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Um ITA para o Norte
Academia de ciências propõe transformar Amazônia em pólo tecnológico em 10 anos a custo de R$ 30 bilhões, mudando o modelo de desenvolvimento local para preservar a floresta em pé
Luiz Vasconcelos/"A Crítica"/Reuters
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A índia sateré-maué Valda Ferreira de Souza tenta deter o avanço da PM do Amazonas durante reintegração de posse de propriedade particular invadida na periferia de Manaus, em março
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Seis pesos-pesados da
ciência brasileira colocaram na internet
na semana passada
uma singela proposta:
salvar a Amazônia da sanha das
motosserras implantando na
região um pólo científico e tecnológico. Em dez anos, três institutos de pesquisa de ponta e
duas universidades começariam a gerar riqueza para a região, inventando formas de
agregar valor a produtos derivados da imensa biodiversidade local e inseri-los em mercados globais. A pesquisa e desenvolvimento realizaria, assim, o sonho dos ambientalistas de desenvolver o Norte sem
derrubar a floresta.
Quem acha que essa "revolução científica e tecnológica",
como seus proponentes a chamam, é uma utopia produzida
por acadêmicos desconectados
da realidade deveria olhar o
exemplo de uma cidadezinha
chamada São José dos Campos,
que em 1950 era uma vila provinciana e atrasada de pouco
mais de 20 mil habitantes.
Naquele ano, o visionário
marechal Casimiro Montenegro Filho criou o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, destinado a formar engenheiros para alavancar a indústria aeroespacial nacional -algo estratégico para o governo na época-
e instalado em São José dos
Campos. Menos de duas décadas depois, uma empresa criada com a mão-de-obra egressa
do ITA, a Embraer, produziria
o primeiro avião brasileiro. Hoje, São José dos Campos abriga
a quarta maior indústria aeronáutica do planeta.
Segundo os seis pesquisadores, o exemplo do ITA pode se
repetir na Amazônia. A proposta inclui turbinar a pós-graduação local, formando 700 novos
doutores por ano a partir de
2009. Em três anos, o número
de PhDs da Amazônia subiria
de 2.800 para 4.700.
O custo de "tirar o atraso" da
ciência amazônica foi calculado em R$ 3 bilhões por ano em
um prazo de dez anos no documento, postado no site da Academia Brasileira de Ciências
(www.abc.org.br). Dito de outra forma, o Brasil precisará desembolsar R$ 30 bilhões, ou
uma vez e meia o custo das hidrelétricas de Santo Antônio e
Jirau, no rio Madeira, para inventar um modelo de desenvolvimento novo e preservar
seu maior patrimônio.
Para os pesquisadores, a troca é mais do que justa, ainda
mais considerando tudo o que
o governo tem dado de subsídio
há quatro décadas para alimentar o modelo de produção agropecuária amazônico, que gera
devastação, concentração de
renda e violência fundiária. R$
30 bilhões é o preço de colocar
a Amazônia no século 21.
"A Amazônia vive um crescimento econômico do século 19,
destruindo floresta pra fazer
carvão e destruindo fauna e flora pra botar pastagem. Poucas
pessoas conseguiram internalizar a realidade atual do século
21", disse à Folha a geógrafa
Bertha Becker, professora
emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Uma das maiores pensadoras vivas da questão amazônica, Becker se uniu ao climatologista Carlos Nobre, do Inpe, ao matemático Jacob Palis,
presidente da Academia Brasileira de Ciências, ao químico
Hernan Chaimovich, da USP,
ao biólogo Adalberto Val, diretor do Inpa (Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia) e ao
geólogo Roberto D'Allagnol, da
Universidade Federal do Pará,
para produzir o documento.
O texto teve boa acolhida em
pelo menos uma instância do
governo. O ministro Roberto
Mangabeira Unger (Assuntos
Estratégicos), encarregado pelo presidente Lula de desenvolver a Amazônia, gostou da proposta dos cientistas e ficou de
apresentá-la ao Planalto.
"Há demanda por produção
maior, sim, mas não é preciso
destruir tudo para crescer. O
que marca hoje nosso sistema
econômico é a expansão econômica baseada numa revolução científico-tecnológica. A
Amazônia tem toda essa parte
devastada, mas tem uma grande extensão de floresta ainda
de pé. E essa floresta é um potencial fantástico para esse novo modo de produzir baseado
na ciência e na tecnologia. Não
podemos ficar só com uma política de áreas protegidas, por
duas razões: porque elas não
estão protegendo e porque não
geram riqueza e trabalho.
Áreas protegidas não podem
competir com pecuária e soja e
madeira", diz Becker.
Carlos Nobre completa:
"Não queremos vencer o jogo
com a pecuária. Queremos começar outro jogo".
Para o pesquisador do Inpe,
se o governo federal bancar a
idéia, o Brasil poderá se tornar
"o primeiro país tropical desenvolvido". De sua sala em
São José dos Campos, Nobre
explicou a proposta à Folha.
Leia a entrevista.
FOLHA - Há vários anos cientistas
como Bertha Becker e o sr. mesmo
apontam a necessidade do desenvolvimento científico e tecnológico
como única saída para a Amazônia.
Por que só agora a Academia Brasileira de Ciências traz essa proposta?
CARLOS NOBRE - Boa pergunta.
Vários de nós, isoladamente,
gerenciando programas de pesquisa na Amazônia, estávamos
levantando essas questões. E
elas não tinham repercussão.
Quando a gente estava desenhando a segunda fase do LBA
[Experimento em Grande Escala da Biosfera e Atmosfera na
Amazônia, um programa coordenado por Nobre que envolveu centenas de cientistas de
vários países], falamos dessa
questão de ciência e tecnologia
para a sustentabilidade. Mas no
seio dos órgãos de financiamento essas coisas não tinham
repercussão muito grande.
No momento em que os fundos setoriais foram criados e
reservaram uma fatia de 30%
dos fundos para projetos de
ciência e tecnologia na Amazônia, no Nordeste e em parte do
Centro-Oeste, houve uma falsa
sensação de segurança. Isso escondeu um pouco o fato de que
se precisa mudar a escala. Por
isso usamos o termo revolução.
A taxa anual de crescimento
do uso de dinheiro de pesquisa
na Amazônia é maior que a média do Brasil, mas ainda é muito
pequenininha. A ciência amazônica é 2% a 3% da ciência nacional e cresce 5% ao ano, enquanto o resto do Brasil cresce, digamos, 4,5%. Vai demorar
150 anos para ela ficar significativa. O documento tenta quebrar esse paradigma financeiro.
É outra escala. São R$ 3 bilhões por ano e o foco em um
novo paradigma, de valorização
da floresta em pé, dos serviços
ambientais. Nós acreditamos
que, se o Brasil tiver sucesso
nisso, vamos ter uma coisa que
nenhum outro país tem: como
desenvolver uma região expressiva do território brasileiro
através de um conceito novo,
de uso sustentável da biodiversidade. Se o Brasil inventar um
modelo, será o primeiro país
tropical desenvolvido.
Não estamos dizendo que
não é importante melhorar outros indicadores, como educação e saúde das populações
amazônicas. Mas achamos que
esse novo modelo não vai
emergir naturalmente; ele precisa ser inventado. Um desafio
é que nós temos muito poucos
exemplos de desenvolvimentos
tecnológicos nacionais...
FOLHA - Você tem o caso do Centro
de Biotecnologia da Amazônia, que
foi um fracasso.
NOBRE - É possível conceitualizar que a gente poderia, num
intervalo de dez anos, sair do
zero ou quase zero e chegar a
um laboratório de pesquisa que
produza resultados tecnológicos que alavanquem indústrias,
como temos em São José dos
Campos, em Campinas, em São
Carlos, em Campina Grande? A
resposta da academia é um sonoro "sim!" Cidades médias da
Amazônia já atingiram um nível de qualidade de vida que
torna possível atrair cientistas,
tecnólogos, engenheiros para
montar esses laboratórios.
FOLHA - Alguém do LBA emigrou
para a Amazônia?
NOBRE - Os jovens doutores estão ficando na Amazônia, na
medida em que concursos
ocorrem nas universidades da
Amazônia. Lógico que o número de concursos nas áreas do
LBA [ciências da Terra] é pequeno. O campus de Santarém
da Universidade Federal do Pará criou um curso de física ambiental e contratou 12 doutores
do LBA. É uma pequena gota
d'água, mas provou-se que é
possível fazer ciência de qualidade [na região].
Agora, você não forma em
dez anos um laboratório desses
se você não atrair líderes de
pesquisa que consigam montar
essas estruturas. Nós, da academia, achamos que a Amazônia
atrai tanto o interesse mundial
que, se o governo garantisse
[verba], seria possível. É por isso que o número de doutores
que estamos propondo formar
são altos: 1.400, 2.800. Não podemos falar na escala de 10, 15
doutores. Você não compete
internacionalmente. Um único
laboratório de química da Unicamp tem 85 doutores. Não dá
para imaginar que você vai descobrir uma coisa nova com
meia dúzia de gatos pingados.
Uma vez eu visitei o Serviço
Antártico Britânico. Eles têm
US$ 400 milhões por ano. Um
instituto, para pesquisa básica,
gasta muito mais que todos os
países amazônicos juntos em
pesquisa amazônica.
"A Amazônia tem uma grande vantagem: ela é uma marca muito forte"
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FOLHA - A Unicamp atrai estudantes do Brasil todo porque eles sabem
que terão emprego em indústrias
assim que se formarem. Mas um sujeito que vá para a Amazônia agora
não pode ter essa expectativa.
NOBRE - É por isso que tem de
começar pelo instituto científico e tecnológico. A Unicamp é
um excelente exemplo, o ITA
também é. Você transforma
uma região se tem um núcleo
pensador, que te dá instrumentos de desenvolvimento. Isso é
a tecnologia. Por isso tem de ser
fora do eixo Belém-Manaus.
Em cidades médias, como
Santarém. Tem de fazer para a
Amazônia o mesmo que o ITA
fez para São José dos Campos.
Em 1950, São José dos Campos tinha vinte e poucos mil habitantes. Imagine tirar o ITA,
que foi criado no Rio de Janeiro, e colocar numa cidade de 20
mil habitantes. Aquilo foi uma
coisa muito visionária. Aqui ele
alavancou um enorme desenvolvimento, uma indústria.
É esse o modelo que a gente
tem em mente. Com a vantagem de que hoje os ciclos de desenvolvimento tecnológico são
mais rápidos. O do ITA começou em 1950 e em 69 já tinha o
protótipo do primeiro avião feito no Brasil, o Bandeirante. Hoje esses ciclos podem ser de 10,
15 anos no máximo. É a escala
de tempo que a gente imagina.
FOLHA - Por que o Inpa e o Museu
Emílio Goeldi, que já estão mais do
que estabelecidos na Amazônia,
não poderiam ser esses centros?
NOBRE - O documento coloca
mais de 50% de todos esses R$
30 bilhões em dez anos nos
centros existentes. Mas, além
desses centros, há a necessidade de coisas novas, uma ou duas
universidades com foco muito
claro em desenvolvimento sustentável a partir dos recursos
naturais. E com um viés tecnológico. Eu acredito nas coisas
novas porque você as cria com
uma missão. O ITA só pôde
atingir o objetivo que conseguiu porque, na sua criação, o
marechal Montenegro lutou
contra os conservadores da Aeronáutica daquela época, que
achavam que ele deveria apenas formar engenheiros para a
manutenção das aeronaves.
As universidades novas e os
institutos de tecnologia têm de
ser criados com um foco muito
específico, para criar a condição de capacitação de recursos
humanos na escala de qualidade que o ITA representou.
Queremos atrair estudantes
de alto nível e, a partir desses
pólos, alavancar o setor industrial, a agregação de valor da
biodiversidade. O documento
fala na globalização de 50 produtos da biodiversidade amazônica. Não estamos falando de
nada super-sofisticado de biotecnologia, mas sim de dar escala global a coisas que existem,
e isso já seria muito importante. E, junto com isso, um aspecto de mais alta tecnologia de
ponta, que é a biotecnologia e a
chamada biomímica. Existe
por exemplo a patente de um
novo método de fibra óptica
inspirado na maneira como os
cristais da asa de uma borboleta transmitem luz com menos
perda. Isso é nanotecnologia.
Dá para fazer isso? Se laboratórios no interior de São Paulo
conseguem fazer inovação tecnológica de nível mundial, nós
temos de acreditar.
FOLHA - R$ 3 bilhões por ano é muito dinheiro?
NOBRE - Quando você pensa
em orçamento para ciência e
tecnologia no Brasil como um
todo e especificamente para a
Amazônia, parece muito. Mas é
preciso demonstrar que não é.
Se você está em uma região
atrasada e quer dar um salto
tecnológico, você precisa fazer
como a Coréia do Sul, que passou a gastar há muitas décadas
uma porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto) em desenvolvimento tecnológico superior ao que países desenvolvidos gastam. Na nossa proposta,
após dez anos, teremos um investimento adicional de 1,9%
do Produto Regional Bruto.
Se a gente fosse fazer um cálculo, historicamente o modelo
de desenvolvimento agropecuário da Amazônia sempre foi
construído em cima de subsídios. Terra gratuita, subsídios a
atividades agrícolas com juros
negativos por décadas. O Imazon (Instituto do Homem e
Meio Ambiente da Amazônia)
calculou em R$ 1,9 bilhão os
subsídios que os pecuaristas da
Amazônia receberam só do
Fundo Constitucional do Norte
entre 2003 e 2007.
Aqui, são R$ 3 bilhões por
ano para tentar alavancar em
dez anos uma indústria internacionalmente competitiva e
uma nova geração de engenheiros, biólogos, climatologistas
que vão desenvolver a Amazônia de forma sustentável, do
mesmo jeito que o ITA criou
uma geração de engenheiros
aeronáuticos que criaram a
quarta maior indústria aeronáutica do mundo. Parece muito. Mas, quando você olha os
subsídios implícitos em 40
anos de desenvolvimento agropecuário na Amazônia, não é.
FOLHA - O sr. falou em globalizar
50 produtos da biodiversidade. O
documento fala também em recursos aquáticos e minerais. Pode me
dar um exemplo?
NOBRE - A Embrapa e o Inpa
identificaram mais de 200 produtos a partir dos quais você
poderia desenvolver cadeias
produtivas, desde a prospecção
da biodiversidade até a domesticação, aumento da eficiência
na produção, industrialização e
a agregação de valor. Eu uso um
exemplo tão simples que a gente se pergunta por que isso não
foi feito no Brasil.
Uns surfistas da Califórnia
descobriram o açaí no Nordeste. Gostaram da idéia e, no dia
que aposentaram a prancha, resolveram abrir uma indústria
de açaí. Levaram o açaí do Brasil para a indústria de transformação na Califórnia. E, em
poucos anos, eles tinham 16
produtos à base de açaí: nutracêuticos, farmacêuticos, cosméticos etc. Eles venderam a
Amazônia, embalada na forma
de 16 produtos com valor agregado de uma única fruta. Por
que a indústria de transformação tecnológica do Brasil não
pegou o açaí e fez a mesma coisa? Eu não tenho resposta.
Acho que é um imenso complexo de inferioridade. A gente
olha essas coisas amazônicas e
já põe de lado. A gente precisa
largar esse preconceito. Por
que um produto da biodiversidade da Amazônia não pode
atingir uma escala global e entrar num mercado global? A
Amazônia tem uma grande
vantagem: ela é uma marca
muito forte. Não queremos
vencer o jogo com a pecuária;
queremos começar outro jogo.
FOLHA - O sr. trocaria São José dos
Campos por Santarém?
NOBRE - Trocaria. Mas, se você
publicar isso, minha mulher
tem um ataque.
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