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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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+ ciência

SATÉLITE-ESPIÃO DEIXA DE SER PRIVILÉGIO DE APLICAÇÕES MILITARES E JÁ COMEÇA A MONITORAR A VIDA COTIDIANA DE PESSOAS COMUNS

ETERNA VIGILÂNCIA

Divulgação DigitalGlobo
Foto do satélite QuickBird mostra ilha das Cobras (RJ), base da Marinha; no alto, à dir., os porta-aviões São Paulo e Minas Gerais


Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Se você mora em Campinas (SP) e se sua casa tem piscina, provavelmente você já deve ter levado um susto ao receber a visita de um vendedor de produtos para ela. "Como você descobriu que aqui tinha uma piscina?" -deve ter sido a primeira pergunta que você fez.
A resposta está no céu. Uma companhia vendedora de produtos para piscina contratou a Imagem, empresa de tecnologia baseada em São José dos Campos (SP), para usar imagens de satélite e descobrir onde estavam todas as piscinas na cidade, com endereço e tudo.
O exemplo é um caso bem simples do que permitem as tecnologias de observação da Terra, o chamado "sensoriamento remoto". E também é um exemplo didático do que significa a sigla SIG -Sistemas de Informações Geográficas-, hoje em dia mais conhecida pela abreviação em inglês GIS. Trata-se de combinar informações geográficas com vários dados de outras fontes -nesse caso, o nome das ruas e o número das casas.
A idéia não é propriamente nova. Um dos melhores exemplos de GIS surgiu na medicina, na metade do século 19. O cruzamento da ruas Broad e Cambridge, em Londres, é um dos locais mais significativos na história da epidemiologia. Ainda hoje está ali uma velha bomba d'água que teve papel fundamental na epidemia de cólera que afetou Londres em 1854. Foi graças a ela e a um mapa feito pelo médico britânico John Snow (1813-1855) que se pôde confirmar a hipótese de que o cólera era transmitido por comida ou água contaminadas.
Snow tinha marcado em um mapa da região o endereço das vítimas da epidemia. As mortes se aglomeravam perto da bomba que servia água contaminada à população. Retirada a alavanca que bombeava a água, a epidemia foi debelada. O trabalho de Snow pode ser considerado um clássico de informações geográficas.
A informação produzida para os vendedores de produtos para piscina, por seu turno, poderia ir além da mera lista de casas. A companhia, assim como qualquer outra empresa privada ou órgão público, poderia querer mais dados sobre as casas -sua área construída, por exemplo. Ou cruzar essas informações com outras eventualmente existentes sobre perfil de consumo, ou número de telefones, ou disponibilidade de gás encanado ou televisão a cabo. Tudo isso hoje é possível. "Nosso produto se chama inteligência geográfica. Nosso objetivo é ajudar os clientes a resolver questões geográficas", diz Marcos Covre, diretor técnico da Imagem. Entre essas questões podem estar problemas específicos de mercado -onde instalar um novo supermercado ou uma nova lanchonete. Ou então os problemas podem envolver questões técnicas -onde colocar uma antena de telefonia celular para que o sinal atinja a maior área de cobertura possível, sem "buracos". A Imagem é a mais tradicional empresa da área -se isso puder ser dito de uma companhia fundada em 1986 por três pesquisadores que então faziam mestrado na área de sensoriamento remoto do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Além de Covre, o trio era formado por Eneas Rodrigues Brum (diretor-presidente) e Luiz Leonardi (diretor operacional). A empresa começou lentamente, explorando o lado operacional da tecnologia de sensoriamento. Dependiam do Inpe, o único local onde imagens de satélite eram captadas e estudadas. A empresa começou com 90% de clientes estatais; hoje, tem 90% na iniciativa privada. E o próprio Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais está entre seus clientes ou colaboradores, além de universidades como a USP e a Unicamp.

De olho na piscina
Fatores recentes e revolucionários na área de GIS são tanto a disponibilidade de computadores melhores, de softwares mais precisos e poderosos para trabalhar as imagens e os dados agregados, como também as próprias imagens de satélite. Poucos anos atrás, imagens dessa qualidade só estavam disponíveis ao Pentágono, nos EUA, e aos militares de outros países desenvolvidos. O americano QuickBird é o melhor exemplo de um satélite que no auge da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética seria considerado um satélite-espião: tem resolução espacial de 61 centímetros. Isto é, ele pode identificar objetos a partir desse tamanho, desde sua órbita a 450 km de altitude. Os satélites tradicionais de sensoriamento remoto com resoluções espaciais de 10 a 15 metros podem fazer a identificação dos quarteirões de uma cidade e dos seus principais edifícios. Mas isso é pouco para definir com clareza o tamanho da piscina da casa. Já os mais modernos, com resolução de 1 a 5 metros, são capazes de mostrar alguns detalhes das edificações. É possível enxergar árvores e carros individuais numa imagem dessas e, assim, medir razoavelmente bem as piscinas ou a inclinação dos telhados. O QuickBird vai além, tanto que inicialmente criou polêmica entre os militares americanos. Suas imagens de todo o planeta estão à venda para quem quiser comprar. Um cliente pode querer fotos das principais bases americanas. Basta encomendar, com apenas uma condição: a DigitalGlobe, empresa dona do satélite, não pode entregar imagens com definições menores que 82 cm, em 24 horas após a sua aquisição, sem o consentimento do governo dos EUA. Na recente feira de material bélico LAD 2003 (Latin America Defentech), realizada no final de abril, no Rio de Janeiro, duas imagens feitas pelo QuickBird davam sustos nos militares brasileiros que passavam pelo estande da Imagem. Uma mostrava em detalhe a ilha das Cobras, base da Marinha no centro do Rio, e a vizinha ilha Fiscal. Estão lá dois porta-aviões, São Paulo e Minas Gerais, além de submarinos, várias fragatas e corvetas. A imagem de satélite permitia até visualizar o antigo contorno da fortaleza do século 18, hoje marcado por árvores, que tomava a área mais alta da ilha antes que ela recebesse aterros. A outra mostrava a Base Aérea de Anápolis, localizada em Goiás, onde ficam os obsoletos caças Mirage-3 de defesa aérea, a serem um dia substituídos pelo vencedor do atualmente atrasado programa F-X. Na imagem era possível distinguir até os paióis de munição da base, o que deixou alguns oficiais mais antigos da FAB -e menos conhecedores de tecnologia- visivelmente perplexos e contrariados.

Má sorte
A saga do QuickBird começou faz uma década. Em 1993, o Departamento de Comércio americano permitiu à empresa WorldView (hoje DigitalGlobe) construir um satélite comercial de alta capacidade para a época -três metros de resolução espacial. Mas o azar perseguiu a empresa. O primeiro satélite, EarlyBird-1, foi lançado em 1997, mas saiu da órbita quatro dias depois, devido a um problema de energia. Graças ao seguro, a empresa pôde ter verba para construir e lançar em 2000 o QuickBird-1, o qual nem mesmo conseguiu alcançar sua órbita.
Mudado o nome da empresa em setembro de 2001 para DigitalGlobe, a sorte também mudou. O QuickBird-2 já foi projetado com a revolucionária resolução de 61 cm em "modo pancromático" (uma imagem em preto-e-branco, mas mais nítida) e 2,44 metros no "modo multiespectral" (com menor resolução, mas com mais dados no espectro eletromagnético, nas cores azul, verde, vermelho e infravermelho próximo).
Os dois modos podem ser combinados em computador, criando imagens na resolução espacial de 61 cm e com cores próximas ao real, capazes de deixar coronéis apopléticos. Usando essas tecnologias, ou melhor, geotecnologias, a Imagem hoje tem entre seus principais clientes empresas que vivem momentos dinâmicos de transição, segundo Covre. É o caso das empresas de telefonia, ou de distribuição de eletricidade e gás, ou de algumas prefeituras que precisam de dados com urgência e não sofrem problemas de continuidade com a mudança de governo.
A empresa tem expandido sua atuação em vários países latino-americanos e criou uma outra, a Intersat, apenas para comercializar imagens. A Imagem tem mapeado partes do Brasil que nem mesmo órgãos governamentais ainda foram capazes de cartografar. E vai em breve instalar uma antena própria para receber imagens da DigitalGlobe.
A era do satélite-espião na vida cotidiana de cidadãos comuns está apenas começando.


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