São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Ciência em Dia

A herança de Chagas

Marcelo Leite
colunista da Folha

A biomedicina caminha a passos de cágado, por mais que a genômica tente fantasiá-la de lebre. Já se passaram 95 anos desde que Carlos Chagas (1879-1934) encontrou o micróbio Trypanosoma cruzi nos intestinos do barbeiro, inseto que se abrigava nas frestas das casas de pau-a-pique dos caboclos de Minas Gerais e transmitia a doença capaz de destruir-lhes lentamente o coração. Quase um século, mas novos caboclos, em favelas, continuam a morrer dessa moléstia fora de moda -uns 30 mil a cada ano, só no Brasil. O médico Antonio Teixeira, porém, trouxe novidades para eles nas páginas do periódico "Cell" (www.cell.com).
A boa nova não vai salvar a vida de ninguém da noite para o dia, mas coroa o trabalho de uma vida inteira. Hoje com 62 anos, Teixeira intrigou-se com a doença quatro décadas atrás -tempo similar ao que ela pode demorar para manifestar-se naquele um terço de infectados que de fato adoece. Após perder um paciente chagásico, examinou seu coração ao microscópio e espantou-se com a ausência dos micróbios e com a profusão de células do sistema imune (de defesa) do paciente.
Recém-formado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Teixeira elegera como projeto investigar se Chagas poderia ser uma doença auto-imune, hipótese que o levaria à Universidade Cornell (EUA). Hoje na Universidade de Brasília (UnB), o médico acredita ter descoberto o mecanismo que permite ao T. cruzi inutilizar corações tanto tempo depois da infecção.
Teixeira e sete outros pesquisadores da UnB descobriram que o micróbio não invade só as células dos doentes, mas também seu genoma, os genes guardados nos núcleos de suas células. Parte do DNA contido numa estrutura do parasita chamada cinetoplasto é enxertada no cromossomo 11 do ser humano infectado, como verificou o grupo de Teixeira em 9 de 13 pacientes. O médico acredita que essa seqüência estranha ao DNA humano, ao ser lida para a fabricação de proteínas nas células do chagásico, atrai a atenção de suas células de defesa, que passam a atacar os tecidos que abrigam tais substâncias alienígenas.
O trabalho do grupo brasileiro teve destaque em publicações como "Nature", "Science Now" e "The Scientist". À última delas disse David Campbell, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que os dados da UnB "abrem a porta para modos inteiramente novos de pensar a relação hospedeiro-parasita, as conseqüências da infecção crônica e um estilo de vida intracelular".
Teixeira já havia aventado a possibilidade dessa integração de DNA há dez anos, mas enfrentou ceticismo. Agora a comprovou com as armas em quem todos hoje acreditam, as da biologia molecular, mas nem por isso foi fácil. Transcorreu um ano inteiro, de março de 2003 a março de 2004, para que a "Cell" e seus revisores aprovassem o artigo. Entre outras exigências, pediram que a presença do DNA estranho fosse testada em uma dezena de pacientes, além dos dois casos submetidos de início.
Esse tipo de transferência de DNA entre organismos não aparentados é chamada de "horizontal". Comum nas bactérias, pela primeira vez foi comprovada entre eucariotos, os organismos complexos cujas células são dotadas de núcleos. É uma boa notícia, e não só para chagásicos, que a descoberta tenha sido feita no país.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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