles concluíram, de forma bastante errônea, que se trata de engenharia genética e que a linhagem germinativa foi alterada.
Em segundo lugar, um jornalista da rede BBC chamado David Whitehouse interpretou os dados e o conceito de forma equivocada em um editorial de 4 de maio. Infelizmente, ele nunca nos contatou para verificar os dados técnicos (leia texto à direita).
Ele chamou o feito de injeção de genes, o que não é. Também disse que foi realizado para superar disfunção mitocondrial, o que não é verdade. Disse ainda que foi feito em mulheres mais velhas, o que também não é verdade. Por fim, fez outras suposições enganosas. Como a BBC em geral pode ser considerada responsável, a informação ganhou vida própria.
Há uma má compreensão da ciência envolvida (leia quadro à direita). DNA mitocondrial é um círculo que consiste de 37 genes ligados à produção de energia. Os genes são semelhantes em todos os indivíduos. Cada círculo de DNA mitocondrial tem uma pequena área de DNA que não codifica -não tem genes.
Essa região não-codificante varia de acordo com cada indivíduo. Cada pessoa tem sua própria "impressão digital" para essa região. Entre 10% e 15% dos indivíduos têm duas ou mais "impressões digitais". Isso é um fenômeno natural. Os dois bebês gerados com a transferência citoplasmática herdaram, por intervenção, o que os outros têm naturalmente.

Folha - O que o sr. pensa das críticas feitas no editorial da revista científica "Science"?
Cohen -
As críticas feitas pelos especialistas em ética na revista "Science" (www.science mag.org) são confusas. Por um lado, concordamos que modificação genética que leve à alteração da linhagem germinativa deva ser considerada com muito cuidado. Por outro, discordamos num ponto: não classificamos transferência citoplasmática como sendo um modo potencial de alteração do código genético da linhagem germinativa.
Codificação se refere a genes. As únicas diferenças que foram testadas se referem a DNA e não a genes. O problema é que isso é difícil de entender: genes são sempre DNA, mas nem todo DNA corresponde a genes.

Folha - Quais poderiam ser as doenças transmitidas por DNA mitocondrial? Quão raras são elas? Elas poderiam ser detectadas e, em última instância, evitadas?
Cohen -
O conceito de transmissão de doenças mitocondriais foi tirado do contexto. Em qualquer nova forma de intervenção médica existem riscos teóricos.
Várias pessoas dizem que dessa forma seria possível transferir doenças mitocondriais. São distúrbios genéticos raros. Se a doadora do citoplasma do óvulo tivesse a doença (sem sintomas), então por que é que ainda não houve nenhum relato de transmissão de distúrbio mitocondrial posterior à doação de óvulos?
Nesses casos, 100% das mitocôndrias no bebê vêm da doadora. Existem cerca de 30 mil bebês nascidos de doação de óvulos (essa é a minha estimativa; podem ser mais). Os primeiros estágios de desenvolvimento humano têm um número de barreiras erguidas contra a transmissão de anomalias. Por exemplo, apenas um número muito pequeno de anomalias cromossômicas presentes em óvulos vão resultar em gravidez e nascimento de crianças vivas.
A mesma coisa, provavelmente, vale para doenças mitocondriais que não são detectadas na doadora. O fato de um caso desses -após doação de óvulos- nunca ter sido relatado mostra que isso é apenas uma possibilidade teórica. Por que o risco na transferência citoplasmática seria diferente, se apenas de 5% a 15% das mitocôndrias são transferidas?

Folha - Quando o sr. decidiu usar a técnica? Existe uma grande demanda por parte da crescente população idosa? Em quais casos seria a única forma de reprodução?
Cohen -
A técnica é usada para reforçar o desenvolvimento de embriões que correm risco in vitro. Alguns casais de pacientes têm embriões que sempre apresentam um mau desenvolvimento, apesar do fato de não serem velhos do ponto de vista reprodutivo. Quando, após muitas tentativas, eles não conseguem ter um filho, podem considerar esse tratamento experimental.
Em princípio, as células podem falhar por causa de condições nucleares ou citoplasmáticas. Não é tão absurdo considerar que a inserção de proteínas, enzimas, lipídios, mitocôndrias e outras organelas do citoplasma possam reverter alguns desses embriões para um desenvolvimento normal.

Folha - Como há forte oposição e até barreiras legais para o uso desse tipo de técnica em muitos países desenvolvidos, o sr. considera trabalhar em colaboração com países como o Brasil e outros do Terceiro Mundo, como solução para a não-interrupção da pesquisa?
Cohen -
Eu acredito que a cooperação é importante para a compreensão dos dilemas da medicina reprodutiva. Sou otimista no que se refere à prática médica nos EUA e em outros países.
Há muitas camadas legislativas e médicas de regulação colocadas para a prática de medicina reprodutiva nos EUA. Acredito que isso seja uma coisa boa, apesar de, às vezes, ser complicado e difícil de compreender. Uma outra camada de burocracia, inserida para compreender esse procedimento particular, seria irracional, mas pode ser inevitável. Nós acolhemos qualquer colaboração entre legisladores, especialistas em ética, médicos e cientistas dessa área.


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